04/08/2020
Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)
O Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), a Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), a Rede de Escolas de Saúde Pública da América Latina (Resp-AL), a Aliança Latino-Americana de Saúde Global (Alasag), a Rede Argentina de Escolas de Saúde Pública e a Rede Internacional de Técnicos em Saúde (Rets), que costumam atuar em parceria, promoveram o seminário internacional Vacinas e medicamentos para Covid-19 como bens públicos globais. O evento pode ser assistido, na íntegra, no canal da VideoSaúde Distribuidora no YouTube.
Realizado online, o encontro teve como objetivo refletir a respeito do acesso a vacinas e medicamentos contra a Covid-19, pelos países em desenvolvimento. Os palestrantes foram o assessor do ministro da Saúde da Costa Rica, Albin Chaves; o pesquisador da Fundação Ifarma (Colômbia), Francisco Rossi; o diretor do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Maurício Zuma; o pesquisador do Cris/Fiocruz e secretário-executivo da Alasag, Sebastián Tobar; e o pesquisador da Fiocruz Jorge Bermudez.
Tobar, que foi o mediador do seminário, lembrou que o acesso a vacinas e medicamentos contra o novo coronavírus devem ser bens públicos globais, como recomendou a Organização Mundial da Saúde (OMS) em sua última assembleia-geral. “O vírus não respeita fronteiras. E ao imunizarmos uma pessoa também beneficiamos outras. No entanto, sabemos das imensas dificuldades para garantir acesso a todos, sobretudo nos países mais pobres, que concentram a maior parte da população mundial. Existem grandes assimetrias entre os países e mesmo dentro dos países. Nesse sentido, tendo em vista as muitas limitações com as quais nos confrontamos, precisamos ter a responsabilidade de garantir o acesso a todos. A cooperação internacional servirá exatamente para esse fim: fazer esforços para que todos possam ser imunizados. Não é admissível que grandes conglomerados farmacêuticos globais desenvolvam uma vacina e limitem o acesso, cobrando valores altíssimos pelo produto, inviabilizando que os pobres sejam imunizados”.
Tobar lembrou uma frase dita em 1955 pelo virologista Jonas Salk, que acabara de descobrir a vacina contra a poliomielite, sobre quem teria a patente. Salk respondeu com uma pergunta que entrou para a História: “Não há patente. Você poderia patentear o sol?”.
Em seguida houve a intervenção do pesquisador da Fiocruz Jorge Bermudez. Ele disse que a pandemia impactou todo o mundo, mas as respostas foram diferentes, deixando ainda mais claras as desigualdades globais e inclusive aprofundando-as. “Moradores de rua, ambulantes, pessoas que habitam comunidades pobres, indígenas... todos esses grupos estão à margem do aceso aos tratamentos e poderão ficar de fora da imunização. Por isso nos cabe um esforço para impedir que essa situação se concretize”.
Para Bermudez, o falso dilema entre salvar vidas ou salvar as economias não pode permitir uma paralisação de iniciativas. “Há uma dificuldade em enfrentar as desigualdades, mas temos visto reuniões da ONU, da OMS, dos ministros da Saúde do G-20 e também de outros fóruns internacionais, com alinhamento à Agenda 2030. É necessário um plano global de ação em saúde pública, que abranja inovação e propriedade intelectual, regulação, preços adequados, acesso, cobertura, compras conjuntas e abastecimento para que possamos dar uma resposta à altura desse desafio ímpar”.
Bermudez alertou, no entanto, que a solidariedade demonstrada até o momento por muitos líderes poderá não sair do papel. “Vemos uma corrida de alguns países ricos em se apropriar e comprar tudo, deixando os pobres à míngua. Afinal, vivemos em uma sociedade predadora e excludente. É revoltante e assustador saber que se fala em uma vacina que, de acordo com alguns fabricantes internacionais, poderá custar até US$ 40 a dose! Isso é a negação da solidariedade e reflete uma concepção de mundo egoísta e cruel”.
“Foi criado um grupo parlamentar progressista ibero-americano para construir uma proposta regional que permita o acesso, a todos, dos tratamentos contra a Covid-19. Para além disso, precisamos estar dispostos a lutar por um ‘novo normal’, com um mundo mais solidário e acolhedor, que compartilhe conhecimento e bloqueie monopólios. E temos promover maior equidade nesta região de 570 milhões de habitantes”.
Bermudez encerrou sua participação lembrando uma frase que a então primeira-ministra da Índia, Indira Gandhi, proferiu na assembleia-geral da ONU em 1982. “A ideia de um mundo melhor ordenado é um mundo em que descobertas estarão livres de patentes e não haverá lucro com a vida e a morte”.
Depois houve a intervenção do assessor do ministro da Saúde da Costa Rica, Albin Chaves. Ele discorreu sobre o sistema de saúde de seu país, que tem a menor taxa de mortalidade por Covid-19 na América Latina. Essa realidade se deve muito à atuação das Equipes Básicas de Assistência Integral à Saúde (Ebais), que estão na linha de frente do combate à pandemia no país centro-americano. As Ebais são mais de mil centros de saúde espalhadas pelo país, com médicos, enfermeiros, assistentes técnicos e farmacêuticos. Chaves narrou a atuação da Caixa Costa-Riquenha de Seguro Social (CCSS), que mantém uma dúzia de hospitais. O país investe mais de 6% do seu Produto Interno Bruto em saúde e praticamente 100% da população tem água encanada em casa. “Nossos princípios são equidade, solidariedade e universalidade”.
“O país investe maciçamente, dentro de suas possibilidades, em prevenção. Dispomos de políticas públicas claras a respeito de vacinas e medicamentos. No plano internacional, o governo da Costa Rica propôs à ONU um plano que prevê colaboração internacional, parcerias e acesso ao conhecimento. Existem dificuldades, claro, porque nem todos têm as mesmas intenções. Mas este é o caminho”. A Costa Rica é o país da América Latina com a expectativa de vida mais alta ao nascer: 77,75 anos de idade. E um dos países com a mais baixa taxa de mortalidade: 10,82%.
O pesquisador da Fundação Ifarma (Colômbia), o epidemiologista Francisco Rossi, que também trabalhou na OMS e na Opas, interveio em seguida. De acordo com ele, a batalha pelo acesso a vacinas e medicamentos contra a Covid-19 é uma das principais pautas de atuação da Ifarma neste momento. Rossi, no entanto, foi categórico ao deixar clara a sua posição: “se for para voltarmos ao ‘antigo normal’ é melhor não termos vacina. Isso porque o que tínhamos, e continuamos a ter, quando vemos o nacionalismo exclusivista de países como os Estados Unidos, era um mundo desigual e com profundas iniquidades. É forçoso superar essa realidade”.
Para Rossi, a pandemia é um problema global que necessita de respostas globais e humanitárias, desvinculadas da ideia de lucro. “E é também um ótimo momento para discutirmos a questão das patentes. No caso de medicamentos, elas não deveriam existir. A propriedade intelectual representa uma barreira ao acesso a medicamentos”. Segundo Rossi, as tensões que surgem entre os direitos humanos e os direitos comerciais das empresas farmacêuticas são uma situação relevante para os países da região. Ele acrescentou que as multinacionais farmacêuticas procuram formas de gerar monopólios na distribuição de medicamentos. “A esperança está na elaboração de instrumentos legais como oposição a patentes, licenciamento obrigatório e produção local, entre outros”.
O diretor do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Maurício Zuma, foi o participante seguinte. Zuma apresentou ao público do evento, em grande parte latino-americano, a trajetória da Fiocruz, com seus êxitos e conquistas, e sua presença em todas as regiões do Brasil. Também abordou a atuação internacional da Fundação e as muitas parcerias com instituições de pesquisa de diversos países em todos os continentes. Ele disse que o conceito de saúde como bem público de todos está no cerne da Fiocruz desde sua criação, há 120 anos.
Zuma também apresentou o trabalho de Bio-Manghinhos e sua produção de vacinas, kits para diagnóstico, biofármacos, vacinas, estudos clínicos e ainda a qualificação de recursos humanos. “Nos últimos cinco anos o Instituto produziu 517 milhões de doses de vacinas, 47 milhões de frascos de biofármacos e 32 milhões de kits para diagnóstico. Exportamos para mais de 70 países as vacinas de febre amarela e meningite ACW e estamos construindo o Complexo Industrial de Biotecnologia em Saúde (Cibs), que ampliará a oferta de vacinas e biofármacos para atender não apenas aos programas públicos de saúde como também a demanda externa (OMS, Opas, Unicef) e quadruplicar a capacidade de produção, além de permitir a introdução de novos produtos”. O diretor também comentou a parceria com a farmacêutica AstraZeneca para produzir a vacina contra o novo coronavírus e disse que a Fiocruz está comprometida com o acesso. Segundo ele, o custo de cada dose, para o governo, deverá ficar em menos de US$ 4.
Em seguida foram feitos breves comentários, por participantes previamente escolhidos, a respeito das apresentações. O coordenador do Cris/Fiocruz, Paulo Buss, disse que o Grupo dos 77 solicitou uma reunião da assembleia-geral da ONU para discutir o acesso às vacinas contra a Covid-19. O Grupo é uma coalizão de nações em desenvolvimento que tem por meta promover os interesses econômicos de seus membros e criar uma maior capacidade de negociação conjunta na ONU. “Defender a equidade é uma luta política difícil, mas, além de necessária, urgente. No caso da Fiocruz mostramos que a instituição pode ser um player importante no plano internacional e ficou mais uma comprovada a qualidade do servidor público”. Buss, porém, enxerga para além das fronteiras nacionais. “Vamos suprir as necessidades dos cidadãos brasileiros. Mas também seremos solidários com nossos irmãos latino-americanos e dos países africanos de língua portuguesa”.
O comentário seguinte foi da advogada Mirta Levis, da Associação Argentina de Saúde Pública, diretora do Centro de Estudos em Saúde Global da Universidade Isalud e ex-diretora-executiva da Associação Latino-americana de Indústrias Farmacêuticas. Ela fez um rápido balanço da situação dos países da região e observou que a maior parte dos países do subcontinente não tem capacidade para produzir a vacina contra a Covid-19, o que torna ainda mais importante a cooperação internacional. “Não podemos manter esse sistema que sempre deixa os países em desenvolvimento como os últimos da fila. E infelizmente há chances de que isso novamente ocorra, se a tendência concentradora se confirmar”. Depois foi a vez do diretor do Instituto Nacional de Saúde do Peru, Pedro Riega. Ele lamentou o que chamou de “precariedade crônica” do sistema de saúde de seu país, que se agravou nesta pandemia. Ele disse que há uma articulação de instituições acadêmicas peruanas com outras de países vizinhos visando minorar esse problema, trocar experiências e conhecer iniciativas exitosas.
Por fim, houve o comentário do assessor da Coordenação de Cooperação Internacional da Escola Politécnica de Saúde (EPSJV/Fiocruz), Helifrancis Condé Groppo Ruela. Segundo ele, é importante não naturalizar este momento, em especial a partir de uma perspectiva crítica que parta da saúde coletiva, da epidemiologia política e dos determinantes sociais da saúde. “A Covid-19 é fruto de um modo de produção destrutivo e predador”, frisou Ruela. Para o assessor, deve-se focar não somente os necessários tratamentos e a vacina adequada, mas também discutir as iniquidades e desigualdades estruturais dos sistemas de saúde. “A pandemia também abalou processos formativos, já que os alunos estão sem acesso aos serviços de saúde. É uma geração que não conseguirá se formar de maneira adequada”.
Ao final do evento os participantes acompanharam uma apresentação especial de vários músicos latino-americanos. Eles interpretaram a canção Latinoamerica, da banda porto-riquenha Calle 13, que prega a união dos povos da região.