Dissertação propõe que quadrinhos podem aprimorar o ensino de biociências

Publicado em
Renata Moehlecke
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Desenvolver um experimento maluco com o Franjinha, observar problemas de poluição ambiental com o Chico Bento ou entender sobre hábitos alimentares com a Magali pode ser uma ótima forma de incrementar o currículo de ciências naturais do ensino fundamental. A sugestão é da pesquisadora Cláudia Kamel, que em seu projeto de conclusão de mestrado no Instituto Oswaldo Cruz (IOC) da Fiocruz analisou as potencialidades das histórias em quadrinhos (HQ) da Turma da Mônica, de autoria de Maurício de Sousa, como preciosos subsídios didáticos para introduzir, elaborar e complementar conhecimentos científicos. A dissertação foi feita no mestrado em ensino de biociências e saúde e é intitulada Ciências e quadrinhos: explorando as potencialidades das histórias como materiais instrucionais.



Kamel selecionou as publicações de Maurício de Souza por serem as mais populares entre crianças de 5 a 14 anos de diversas camadas sociais em todo o território nacional (segundo pesquisa do Instituto Datafolha em 2004). A pesquisadora também fez um levantamento do número de revistas comuns a duas gibitecas (coleção de gibis) de escolas distintas. “A escolha por uma escola particular e outra pública justifica-se no fato de as HQ serem publicações acessíveis à grande parte da população, podendo, portanto, serem trabalhadas em contextos diferenciados”, diz. Ela ressalta que as revistas estudadas não eram somente exemplares recentes, mas também das décadas de 80 e 90 e nos anos 2000.


O estudo verificou que as publicações escolhidas contemplam os três grupos temáticos –com base nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) – que são trabalhados nas aulas de ciências naturais do ensino fundamental: ambiente (que abrange conhecimentos sobre as interações entre seus componentes, ou seja, seres vivos, ar, água, solo, luz e calor), ser humano e saúde e recursos tecnológicos e fontes de energia. Das 392 revistas da Turma da Mônica analisadas (que incluem títulos dos personagens Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e Chico Bento), 274 apresentavam referências aos tópicos em questão, sendo o tema “ambiente” o mais citado (em um total de 162 revistas).


A pesquisadora também destaca que espera que sua pesquisa ajude a repensar a postura da escola em relação a essa variedade textual. Kamel comenta que, por muitos anos, as HQ foram consideradas subliteratura. “Em décadas passadas, vieram mesmo a ser imputadas com a responsabilidade de retardar o processo de abstração, dificultar o hábito da leitura de obras da literatura clássica e promover a preguiça mental de seus leitores”, afirma, após longo estudo e experiência com a utilização das HQ no ensino. “Atualmente, constata-se, cada vez mais, que a linguagem dos quadrinhos pode e deve ser utilizada, não somente para entreter os leitores, como também – ainda que de forma indireta – para promover e desenvolver competências cognitivas por meio do processo de conclusão e abstração”. A pesquisadora explica que, muitas vezes, uma simples forma ou um traço é suficiente para desencadear uma conclusão, possibilitando que o leitor extrapole o óbvio e crie novas hipóteses. Além disso, a ilustração associada ao texto constitui uma técnica notável, segundo Kamel, para despertar o interesse e compreensão das crianças.



Ela também elucida que as histórias em quadrinhos analisadas mostraram alguns erros conceituais em relação aos tópicos curriculares, mas que esse fato não impediria que essas mesmas histórias pudessem ser utilizadas como material de discussão e reflexão para professores e alunos. Dessa forma, seriam igualmente valorizados materiais “politicamente corretos” (preparados especialmente para fins educacionais), mas o que a própria criança costuma ler e comentar. “Busca-se instigar o senso crítico do aluno, de forma que ele possa elaborar seus próprios critérios de análise e dessa forma possa ser cidadão no sentido de aprender a aprender, aprender a criticar, opinar e propor mudanças”, esclarece Kamel.


HQ ainda são pouco exploradas em livros didáticos de ciências, conclui pesquisadora


O estudo de Kamel também verificou como se dão o uso de tiras e HQ em coleções de livros escolares que abordam ciências naturais e constatou que essa linguagem está sendo subutilizada em relação a obras relacionadas à língua portuguesa. A pesquisadora realizou um estudo comparativo entre exemplares das duas disciplinas de três coleções voltadas para o ensino fundamental (amparadas pelos PCN, recomendadas pelo Programa Nacional do Livro Didático e que estiveram entre as mais adotadas por escolas públicas municipais), utilizadas em sala de aula no ano de 2005. A freqüência de utilização de HQ e tiras, o uso de produções estrangeiras e nacionais e a investigação se o material serve para introduzir conceitos ou complementar o conteúdo proposto foram os critérios utilizados para nortear a análise.


Kamel observou que os autores utilizaram o mesmo número de tiras nacionais para ambas as matérias. No entanto, as tiras estrangeiras se apresentam com um número quatro vezes maior nos livros de ciências naturais. A pesquisadora comenta que o fato dos autores de obras de língua portuguesa preferirem utilizar personagens nacionais pode estar relacionado com a preocupação da identificação pelo público leitor, que pode servir como um elemento motivador da leitura. E ela alerta para o cuidado na hora de utilizar um excesso de tiras estrangeiras. “Ao formular atividades que não contemplam a realidade imediata dos alunos, perpetua-se o distanciamento entre os objetivos do recurso em questão e o produto final”, afirma. Isso, então, também poderia contribuir “para formar indivíduos treinados para repetir conceitos, aplicar fórmulas e armazenar termos, sem, no entanto, reconhecer possibilidades de associá-las ao seu cotidiano”.


Quanto à forma de uso, a análise do material mostrou que as tiras e HQ selecionadas nos livros de ciências naturais são de ótima qualidade, mas que não possuem, em geral, uma articulação eficaz em relação ao tópico trabalhado. “A articulação, quando ocorre, se dá de forma descontextualizada e fraca, no sentido de não explorar o rico e propício enredo da tira em questão para fomentar nos alunos, relações entre este e os conceitos”, elucida. Em contrapartida, no caso dos volumes de língua portuguesa, essas se mostram adequadas ao contexto no qual foram inseridas, explorando todos os seus elementos, e levando o aluno a interpretar a mensagem, ler as imagens e extrair delas relações significativas.


Com relação à apropriação dos quadrinhos para promover diversidade textual, o estudo evidenciou que os volumes de ciências naturais pouco colaboram para uma ampliação de conceitos por meio desta linguagem, corroborando assim para um mero processo de memorização, e não para uma articulação que poderia se dar de forma lúdica e efetiva. “Isso nos conduz a pensar em estudos posteriores acerca de sua aplicabilidade como elemento articulador em aulas de ciências naturais”, conclui.