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03/05/2013

Coordenadora do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura aborda o conceito de comensalidade

Nathállia Gameiro


Apesar de toda a transformação na atual maneira de se alimentar, é possível perceber que o hábito de comer em conjunto e o prazer de fazê-lo não desapareceu. Para muitos, a comida perde o sabor quando a refeição é feita sozinha. É fácil perceber a necessidade do homem em compartilhar e agregar a experiência de comer em conjunto, além e praticar também um ritual de sociabilidade. A comensalidade acompanha a sociedade há anos. Derivado do latim – "mensa" –, o termo significa conviver à mesa, que envolve não somente o padrão alimentar e o que se come, mas principalmente o modo como se come. Segundo o termo, a alimentação revela a estrutura da vida cotidiana e um sistema simbólico de códigos sociais que operam no estabelecimento de relações dos homens entre si e com a natureza. A coordenadora do Programa de Alimentação, Nutrição e Cultura da Fiocruz Brasília (Palin), Denise Oliveira, explica de forma mais aprofundada o conceito e suas aplicações na entrevista a seguir.



O que significa comensalidade?

Denise Oliveira:
O conceito é comer junto. Podemos trabalhar a ideia da comensalidade na perspectiva de que a essência do ser humano é comer de forma coletiva, embora nós tenhamos todo esse aparato do corpo e comemos sozinho. O ato biológico é solitário, pois ninguém mastiga por você, mas conforme o homem vai se socializando em uma comunidade, esse caráter é fundamental. Se você for ver os hominídeos, eles também tinham o horário de se alimentar com os outros. Essa é uma essência que não se perde.



Quando surgiu este conceito?

Denise:
Na época dos hominídeos, quando eles se reuniam na frente de uma fogueira. Os estudos mostram que foi pelo fogo que conseguimos nos unir. Já que o ser humano é a única espécie animal que tem a capacidade de modificar os seus alimentos, o fogo foi esse elemento transformador. O fogo ainda permanece e permite que você cozinhe, asse ou defume a comida. Ao longo da nossa experiência como seres humanos na Terra, o fogo apresenta características diferenciadas que aparece em todas as culturas. Com certeza o fogo já é um pressuposto da incorporação de hábitos culturais. Ele permanece entre nós e essas maneiras de utilizá-lo são de fato fundamentais para a gente compreender como que isso se desenvolve.



O que a mesa representa?

Denise:
A mesa é fundamentalmente uma expressão simbólica na reunião. Antigamente, na natureza humana já não tinha mesa, mas por estimações arqueológicas sabe-se que eles se organizavam em torno do fogo. A mesa é uma invenção do século 17, ela não é tão nova e começa com a população de baixa renda e toma à proporção que tem hoje. A comensalidade vem do termo “mensa”, que é mesa. Então estar em torno da mesa é um caráter que vai se associar à essência do ser humano e é um exercício dessa porção social dele.



A comensalidade depende da cultura?

Denise:
Este é um conceito que está inserido na sociedade há anos, que apresenta um constructo antropológico e social muito incorporado nas celebrações e nos ritos, muito pouco voltado para a saúde. E a minha função como pesquisadora é trazer esse constructo social para a saúde, porque nós não somos só seres humanos que comemos só por comer. Nós comemos símbolos, ritos e muito mais do ponto de vista social do que biológico.



Nós, seres humanos, nos alimentamos de forma ritualística. Confundimos ritual com alguma coisa religiosa, como se fosse uma celebração. É também, mas o rito está na nossa essência. Quem come primeiro, o que come, como devo me comportar. A comensalidade tem diversas dimensões que nos permite desenvolver toda essa compreensão. Há uma dimensão social maior do que uma dimensão biológica nisso.



A comensalidade passou por mudanças ao longo dos anos?

Denise:
A gente sabe que hoje a televisão funciona como uma mesa. Quando você vê alguns programas de culinária, você está à mesa com aquelas pessoas também. Não julgamos se isso é errado ou não, mas esta mesa tomou uma proporção diferenciada. Hoje não se tem uma mesa especificamente como a gente imaginava que havia. Claro que é importante que a gente tenha uma mesa, e em quase todas as culturas ocidentais ela está presente. Na cultura japonesa a mesa não é igual, mas existe um suporte para apresentar os alimentos. Na verdade, o que me chama muita atenção não é a mesa em si, mas a necessidade de organizar o que vai comer com algum suporte. Essa é a visão tradicional disso.



Qual é a relação entre comensalidade e saúde?

Denise:
O fato de nós termos hoje pessoas com excesso de peso e obesidade nos leva pensar que há outras questões que estão em jogo nesta compreensão, que fazem a gente se aproximar de outras vertentes de compreensão da alimentação humana. A gente não come só nutriente. Eu me alimento também do ponto de vista social. Até então, os estudantes da nutrição e os profissionais de saúde não sabem dialogar sobre essa capacidade social. Eles têm uma capacidade incrível de dialogar sobre aspectos biológicos, deixando de lado os aspectos sociais. A possibilidade de trazer esta disciplina para alunos de pós-graduação em Nutrição veio para que estas pessoas comecem a incorporar esse conceito ao formar profissionais, na prática e, sobretudo, na própria pessoa.



Pode-se dizer que o movimento fast food transformou o ritual da alimentação, substituindo a mesa familiar e não permitindo a comensalidade?

Denise:
O sujeito que come um fast food também está exercendo a comensalidade. O que vemos hoje é que a comensalidade não é igual ao que era na década de 50, por exemplo, onde a família sentava junto para se alimentar. Isso não tem o mesmo valor simbólico que havia na época. Há hoje uma nova estrutura de se alimentar. Não estamos aqui para julgar, essa é a modernidade.



Disciplina



A relação entre comensalidade e saúde é tema de disciplina do Programa de Pós-Graduação da Universidade de Brasília (UnB), realizada em parceria com a Fiocruz Brasília. O curso, com carga horária de 32 horas/aula, foi iniciado em 3 de abril, na Fiocruz Brasília, com uma aula inaugural ministrada pela coordenadora do Programa Palin, Denise Oliveira e Silva, e pela professora da UnB Elisabetta Recine. O curso tem como objetivo discutir o conceito de comensalidade e sua relação com a saúde humana, hábitos, costumes e práticas alimentares no Brasil. A disciplina pretende ainda contribuir para a incorporação do conceito na compreensão da problemática alimentar e nutricional brasileira atual.


Publicado em 3/5/2013.

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