Que doença com alta incidência global, na casa de milhões de infecções registradas no último ano, vem impulsionando a produção nacional de conhecimento científico em virologia, com grandes avanços em vacinas, técnicas de diagnóstico e sequenciamento genético? Quem pensou na Covid-19 acertou apenas em parte. Por razões compreensíveis, o novo coronavírus pode até ser mais lembrado, mas o combate à dengue foi pioneiro e promoveu uma grande expansão dos estudos sobre vírus no Brasil, a partir das primeiras epidemias da doença no país, ocorridas na década de 1980.
Apesar da evolução significativa nos estudos na área, a dengue permanece um desafio sanitário (Arte: COC/Fiocruz)
A maneira como a doença foi então enfrentada remete aos dias atuais. A expertise construída no passado estruturou a pesquisa nacional em virologia e “pode explicar a rápida e consistente resposta dos virologistas” às crises de saúde pública mais recentes, como as da zika, da chikungunya e da Covid-19, observa o historiador Jorge Tibilletti de Lara, em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde, Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Ficruz). No texto, ele discorre sobre o surgimento da virose, transmitida pelo mosquito Aedes aegypti, e analisa o papel das epidemias na disseminação do conhecimento científico, a partir da emergência da dengue no Brasil.
Apesar da evolução significativa nos estudos na área, a dengue permanece um desafio sanitário e segue sendo combatida por meio de programas de erradicação do mosquito. Este ano, segundo o último Boletim Epidemiológico divulgado em junho pelo Ministério da Saúde, o Brasil já totaliza 585 óbitos, além de 1,1 milhão de casos prováveis – o número de infectados representa aumento de quase 200% em relação a 2021. Cerca de 2,5 bilhões de pessoas estão expostas ao risco de contrair dengue, especialmente em países tropicais e subtropicais, “nos quais as condições climáticas juntam-se a problemas de ordem política, social e econômica, impossibilitando o controle efetivo dos vetores da doença”, escreve Lara.
Epidemia em Roraima foi vista como algo isolado, e o Aedes se alastrou
Com base na análise de relatórios, correspondências, cadernos de laboratório, artigos científicos, teses e depoimentos orais, ele traz novo foco à historiografia sobre a doença. “Mostro como a pesquisa com o vírus pode elucidar a história da dengue. É um enfoque inédito. Pensar no vírus é pensar do ponto de vista ecológico, porque o mosquito não está sozinho nesse ciclo que leva à dengue. É uma visão mais ecossistêmica, mais ecológica da doença. Leva em consideração, claro, o mosquito e também o vírus”, avalia o historiador, doutorando no Programa de Pós-Graduação da História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz.
Globalmente, o alerta sobre a dengue foi dado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) entre as décadas de 1970 e 1980. Em 1981, quando a virologia se ocupava dos estudos da influenza, da raiva, das enteroviroses e das hepatites virais, foi registrada na América – em Cuba – a primeira epidemia de dengue em sua forma mais grave, a hemorrágica. No mesmo ano, a doença emergiu no Brasil.
Entre julho de 1981 e agosto do ano seguinte, foram notificados 11 mil casos em Boa Vista, Roraima, epidemia que marca o início de um olhar mais atento à “nova doença”, diz Lara. Pelo menos em relação à ciência, pois as autoridades públicas encararam o episódio como um surto isolado. A reação só ganhou fôlego, com projetos de pesquisa mais significativos, debates científicos e ações políticas, quando o mosquito se espalhou e chegou em Nova Iguaçu (RJ), em 1986.
Em abril daquele ano, o então ex-diretor-geral do Departamento de Erradicação e Controle de Endemias da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam), Pedro Luís Tauil, afirmou, em debate promovido pela Fiocruz, que a dengue era considerada uma abstração, apesar da epidemia ocorrida anteriormente em Roraima. “A repercussão que houve nos grandes centros foi mínima, e nós, lamentavelmente, mesmo com a dengue em Roraima, na ocasião, não conseguimos levantar os recursos necessários, junto aos órgãos de decisão do governo, para uma campanha de erradicação do Aedes no Brasil”.
Por que razão a epidemia no Rio de Janeiro, diferentemente de Boa Vista, chamou mais atenção dos jornais e das autoridades públicas? Segundo Lara, ajuda a explicar a mudança de reação a maior magnitude do segundo evento, associada ao contexto nacional, marcado pela redemocratização e pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, evento no qual foram lançadas as diretrizes do que viria a ser o Sistema Único de Saúde (SUS).
Divergências sobre a gravidade da doença
Naqueles primeiros momentos da dengue no Rio de Janeiro, o contraste de opiniões em reuniões sobre o tema era patente. “Enquanto alguns especialistas apontavam a gravidade da situação e defendiam uma ação rápida das autoridades, outros acreditavam, com base em estudos que indicavam uma baixa taxa de infecção predial pelo Aedes aegypti, que a capital do Rio de Janeiro sequer seria atingida. Em poucos dias, entretanto, os primeiros casos de dengue na Zona Sul começaram a aparecer”, diz o artigo.
Parte das autoridades e os jornais a consideravam uma “doença nova, benigna ou passageira”. Mas também havia espaço para se falar das dificuldades: “A Sucam em Nova Iguaçu só tem 80 fiscais para cobrir uma área de 764 quilômetros quadrados e uma população de 2 milhões de habitantes, a maioria vivendo em locais insalubres, propícios à contaminação pelo mosquito aedes aegypt [sic]”, noticiava o Jornal do Brasil em abril de 1986.
Quando a dengue emergiu no Rio de Janeiro, o Centro de Virologia Médica, ligado ao Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), contava com mais de uma década de atividades. Criado em 1977, foi transformado em departamento em 1980, fruto do empenho do virologista Hermann Schatzmayr (1936-2010), que chefiou a unidade por 30 anos. Apesar de participar de estudos sobre diversos vírus, a dengue passaria a ser um dos seus principais objetos de pesquisa até a sua morte.
“Ninguém tinha experiência em dengue aqui”
A reação do Departamento de Virologia ao surto epidêmico no Rio de Janeiro foi rápida. Logo após o surgimento dos casos, eles isolaram o vírus da dengue tipo 1, em soro de pacientes de Nova Iguaçu, por meio de técnicas de imunoflorescência e utilização de anticorpos monoclonais. O grupo foi também responsável pelo diagnóstico de dengue no Brasil. “Ninguém tinha experiência em dengue aqui, ninguém tinha soro, não tinha nada”, contou Schatzmayr, em depoimento concedido em 2002, para projeto realizado pela COC/Fiocruz.
A equipe também foi responsável pelo isolamento dos sorotipos 1, 2 e 3 do vírus da dengue, o qual passou a ser sistematicamente estudado pelo Laboratório de Flavivírus do IOC, criado em resposta direta à epidemia de dengue de 1986 e chefiado por Rita Nogueira. Em sua análise, o historiador concluiu que o trabalho então realizado na unidade foi “consistente ao longo do tempo” e que Schatzmayr e Nogueira “não só construíram uma nova agenda, aprendendo, aplicando e aprimorando técnicas modernas, mas também se tornaram um polo incontornável desses estudos”.
Descompasso entre ciência e política
Diante do quadro atual, quando os indicadores da dengue apontam para a franca ascensão da doença no país, apesar dos significativos avanços na produção do conhecimento na área, Lara chama atenção para o descompasso entre ciência e política. “É triste pensar que nos tornamos referência em vírus, mosquitos, doenças infecciosas e ainda sofremos tanto com a dengue”, avalia o historiador, chamando atenção para a importância da universalização do saneamento básico no combate à doença, por limitar a proliferação dos mosquitos vetores. Segundo pesquisa do IBGE sobre o tema divulgada em 2020, quatro em cada dez municípios brasileiros não têm esgotamento sanitário, ou seja, os dejetos escorrem à céu aberto.
A falta de políticas públicas orientadas pela ciência, no entanto, não é de hoje. Também estava presente no contexto do surgimento da dengue no Rio de Janeiro, na década de 1980. “O descompasso, assim, entre as medidas e ações das autoridades públicas e as atividades realizadas no intercâmbio entre especialistas de diferentes áreas é evidente e indica como o problema foi se desenvolvendo de modo particular, por um lado, recebendo pouca atenção do Estado, e, por outro, tornando-se uma agenda interdisciplinar de pesquisa”, escreveu.
Sobre eventuais semelhanças entre a emergência da dengue e da Covid-19 no país, apesar das diferenças de escala, Lara pontua que, na década de 1980, já existia negacionismo, embora não tão organizado quanto hoje. Além disso, a artimanha do “empurra” já se fazia presente. “Sabe aquela história de um jogar para o outro a responsabilidade em relação à doença? Isso aconteceu bastante no caso do Rio”, diz ele. Infelizmente, na gestão de políticas públicas, perguntas como “de quem é o mosquito” e “de quem é o vírus”, seguem atuais.