Diálogo com usuários das técnicas de reprodução assistida deve ser ampliado

Publicado em
Fernanda Marques
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Homens e mulheres, antes de se submeterem às tecnologias de reprodução assistida – inseminação artificial e fertilização in vitro –, devem assinar um documento por meio do qual são informados sobre todos os benefícios, riscos e responsabilidades associados às técnicas e consentem com os procedimentos. No entanto, esse modelo de consentimento informado, em vez de contribuir para o diálogo democrático e humanizado entre médicos e pacientes, adquire, em certas circunstâncias, um caráter meramente contratual e se reduz à formalidade da assinatura de um documento. As incertezas do processo, portanto, não recebem a atenção que merecem. Pelo contrário: diante das expectativas de quem deseja ter um filho, prevalece a concepção de que a medicina é infalível e isenta de ambigüidades ou arbitrariedades.


 Segundo a autora do estudo, os riscos dos procedimentos são descritos como atípicos e, ao mesmo tempo, quase inevitáveis quando se decide ter um filho (Foto: <EM>A Tarde</EM>)

 Segundo a autora do estudo, os riscos dos procedimentos são descritos como atípicos e, ao mesmo tempo, quase inevitáveis quando se decide ter um filho (Foto: A Tarde)


Esse é o alerta feito por um artigo publicado na edição de março do periódico científico Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz. O estudo qualitativo foi conduzido pela pesquisadora Susana Manuela Ribeiro Dias da Silva, da Universidade do Porto e da Fundação para a Ciência e a Tecnologia de Portugal. Susana analisou os formulários de consentimento informado aplicados à clientela de sete clínicas portuguesas de medicina da reprodução, cinco públicas e duas privadas. Nesses documentos, os riscos dos procedimentos são descritos como atípicos e, ao mesmo tempo, quase inevitáveis quando se decide ter um filho. Além disso, a pesquisadora fez entrevistas com 14 mulheres e seis homens usuários de técnicas de reprodução assistida, entre os quais predominou uma visão positiva da ciência e tecnologia.


Em geral, os eventuais riscos – tanto nos formulários como na interpretação dos usuários – aparecem somente em termos médico-científicos. “A gravidez múltipla só é eventualmente percebida como ‘algum risco’ pelos entrevistados quando esta possibilidade é associada à morbidade e mortalidade perinatal, infantil e materna, à semelhança da tônica dos discursos médicos”, exemplifica o artigo. Questões que escapam desse domínio puramente médico-científico – como o custo financeiro, o desgaste emocional e as transformações no cotidiano do casal – costumam não ser discutidas.


Nas entrevistas, Susana verificou que os insucessos dessas técnicas eram associados, muitas vezes, a elementos fora do domínio médico-científico, como a vontade de Deus ou a qualidade do material genético. A pesquisadora observou, também, que a responsabilidade por esses insucessos é diluída e repassada aos usuários, sendo assumida, sobretudo, pelas mulheres, de forma individual e privada. De acordo com a autora, os usuários têm o direito de decidir se querem ou não correr os riscos apresentados nos termos de consentimento informado, num contexto em que a liberdade de decisão pode se transformar no dever de concordar com as incertezas e se responsabilizar por elas.


A autora aponta, contudo, que a responsabilidade médica não pode ser desprezada. “Os médicos estão diretamente envolvidos nos diversos processos de tomada de decisão e não devem, por isso, ignorar as conseqüências que daí advêm”, avalia o artigo. “A Organização Mundial da Saúde (OMS) sugere que os médicos avaliem a forma como os pacientes compreendem a informação que lhes é facultada, pedindo-lhes, por exemplo, para descrever os objetivos, limitações e benefícios dos procedimentos associados às tecnologias de reprodução assistida nas suas próprias palavras e averiguando os respectivos conhecimentos acerca das alternativas disponíveis, incluindo a alternativa de não se submeter a determinados procedimentos”.