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26/06/2020

Covid-19: pediatra fala sobre como isolamento social influencia a saúde mental infantil

Suely Amarante (IFF/Fiocruz)


Para as crianças, adaptar-se ao cenário de isolamento social exigido pela pandemia do novo coronavírus pode ser difícil. A vida seguia seu percurso normal, mas, de repente, tudo mudou. Uma nova rotina, sem escolas, creches, sem contato com os colegas, sem passeios chegou e trouxe à vida de todos, especialmente dos pequenos, muitas mudanças e adaptações. A saudade do mundo de antes, difícil, mas conhecido, do contato físico acompanhado de beijos e abraços que não traziam o temor e o medo. A rotina dos coletivos escolares, das festas de aniversários, dos almoços e reuniões familiares, tudo isso teve que dar lugar ao distanciamento social, necessário para conter a propagação do inimigo invisível e pouco conhecido. Existem diferentes percepções sobre esse período de desafios, o que torna ainda mais importante o convite para pensar, ouvir e falar com empatia e respeito, principalmente com as crianças.

Para explicar esse momento de transformação carregado de sentimentos e expressões na vida dos pequenos, a médica pediatra e terapeuta de família na Coordenação Técnica de Saúde Mental do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), Maria Martha Duque de Moura, foi convidada para uma entrevista.

IFF/Fiocruz: As crianças precisam ter ciência de tudo que está acontecendo?

Maria Martha Duque de Moura: As crianças têm o direito de saber e acompanhar o que está acontecendo. Os adultos devem achar a dose, a quantidade de informações e evitar sobrecarregá-las. É importante filtrar e limitar a avalanche de notícias que chegam em nossas casas todos os dias, além de escolher fontes seguras e confiáveis. Os pequenos também devem ser assegurados de que papai e mamãe estão tomando providencias e vão cuidar do assunto.

IFF/Fiocruz: Como os pequenos respondem ao estresse que estão sendo expostos?

Maria Martha Duque de Moura: É natural a nossa estranheza com o “novo normal”, todas as preocupações com contágio, limpeza e prevenção.  Inevitáveis os impactos psicológicos do isolamento na vida das pessoas, inclusive das crianças. Reações de medo de adoecer e morrer, de perder pessoas queridas, com isso, as crianças expressam seu medo através de crises de angústia, irritabilidade, tristeza, alterações do apetite e sono. Ninguém é forte o tempo todo, por isso, é importante respeitar os momentos de tempestade de cada um em casa. Os conflitos interpessoais são proporcionais ao tamanho da tarefa coletiva.

IFF/Fiocruz: Como o isolamento social impactou no desenvolvimento escolar das crianças?

Maria Martha Duque de Moura: Os seres humanos aprendem se relacionando com seu entorno. A criança aprende ao explorar o mundo, ao brincar sua realidade. Ainda que a creche e a escola não sejam os únicos espaços de cuidado e aprendizagem, ali encontramos processos sistematizados que pretendem impulsionar a aquisição de conhecimentos. As instituições educacionais promovem também a oportunidade de encontros com os pares, pessoas de idades e momentos cognitivos aproximados. Esses encontros promovem o que o autor Lev Vygotsky chamava de zona proximal de conhecimento, que contribui em muito para o aprendizado. A socialização, o exercício de convívio no coletivo complementa e é consequência preciosa da frequência à escola.

IFF/Fiocruz: A família pode contribuir para amenizar essa ausência do ambiente escolar?

Maria Martha Duque de Moura: A falta da escola trará consequências proporcionais a duração deste afastamento, bem como a capacidade do entorno da criança em promover oportunidades de aprendizado e socialização, ainda que, em momentos de pandemia, muitas vezes virtuais. Na família, a convivência entre gerações pode representar preciosos momentos de coeducação. Esse momento excepcional pode, inclusive, afetar positivamente a criança, pois aprendemos muito nesse período, desenvolvemos talentos como criatividade, paciência e flexibilidade. Muitos pais, habitualmente, muito ocupados no dia a dia estão tendo mais tempo para estarem com seus filhos, possibilidade se conhecerem mais e se apoiarem.

IFF/Fiocruz: Como os pais podem amenizar a angústia dos pequenos e ajudá-los a enfrentar esse período de isolamento social?  

Maria Martha Duque de Moura: Os pais podem ajudar seus filhos conversando com eles, reconhecendo as dificuldades de todos e assegurando, demonstrando que nós adultos estamos tomando providencias. Explicando, inclusive, que o uso de máscaras, a lavagem das mãos, os cuidados em casa e o isolamento são providências e que as crianças estão fazendo sua parte. Ajudam também criando oportunidades para pequenos grandes trabalhos em casa, como cuidar de encher as garrafas de água da geladeira, ajudar a arrumar o quarto ou preparar a comida da família, molhar as plantas, cuidar dos animais de estimação, entre outros. As crianças devem ser incentivadas a manterem contato frequente com amigos e familiares mediados pelas diversas tecnologias, como WhatsApp, plataformas de reuniões, Skype, etc. Sobretudo aquelas que permitem o contato visual que ampliam as possibilidades de comunicação.

IFF/Fiocruz: Quando os pais devem procurar ajuda de um profissional para intervir no comportamento da criança devido ao isolamento social?

Maria Martha Duque de Moura: Ninguém é forte o tempo todo. Todos temos nossos momentos mais difíceis e estes precisam ser respeitados. Por vezes, os conflitos interpessoais transbordam nossas possibilidades naquele momento e a busca de ajuda pode ser norteada pela intensidade das reações, dos sintomas e sua duração. Vale estimular cada membro da família a observar sua necessidade. A companhia de um profissional da psicologia pode ser uma das providências tomadas pelos adultos responsáveis. Em momento de pandemia, o desafio das terapias on-line, até de crianças pequenas se agrega. Ainda que virtualmente. O importante é a qualidade dos encontros e, felizmente, podemos contar com a tecnologia.

IFF/Fiocruz: Nesse momento de isolamento, tanto os adultos quanto as crianças estão expostos a uma grande carga de estresse emocional. Isso, muitas vezes, acaba acarretando impaciência e gerando violência intrafamiliar infantil. Como isso pode ser evitado?

Maria Martha Duque de Moura: Sim, ninguém é perfeito nem está bem todo o tempo. É necessário, ao meu ver, muita compaixão com a gente e com o outro. Reconhecer que passou da medida e conversar. O isolamento social na pandemia aumentou o convívio em casa, diminui as possibilidades de suporte comunitário, de parcerias com creches e escolas no cuidado com as crianças. As preocupações dos adultos com a garantia da subsistência, com as perdas financeiras, aliada ao aumento do consumo de álcool e outras substâncias podem contribuir com a violência intrafamiliar, entendida como moral, física, sexual, ou mesmo falta de cuidado (privação ou abandono). Nesses casos, as redes de atenção psicossociais podem ser acionadas. As parcerias intersetoriais (saúde da família, serviço social e escola) podem, inclusive, cuidar ativamente de crianças em situação de maior risco, com histórico de violência intrafamiliar.

IFF/Fiocruz: Os que os pais podem fazer para conciliar tarefas domésticas, trabalho home office, cuidado com as crianças e manter o equilíbrio emocional?

Maria Martha Duque de Moura: Algumas dicas preciosas podem ajudar: criar rotinas semanais nos dão maior sensação de autocontrole; contar o tempo e usar calendários são referências, desenvolver estratégias de cuidados da casa e de si e os exercícios físicos regulares trazem disposição; manter contato com sua rede sócio afetiva é fundamental. Felizmente, muitas vezes é possível contar com a tecnologia para ajudar, falar por vídeo, até diariamente, nos dá sensação de pertencimento e nos ancora. Também imaginar-se lá fora, com os amigos e fazer planos de futuros possíveis, ainda que com cuidados, nos alimenta para enfrentar as dificuldades do hoje.

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