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24/04/2020

Ciclo de Estudos aborda a Covid-19 de maneira transdisciplinar

Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)


Com o objetivo de ampliar a discussão sobre saúde, ambiente e sustentabilidade e favorecer uma discussão transdisciplinar e um olhar abrangente e prospectivo sobre a pandemia do novo coronavírus, a Fiocruz promoveu o Ciclo de Estudos Saúde e Ambiente, Saúde do Trabalhador e Emergência em Saúde da Covid-19. Realizado online, pelo canal da Fiocruz no YouTube, o evento contou com duas sessões na quarta-feira (22/4), pela manhã e à tarde. A primeira parte debateu o panorama geral e sistêmico e o futuro da pandemia, abordando os determinantes sociais, econômicos e ambientais, o paradoxo de um bom distanciamento social, os desafios no combate do novo coronavírus e a equidade. À tarde foram discutidos os mecanismos adotados pela Fiocruz frente à pandemia, a situação das populações de alta vulnerabilidade, em especial os povos indígenas, os cenários atuais na perspectiva da epidemiologia e o panorama dos caminhos a serem seguidos na saúde e economia, do ponto de vista do Complexo Econômico e Industrial da Saúde.

Assista a primeira sessão na íntegra.

 

A primeira intervenção foi da presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima. Ela discorreu sobre Pandemia e equidade: desafios da experiência no Brasil. Nísia afirmou que a atual pandemia do novo coronavírus é um “fenômeno total” e que a discussão suscitada pelas transformações trazidas por essa situação sanitária, que mexeu com a vida e o trabalho de todos, em todo o mundo, requer um “olhar sociológico”. Citando Benjamin Franklin, ela disse que “as epidemias são tão certas quanto as mortes e os impostos”. De acordo com a presidente, a última epidemia que motivou uma discussão dessa magnitude, envolvendo todas as camadas das sociedades, foi a de HIV/Aids, que eclodiu no início da década de 1980 e pôs em xeque vários paradigmas. Depois vieram outras, não tão amplas e duradouras, que tiveram como resultado o fracasso do sonho, tão vivamente acalentado durante o século 20, de a Humanidade eliminar de uma vez por todas as doenças infecciosas.

A presidente lembrou que o planeta se tornou um lugar mais vulnerável à propagação de doenças devido à facilidade cada vez maior de os seres humanos viajarem e se deslocarem pelos continentes. “Essa é a força motriz da globalização das doenças. E, num país gigantesco e desigual como o Brasil, ela ganha um aspecto ainda mais tenebroso”, enfatizou Nísia, que também citou o escritor americano Philip Roth e seu livro de ficção “Nêmesis”, que aborda um surto de poliomielite nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial. A obra trata daquelas situações que emergem junto com as doenças contagiosas: medo, pânico, raiva, culpa, perplexidade, sofrimento e dor.

Nísia observou que o momento é de se voltar, além do pensamento epidemiológico e sanitário, também para as ciências sociais. Ela comentou o Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, que tem publicado textos de referência sobre a pandemia. Nísia também trouxe ao debate a obra do sociólogo Norbert Elias, autor do clássico “O processo civilizador”, que tem como pano de fundo a formação dos Estados nacionais na Idade Média, a partir do século 13. “No livro, vemos claramente que, na época as classes mais baixas se sentiam inseguras frente a ameaças como a peste e muitas vezes não acatavam o que lhes era recomendado pelos mais favorecidos, já que suas condições de vida não permitiam seguir o que os ricos faziam”, comentou ela, fazendo um paralelo com a situação atual, que, assim como então, afeta muito mais os pobres. De acordo com Nísia, a iniquidade e extrema desigualdade verificadas no Brasil refletem, guardadas as devidas proporções e os diferentes tempos históricos, a situação descrita por Elias, já que também hoje as medidas de prevenção e isolamento são mais custosas e difíceis para os pobres, deixando-os ainda mais vulneráveis.

“Vemos que a distribuição de leitos de UTI, de respiradores, de equipamentos médicos em geral, não é equitativa. Por isso é tão necessário, ainda mais neste momento, termos políticas públicas eficientes e um esforço coordenado, por parte do Estado, para enfrentar esses problemas. Uma epidemia nunca se dissemina de maneira igual e os mais pobres sempre sofrem mais. Nos Estados Unidos, por exemplo, estão morrendo mais os negros e os latinos. É uma crise humanitária de grandes proporções”. A presidente lembrou ainda iniciativas importantes da Fiocruz, como, entre outras, o Observatório Covid-19, qu e tem por objetivo o desenvolvimento de análises integradas, tecnologias, propostas e soluções para enfrentamento da pandemia, e a Rede Covida, um projeto de colaboração científica e multidisciplinar focado na pandemia de Covid-19 e que conta com mais de 120 pesquisadores e 30 profissionais de comunicação que atuam de forma voluntária.

Em seguida foi a vez do pesquisador Rômulo Paes-Sousa, da Fiocruz Minas Gerais. Ele iniciou abordando a questão do isolamento social e as reações de lideranças políticas e econômicas que são favoráveis ao afrouxamento das medidas de distanciamento adotadas por governos estaduais e municipais e também das preconizadas pelo Ministério da Saúde, que estão em acordo com as recomendações da OMS. “Não existe um ‘teste de saída’. Existe uma saída, que pode ocorrer na hora errada e assim falhar. Sousa tratou em seguida do conceito de quarentena, que vem da Idade Média e da época das Grandes Navegações, visando controlar e conter a peste, a varíola, a febre amarela e outras epidemias que no passado assolaram populações. “A quarentena foi uma medida surgida nos tempos medievais. No século 19 passamos a contar com as vacinas, no século 20 com medicamentos de alta performance e a atenção hospitalar e, já no 21, com inteligência artificial, Big Data, testes por imagens, telemedicina, drones e outros avanços”.

Segundo Sousa, “não podemos esquecer, por outro lado, da politização dessas estratégias de isolamento, que por vezes geraram tragédias como a do apartheid, na África do Sul”. O pesquisador enfocou os conceitos de distanciamento social e lockdown – uma forma mais radical e muito em voga no momento nos países europeus. Ele mostrou mapas para mostrar que, nos EUA, o apoio ao isolamento é menor nos estados que votam majoritariamente no Partido Republicano, do presidente Donald Trump, e maior nos estados que costumam votar no partido de oposição ao atual mandatário, o Democrata. 

Sousa disse que em 2019 a Universidade Johns Hopkins, nos EUA, fez um relatório sobre quais países teriam melhores capacidades para enfrentar uma pandemia. Em primeiro lugar ficaram Estados Unidos e Reino Unido. China, Nova Zelândia e Coreia do Sul, que na pesquisa ficaram em posições bem mais abaixo, se revelaram, na crise deste ano, aqueles que souberam lidar bem com o problema, ao contrário dos que ficaram no topo do relatório. Para o pesquisador, o grave quadro econômico trará ainda mais penúria para os pobres. “Mais de 170 países devem experimentar retração econômica em 2020, de acordo com projeções do FMI e da Cepal. Portanto, o pior dos mundos que poderemos ter é a junção do fim precoce do isolamento, a partir de medidas descoordenadas entre os vários níveis de governo, com a recessão que já se instalou”.

O último palestrante da sessão da manhã foi o ex-presidente da Fiocruz e atual coordenador do Centro de Relações Internacionais (Cris) da instituição, Paulo Buss. Ele se deteve sobre a questão dos determinantes sociais da saúde e de como a pandemia vai influenciar o estado geral da saúde. “Conhecemos ainda muito pouco sobre o novo coronavírus, há diversos estudos em curso e estamos vivendo, dia a dia, uma dinâmica desafiadora trazida por essa doença que em sua origem é zoonótica e que se valeu de questões ambientais para chegar a nós”. Buss afirmou que a forma de produzir e consumir alimentos tem muito a ver com esse tipo de problema sanitário, bem como o desmatamento e a degradação ambiental.

O coordenador lembrou que a vida nas sociedades contemporâneas está em xeque. “As populações mais vulneráveis, que moram em grandes aglomerados urbanos, com baixos índices de acesso à saúde e com comorbidades que muitas vezes não são devidamente tratadas e acompanhadas, acentua esse grave quadro atual”. Buss adiantou que o Cris está produzindo um relatório sobre a situação da pandemia, com foco na saúde global. “A cooperação internacional é fundamental. Precisamos de solidariedade e de cumprir a Agenda 2030”.

A sessão da tarde começou com a intervenção do vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde da Fiocruz, Marco Menezes. Segundo ele, diante de um desafio planetário, como o da pandemia da Covid-19, é crucial destacar o papel da ciência. “Mais do que nunca precisamos nos voltar para a ciência, porque será dela que virão as respostas”. Menezes citou a concentração de terras, de renda, o desemprego, a precarização do trabalho, a perda de direitos e a degradação ambiental como fatores agravantes da pandemia. “Sem esquecer de outros problemas, como as epidemias globais de obesidade, de hipertensão, de diabetes, de desnutrição, sobretudo entre os mais pobres, que servirão para agravar a situação”. Ele disse que 821 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que 42 milhões na América Latina, passam fome.

Assista a segunda sessão na íntegra.

 

O vice-presidente se mostrou preocupado com o cenário pós-pandemia, para o qual, segundo ele, as grandes corporações já se movimentam visando mitigar suas perdas. “A Fiocruz, por sua trajetória, e precisamente no ano em que chega aos seus 120 anos de história, tem que insistir na democracia, na comunicação pública junto aos vulneráveis e na geração de conhecimento, sempre do ponto de vista da saúde pública, do ambiente e da sustentabilidade”.

A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e coordenadora do Grupo Temático Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Ana Lúcia Pontes, interveio em seguida, ao abordar a Covid-19 e a saúde indígena. “Estamos juntos com os povos indígenas, escutando suas reivindicações e demandas e traduzindo essas necessidades na linguagem da saúde coletiva, na linguagem do SUS”, destacou a pesquisadora. Ela afirmou que a pandemia deixa mais clara as crises planetária e civilizatória porque passa a Humanidade. “E chega ao país no momento em que os direitos dos indígenas estão sendo dilacerados devido a situações dramáticas criadas por garimpeiros e desmatadores. Observamos danos irreparáveis à História, à cultura, ao idioma, à sociabilidade desses povos. As ameaças são muitas e têm que ser denunciadas e evidenciadas”. Segundo ela, caiçaras e quilombolas também estão em situação difícil e poderão sofrer grandes perdas devido à pandemia.

O coordenador das Ações de Prospecção da Fiocruz, Carlos Gadelha, que falou em seguida, disse que a pandemia é uma tragédia. “Há 20 anos já dizíamos que o SUS estava vulnerável. De lá para cá a situação se agravou e a crise do coronavírus deixa a mostra muitos dos nossos gargalos no Complexo Econômico e Industrial da Saúde”. Gadelha afirmou que a dependência nacional frente aos países desenvolvidos se acentuou imensamente. “A concentração da inovação cria anomalias. Cerca de 60% da biotecnologia está em dez empresas multinacionais. Esta é uma batalha geopolítica que estamos perdendo, correndo o risco de nos tornarmos ainda mais dependentes e vulneráveis no que diz respeito a medicamentos, vacinas, equipamentos, tecnologia...”.

Segundo o coordenador, a dependência nacional alcança 60% no caso dos respiradores, aparelhos tão necessários nessa pandemia. “E dentro dos respiradores, a dependência em termos de componentes também é da ordem de 60%. No caso das máscaras mais sofisticadas, chega a 95%. E no importante item do princípio ativo dos fármacos, esse índice vai ao patamar de 94%, de acordo dom dados de 2019. Em termos gerais, o SUS mostra dependência de cerca de 80%”.

“Há uma insuficiência do mercado para resolver essa questão. Não será com o mercado que sairemos da crise. O monopólio da produção e do conhecimento faz mal”. Para Gadelha, é necessário trazer para o século 21 a utopia iluminista, visando gerar um futuro em que haja vida com qualidade em um planeta sustentável”.

Concluindo a sessão, o geógrafo e pesquisador da Fiocruz Christovam Barcellos tratou do mundo globalizado frente à pandemia. Ele apresentou dados e números sobre a situação na Itália, nos Estados Unidos e no Brasil e os impactos das medidas de isolamento social. Barcellos comentou a medição do isolamento por meio de aplicativos como Waze e Moovit e disse que é preciso trazer também cientistas sociais para discutir as questões levantadas pelo novo coronavírus. Para ele, de maneira geral, a comunidade e o Estado vão sair fortalecidos. “O bem-estar social, os serviços públicos, o sistema de saúde e a Previdência Social estão voltando a ser valorizados. A experiência de várias outras epidemias que ocorreram no mundo é que elas mudam os padrões de comportamento, mudam a arquitetura e as cidades, mudam a sociedade”.

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