15/03/2021
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) lançou (5/3) o boletim da pesquisa Monitoramento da saúde, acesso à EPIs de técnicos de enfermagem, agentes de combate às endemias, enfermeiros, médicos e psicólogos, no município do Rio de Janeiro em tempos de Covid-19. O documento foi desenvolvido pela equipe da pesquisa, que conta com doze professoras-pesquisadoras da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), em parceria com pesquisadores do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), do Núcleo de Saúde do Trabalhador (Nust/Fiocruz) e das universidades Federal Fluminense (UFF) e do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Entre outros produtos, a pesquisa elaborou um painel digital e irá produzir um curta-metragem e publicar artigos científicos.
Financiada através do edital Encomendas Estratégicas, do Programa da Fiocruz de Fomento à Inovação, o Inova Fiocruz, a pesquisa surgiu da demanda de sindicatos e associações profissionais das categorias profissionais mencionadas, com o objetivo de produzir e ampliar as informações sobre o impacto da pandemia de Covid-19 na saúde desses trabalhadores que estão na linha de frente do combate ao novo coronavírus e que atuam em serviços públicos de saúde na atenção primária, especificamente na Estratégia Saúde da Família (ESF), na atenção psicossocial, nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) e nas Unidades de Pronto Atendimento (UPA) do município do Rio de Janeiro.
Segundo a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, Mariana Nogueira, que coordena o estudo em conjunto com as também professoras-pesquisadoras Letícia Batista e Regimarina Reis, a cidade do Rio de Janeiro, nos últimos 20 anos, tem sido um grande laboratório de reformas urbanas e administrativas, efeitos do neoliberalismo, com padrões estabelecidos pelo Banco Mundial. “Houve consolidação de uma administração pública empresarial, com adesão ao modelo de gestão público-privada por meio de Organizações Sociais de Saúde”, aponta.
Entre 2009 e 2016, houve grande expansão da cobertura em Atenção Primária, que subiu de 7,3% para 62,2%. “Esse processo, ao mesmo tempo em que ampliou o acesso ao [Sistema Único de Saúde] SUS para a população trabalhadora, foi realizado a partir das terceirizações, produzindo fragmentação da força de trabalho da saúde, diferentes empregadores e disparidades salariais”, explica a professora-pesquisadora.
Antes da pandemia, de acordo com Mariana, houve uma importante redução das equipes da Estratégia de Saúde da família, demissões nos Caps e intensificação da precarização dos vínculos também nas Upas. “Com o cenário político e econômico se agravando ainda mais na pandemia, com alto índice de desemprego na cidade, demissão de trabalhadores da saúde dos hospitais federais, um ainda baixo percentual de vacinados, ausência de coordenação do governo federal e desmonte das políticas públicas, em especial do SUS, é fundamental evidenciarmos e analisarmos as condições de enfrentamento a pandemia no SUS nas portas de entrada da Atenção Psicossocial, na Atenção Primária e no Pronto Atendimento”, destaca.
De acordo com Mariana, a taxa de letalidade da pandemia na cidade do Rio de Janeiro é de, aproximadamente, 9%, ou seja, 3,6 vezes maior do que a taxa de letalidade nacional. Ela destaca que esse percentual reflete as condições de vida e de trabalho da população trabalhadora, assim como convoca todos a avaliar sobre as condições às quais estão submetidos os trabalhadores que estão na linha de frente, como os profissionais do SUS. “Portanto, a importância dessa pesquisa e dos seus produtos, como o boletim, o painel e o curta-metragem, está, justamente, na possibilidade de identificar a relevância do investimento público no SUS para o combate à pandemia, tanto no que se refere às condições de trabalho e saúde do trabalhador, quanto em relação à garantia de direitos associados ao trabalho e o acesso à formação profissional de trabalhadores que atuam em uma cidade que é extremamente desigual, polo de referência para a Baixada Fluminense e uma das principais capitais do país”, explica, e acrescenta: “Esperamos que, ao dar visibilidade aos trabalhadores do SUS, suas condições no serviço e suas condições de saúde e formação, possamos contribuir, também, para o fortalecimento de um sistema de saúde universal, 100% público e que oferte cuidados com qualidade para a população”.
Alguns resultados
Participaram da pesquisa, 258 profissionais atuantes em serviços que funcionam como porta de entrada do SUS. Dentre eles, 76,6% (198) informaram que atuam na ESF, 12,9% (33) em UPAs municipais e 10,5% (27) em CAPS. Em relação às categorias profissionais, os enfermeiros somam 27,5% (71) dos respondentes; os técnicos de enfermagem são 25,6% (66); os agentes de combate às endemias (ACE) são 21,7% (56); os médicos somam 14% (36); e os psicólogos são 11,2% (29). Quanto ao tipo de vínculo empregatício, 50,8% (131) dos respondentes relataram serem celetistas; 35% (90) são estatutários; 6,9% (18) informaram ter contrato temporário; 3,9% (10) recebem remuneração por bolsas a partir de pós-graduação, nos moldes de residência; 2,1% (6) declararam ter “outro tipo” de vínculo; e 1,3% (3) declarou ter vínculo como pessoa jurídica (PJ).
Segundo o boletim, esses resultados mostram "a presença de vínculos empregatícios que não asseguram estabilidade no emprego e acesso a direitos trabalhistas para profissionais que estão na linha de frente do enfrentamento à pandemia. O vínculo empregatício de PJ e contrato temporário são expressões da precarização do trabalho, já que aumentam a vulnerabilidade do trabalhador ao assédio dos empregadores e a insegurança em relação ao futuro, possibilitam a ausência de remuneração em caso de adoecimento e, até mesmo, de demissão do trabalhador após o adoecimento e afastamento por Covid-19". Em relação ao perfil dos trabalhadores, a pesquisa revela ainda dados sobre gênero, raça e cor.
Foram obtidos também resultados relevantes do ponto de vista do acesso e uso dos profissionais a Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), alterações nos processos de trabalho e impacto nas condições de saúde, os quais apontam para a situação de vulnerabilidade dos trabalhadores da saúde na pandemia, tanto dentro dos serviços de saúde, como no contexto social em que estão inseridos.
Regimarina destaca que, dentre os profissionais participantes, 32,9% referiram não ter recebido EPIs em quantidade suficiente para o trabalho. Mesmo as condições mínimas para o funcionamento dos serviços de saúde, como a disponibilização de água e sabão, não estavam plenamente atendidas - 17,3% dos trabalhadores responderam que não havia água e sabão disponíveis todas as vezes necessárias. Parte dos trabalhadores (35,3%) também referiram insegurança sobre a correta utilização de EPIs. “Relacionado a isso parece estar o fato de que os trabalhadores também relataram a não disponibilização de formação/treinamento sobre o manuseio de EPIs (52,5%) e sobre a Covid-19 (44,5%). Para além desses aspectos, a identificação de atraso de salários (23,9%), aumento na intensidade do trabalho (57,6%), menção a sentimentos de angústia (60,1%) e tristeza (65,4%) são também componentes que sinalizam como os impactos da pandemia se capilarizam pela vida dos trabalhadores de modo amplo e não somente no interior dos estabelecimentos de saúde”, observou a pesquisadora.
Segundo ela, condições estruturais e processos de trabalho insuficientes e/ou alterados se conjugam em um contexto em que nem todos os trabalhadores tiveram acesso à testagem. Mais da metade (54,8%) dos participantes da pesquisa referiram sintomas associados à Covid-19 e 24,6% testaram positivo para o novo coronavírus. Para Regimarina, é evidente a negligência das esferas de gestão municipal e federal na garantia das condições materiais para que os profissionais da saúde atuem plenamente no enfrentamento à pandemia por Covid-19 e tenham garantido o seu direito à saúde. “O esvaziamento das decisões da esfera federal, modelos de gestão que não priorizam o sistema público de saúde e falhas na conjunção dos diferentes elementos que compõem as medidas necessárias ao enfrentamento da pandemia são hiatos do manejo que, certamente, se refletem nas altas taxas de mortalidade dos trabalhadores da saúde e suas condições de trabalho”, aponta.
Acesse aqui o site da pesquisa.