Repetidas descontinuidades, tendências a pensar a curto prazo para apenas conter emergências, uma relação às vezes tensa e às vezes complementar entre diferentes culturas e, em meio a isso, uma série de práticas e de esforços para se criar uma saúde inclusiva e igualitária: são essas as quatro principais características da história da Saúde na América Latina segundo um de seus maiores especialistas, o historiador peruano Marcos Cueto, professor do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
Em abril, Cueto ganhou, em conjunto com Steven Palmer, da Universidade de Windsor (Canadá), o prêmio de melhor livro de saúde, ciência e tecnologia da Latin American Studies Association (Lasa), pela obra Medicina e saúde pública na América Latina: uma história.
Nesta entrevista, o historiador apresenta as principais ideias do livro, e defende que o desenvolvimento da medicina na região não foi mera cópia do que se fazia em outros lugares, mas que atores locais tiveram papel autônomo, que levaram a práticas sanitárias particulares ao continente. E afirma a importância da memória da saúde: “para alguns assuntos, às vezes militares, às vezes financeiros, sempre existe dinheiro disponível. Mas para outros, que têm a ver com a população, mas que não envolvem lucro imediato, como educação e saúde, faltam recursos. Justamente por isso que é importante manter a lembrança da história e da luta social coletiva pela saúde”.
Quais são as principais recorrências e permanências que encontramos na história da Saúde na América Latina?
Marcos Cueto: Identificamos principalmente quatro características que atravessam a história da saúde no continente. Em primeiro lugar, a medicina e as práticas de saúde aqui decorrem de uma mistura de muitas culturas diferentes. Isso é um diferencial em relação a outras regiões do mundo. Aqui, a medicina europeia se misturou com a medicina indígena e a de outras regiões, como a africana e a chinesa. Essas compreensões híbridas, mestiças sobre a saúde são uma marca do continente. Em segundo lugar, é recorrente que a saúde pública, a saúde oficial, nasça como um remendo para emergências. Não se trata de uma saúde pensando no futuro ou a longo prazo. A esse padrão definimos como uma cultura de sobrevivência. Não é feita para planificar, mas sim controlar epidemias, por exemplo. Por outro lado, um terceiro padrão que encontramos é um grupo de sanitaristas que pretendiam fazer uma saúde mais popular, mais coletiva, como por exemplo aqui no Brasil o Sérgio Arouca, mas cada país tem um personagem parecido que procurava uma saúde mais coletiva e isso chamamos a saúde na adversidade. Por último, em geral, a medicina híbrida ou a cultura de sobrevivência não conseguiu ter um projeto de longo prazo. Então, a descontinuidade é um fator recorrente na história da saúde da América Latina. Não acabar os projetos não é um defeito de nós, mas isso é parece às vezes como uma vocação, não terminar as coisas. Acho que são os padrões principais que encontramos.
O senhor falou em vocação para descontinuidade. O senhor poderia explicar melhor o que seria isso?
Marcos Cueto: Vou colocar alguns exemplos. Nos anos 1950, a prioridade na pauta em saúde era a erradicação da malária. Em 1955, acreditava-se que a malária seria erradicada em cinco ou oito anos. Quando chegou esta data e a malária não foi erradicada, o assunto mudou e o foco já não era mais aquele. Esse padrão se verifica em todos os países da América Latina – assim como em muitos do mundo. Em 1978, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decidiu em uma conferência internacional que seu alvo era “saúde para todos no ano 2000”. Em 1999, já estava claro que esse objetivo não seria alcançado. Mas, imediatamente, começaram a aparecer relatórios que diziam “Saúde para todos no século 21”.
E nos últimos anos, por exemplo, quando apareceram os antirretrovirais para a Aids, havia a proposta de três milhões de antirretrovirais para toda a população do mundo no ano de 2005. E não se chegou nessa meta. E então se mudou para um novo programa. Mas por que se faz isso? Tem a ver com um peso muito forte da política nas decisões técnicas em saúde, e também porque nós nos habituamos a este comportamento circular de não acabar o projeto. De pensar que está bem em não concluir uma iniciativa; que, quando estamos por chegar a um prazo, não fazemos um exame do que aconteceu e imediatamente já aparecemos com outro projeto.
Outro dos conceitos mencionados é o pluralismo médico. Qual a história deste pluralismo? Sua trajetória foi marcada por quais tensões? Ele pode ser verificado ainda hoje?
Marcos Cueto: Sim, o pluralismo médico se verifica ainda hoje – ainda que, em alguns países, mais que em outros, como Bolívia, Peru, Equador, Guatemala, por exemplo, que têm uma população indígena mais forte. No Brasil, essa influência é menos presente, mas ainda assim há alguma coisa. Por muito tempo, havia duas posições a respeito da medicina indígena: em primeiro lugar, uma posição oficial de perseguição. Em muitos países, até quase o fim do século 20 era ilegal praticar a medicina indígena ou outra forma de medicina além da oficial, como a homeopatia. Por outro lado, as escolas médicas oficiais não produziam a quantidade de médicos que os países precisavam, então na prática acabava fazendo-se um acordo entre o praticante da medicina ocidental europeia e o praticante da saúde não oficial, como médicos indígenas.
Havia, desta maneira, uma relação de conflitos de tolerância e perseguição ao mesmo tempo. Nos últimos anos, houve a tentativa, em alguns países mais do que em outros, de se fazer o que começa a se chamar de saúde intercultural. Uma prática na saúde que respeite outras ideias sobre o corpo humano, sobre doença, que respeite as práticas dos curandeiros. Por exemplo na Bolívia, o vice-ministro da Saúde é um médico indígena. E em hospitais permitem que ao mesmo tempo trabalhem médicos ocidentais e médicos indígenas. Muitas vezes se pensa que a medicina indígena tradicional só serve para descobrir o princípio ativo das plantas medicinais. Sabe-se, contudo, que muitas vezes o conhecimento vai muito além disso; há conhecimentos sobre o método de utilização de plantas, por exemplo, e também o tratamento psicológico que médicos tradicionais têm com seus pacientes, que é muito importante e se perde na medicina ocidental. A relação entre a medicina ocidental e a medicina indígena se mantém tensa e complementar, contraditória e conflitiva.
E o que seria a cultura da sobrevivência? No livro, diz-se que esta cultura não se caracteriza por uma política para integrar setores pobres na sociedade, mas sim para conter emergências. O senhor poderia explicar um pouco melhor o que é essa cultura? E ela também permanece ainda hoje?
Marcos Cueto: Um dos problemas da medicina e da saúde pública é sempre precisarem de alguma ideia política para serem legitimadas. Em princípio, a ideia comum é a de que a medicina e a saúde pública fornecerão o bem-estar físico e mental da população. Mas na prática não é somente assim: para os governos, ela precisa sempre ser algo mais. Isto é, muitas vezes, a saúde pública é usada como ferramenta para o crescimento econômico, ou então exige-se que a saúde pública não vá significar grande gasto no orçamento dos estados, ou ainda que a saúde pública exista apenas para controlar emergências sociais como epidemias. Essa cultura de sobrevivência pode significar, por exemplo, gastar o mínimo possível na pasta da Saúde, ou gastar mais em tratamento do que em prevenção. Ou ainda, muitas vezes é mais simples pensar no que os historiadores de saúde gostam de chamar de balas mágicas – quer dizer, um remédio que pode solucionar um problema, como as balas de prata que matavam lobisomens.
Então muitas vezes se acha que a solução para a Aids é o antirretroviral, ou que a solução para a malária são os inseticidas, ou que a solução para a tuberculose é o uso supervisionado de medicamentos. E tudo isso é importante, sem dúvidas, mas, para se enfrentar cada uma dessas três que são consideradas as principais doenças hoje, na América Latina e no mundo, são necessárias muito mais ações. Por exemplo, ao lado dos retrovirais, tem que haver uma luta de educação sexual, uma luta contra a homofobia, uma luta pela prevenção, pela participação do parceiro e pessoas doentes, etc. Ou seja, um amplo senso social de coletividade e de prevenção na saúde pública é deixado de lado nessa cultura de sobrevivência. E vemos hoje, quando tentam reduzir a pasta da Saúde, quando tentam reduzir a saúde e alguns tratamentos como fórmulas mágicas. E isso é um problema que vemos hoje.
O senhor entende a atual conjuntura de ameaças ao SUS como mais um retorno desse padrão?
Marcos Cueto: Sim, mas, na minha opinião, sendo estrangeiro, o SUS foi uma excelente ideia que deve ser respeitada e defendida. O SUS surge com a ideia de que a saúde é um direito social e do cidadão – em todos os aspectos, prevenção, tratamento, reabilitação. E agora isto está sendo esquecido para transformar o sistema em algo muito limitado, como um pacote de tratamentos para pessoas doentes ou muito pobres. O SUS tem muitos problemas, mas, como outros sistemas de saúde, surgiu com a ideia de que os direitos do cidadão não se limitam a votar, mas também a dispor de boa educação e de bom serviço de saúde. Essa ideia precisa ser resgatada.
E como você vê os críticos que dizem que o orçamento não é suficiente para poder atender a esse direito?
Marcos Cueto: Isso tem a ver com uma discussão geral da sociedade. Quais são as suas prioridades, os gastos do estado? Gastos militares? Gastos em pagar as emergências econômicas? Ou gastos em coisas que a população precisa? Eu acho que se se invertessem as prioridades, haveria dinheiro para fazer isso. Vou dar um exemplo mais internacional que tem a ver com a América Latina. Alguns anos atrás surgiu uma comissão muito importante na OMS, que se chamava Comissão de Determinantes Sociais em Saúde, que procurava encontrar as origens sociais de doenças. E os membros dessa comissão em que participaram muitos brasileiros achavam que com 1 bilhão de dólares se resolvia o problema de doenças diarreicas, muito comuns em favelas. Fizeram essa proposta no ano de 2007 e a resposta do banco e de muitas agências oficiais foi de que era uma quantia inacessível para o sistema de saúde. No ano seguinte, 2008, veio a crise dos bancos, em que quebraram os bancos dos Estados Unidos; em poucas semanas, o governo federal americano conseguiu 700 bilhões de dólares para salvá-los. E depois isso foi muito discutido. Essa foi uma demonstração de que para alguns assuntos, às vezes militares, às vezes financeiros, sempre existe dinheiro disponível. Mas para outros, que têm a ver com a população, mas que não envolvem lucro imediato, como educação e saúde, faltam recursos. Justamente por isso que é importante manter a lembrança da história e da luta social coletiva pela saúde.
Por fim, agradeceria se pudesse comentar o quarto conceito citado: o de saúde na diversidade.
Marcos Cueto: A cultura da sobrevivência não é algo hegemônico: sempre há resistências e alternativas. E isso é a cultura na adversidade. Sempre houve pessoas, grupos, universidades, revistas, ONGs, inclusive pacientes, que lutam por uma saúde mais abrangente, em diferentes momentos históricos. No Brasil, a 8º Conferência Nacional de Saúde, no meio dos anos 1980, acompanhou todo o processo de democratização e deu origem ao SUS, botando na Constituição que a saúde era um direito do cidadão. O grupo criou também esse termo de Saúde Coletiva, que não existe no resto da América Latina; a ideia de que a saúde é uma luta da comunidade, e não somente aquilo que o estado fornece à pessoa. Outro exemplo é o caso da Aids, em que houve participação intensa de ONGs, de pacientes e de parceiros. Quando surgiram, os antirretrovirais eram muito custosos, e todo mundo falava que isso era impossível para um país em desenvolvimento. O Brasil foi o primeiro país que decidiu, em 1996, fornecer gratuitamente antirretrovirais para todos os cidadãos que precisavam. E o país tomou essa decisão desafiando as companhias farmacêuticas, que consideravam que isso ia romper a patente deles. Depois de uns anos, todo o mundo começou a celebrar o Brasil, mas, por um tempo, de 1996 a 2001, muitas dessas companhias farmacêuticas criticaram o Brasil, como se o país estivesse desafiando a ordem econômica da saúde. Eu acho que esse foi outro exemplo para mostrar que, quando há interesse da população, é possível fazer diferente, e mudar as regras do jogo.
*Com a colaboração de Matheus Cruz (AFN).