09/06/2020
Marcella Vieira (Editora Fiocruz)
Em meio à pandemia do novo coronavírus, os estudos sobre a história da saúde e da ciência trazem à luz as muitas epidemias que já passaram por diversas regiões de todo o mundo. No Brasil, as pesquisas sobre a trajetória de vetores, viroses e outros tipos de doenças infecciosas também revelam o alcance das políticas públicas de saúde em um país de território continental e enormes contrastes.
A Fiocruz é uma das instituições de pesquisa científica de maior produção desses estudos históricos. Uma das recentes pesquisas desenvolvidas na Casa de Oswaldo Cruz, unidade dedicada à preservação da memória da instituição e da história da saúde pública no Brasil, se transformou no livro que integra a lista de novos títulos da Editora Fiocruz em 2020. O Feroz Mosquito Africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940) será lançado no dia 10 de junho para aquisição em dois formatos: versão digital na plataforma SciELO Livros e exemplar impresso na Livraria Virtual da Fiocruz. Escrita pelo historiador Gabriel Lopes, a obra é parte da coleção História e Saúde e tem como base a pesquisa de doutorado do autor, vencedor do Prêmio Oswaldo Cruz de Teses em 2017, na categoria Ciências Humanas e Sociais.
Invasão do ‘feroz mosquito’: metáforas bélicas
No livro, o pesquisador desenvolve uma narrativa histórica de chegada, alastramento e erradicação do Anopheles gambiae, que teve origem em Dacar, capital do Senegal, e chegou ao Brasil pelo Rio Grande do Norte. O mosquito causou uma epidemia de malária sem precedentes no Brasil no início dos anos 1930 e, após esforços cooperativos entre o governo brasileiro de Getúlio Vargas e a Fundação Rockefeller, o vetor foi erradicado em 1940. Transmissor da forma mais letal da doença, o mosquito teria viajado da África para o Nordeste brasileiro graças à modernização dos transportes aéreos, que passaram a ser uma preocupação das autoridades. Assim, foram instituídas, segundo a pesquisa, uma série de leis e normas para garantir a segurança sanitária dos aeroportos.
O mosquito invasor se tornou centro de discussões e motivou surpresas, decisões e silêncios, já que foi inicialmente ignorado. Porém, o medo de que a malária se espalhasse pelas Américas levou à formação, no início de 1939, do Serviço de Malária do Nordeste (SMNE). “A criação do SMNE se justifica não apenas por razões científicas, mas também pela ansiedade e otimismo. O medo estava associado a uma terrível doença endêmica e epidêmica e também à origem africana do Anopheles gambiae, um mosquito estrangeiro que veio de uma região que era simbolizada como diferente, primitiva e selvagem. Ao mesmo tempo, com o serviço especializado, a esperança de que o mosquito insidioso pudesse ser completamente eliminado foi forjada”, pontua, no prefácio do livro, o professor Marcos Cueto, membro do conselho editorial da Editora Fiocruz. “As várias pessoas que contribuíram com o projeto de erradicação do mosquito fizeram essa esperança se tornar convicção. Os envolvidos no combate à malária [...] conseguiram elaborar um novo dogma que iluminaria a saúde mundial nos anos 1940 e 1950”, acrescenta o pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz.
A expressão que dá título ao livro surgiu, segundo Gabriel Lopes, de uma palestra do médico, ensaísta e crítico literário Afrânio Peixoto. Ao falar da cooperação sanitária internacional entre Brasil e Fundação Rockfeller, ele mencionou o termo “feroz mosquito africano” como se fosse uma invasão. “Eu falo um pouco dessas metáforas bélicas que foram mobilizadas no período para abordar principalmente como esse mosquito surpreendeu os especialistas e causou uma perplexidade na saúde pública, a partir do momento em que a visibilidade dele foi encoberta por outras questões e outras epidemias, como, por exemplo, a de febre amarela no Rio de Janeiro”, destaca o autor.
Ao longo de quatro capítulos, o pesquisador aborda condicionantes políticas, sociais e ecológicas que permitiram o alastramento do mosquito no Nordeste do Brasil, incluindo questões como o ritmo das chuvas e os períodos de seca. Fatores determinantes para que ele tenha se alastrado de forma surpreendente no interior do Rio Grande do Norte e do Ceará. Além de notas e referências essenciais para a pesquisa do autor, o livro traz também uma série de imagens de acervo ligadas ao período de alastramento e combate ao Anopheles gambiae.
Doença atinge populações negligenciadas
O vetor da forma mais perigosa da malária foi eliminado, mas a doença continua a instigar esforços em todo o mundo. Tanto que a Organização Mundial da Saúde (OMS) celebra anualmente, em 25 de abril, o Dia Mundial de Combate à Malária. O evento foi estabelecido em 2007 pelo órgão máximo de saúde global; porém, em 2020, as recomendações ganharam outro tom: diante do novo coronavírus, diversas cartilhas sobre cuidados na relação entre as duas doenças foram divulgadas. “Em meio à pandemia da Covid-19, o papel da OMS é muito importante ao lembrar que a malária, mesmo sendo uma doença prevenível e tratável, ainda mata muitas pessoas no mundo. E é uma doença que atinge principalmente as populações negligenciadas”, alerta o historiador.
Diante do contexto, o órgão tem expressado preocupação em relação aos países mais fortemente afetados pela doença, especialmente na África subsaariana. Dados recentes da OMS indicam que cerca de 400 mil pessoas morrem por ano de malária, sendo que aproximadamente três bilhões estão sob o risco da doença. Mais de 90% dos casos atingem populações negligenciadas da África subsaariana. No Brasil, pesquisas mostram que a região amazônica concentra 99% dos casos.
História e Saúde: cooperação internacional e ciência brasileira
O livro escrito por Gabriel Lopes será o 42º título da coleção História e Saúde. Em 2011, a mesma coleção publicou, por meio do selo Clássico & Fontes, o volume Anopheles gambiae no Brasil – 1930 a 1940, obra que apresenta o relatório final da campanha sanitária no Nordeste ao longo do período, liderada por Fred Soper e com amplos investimentos da Fundação Rockefeller. O livro descreve os procedimentos e métodos de trabalho, tornando-se leitura de referência para os interessados na história da saúde pública no Brasil.
Quase uma década depois, a publicação de O Feroz Mosquito Africano no Brasil pretende, de acordo com o autor, “contribuir não só para os estudos das epidemias, mas também aos estudos de história que considerem uma abordagem sociológica e política da própria história das ciências biomédicas”. As ações de Soper e da fundação norte-americana – por meio de seu Serviço Cooperativo de Febre Amarela (SCFA) – têm presença marcante no novo título.
Mas Gabriel Lopes também destaca o papel de importantes nomes da ciência brasileira da época para o quadro de combate à doença. “A nova epidemia no Ceará e no Rio Grande do Norte também chamou a atenção de estudiosos brasileiros, em especial Evandro Chagas, que se encontrava em plena atividade de pesquisa sobre a leishmaniose visceral no Ceará. Em julho de 1938, Chagas foi testemunha do avanço do Anopheles gambiae enquanto trabalhava em uma das regiões mais atingidas”, afirma. O autor revela ainda que, ao comentar, em carta para a esposa, a situação da malária causada pelo vetor, Chagas também discorreu sobre a melhor maneira de proceder em relação ao novo alastramento do mosquito. Os arquivos mostram que, para ele, somente o SCFA e a Fundação Rockefeller teriam condições de contê-lo.
Autor
Gabriel Lopes é graduado em História e mestre em História e Espaços, ambos os títulos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). É doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (PPGHCS/COC/Fiocruz). O doutorado contemplou período sanduíche no Departamento de História da Medicina da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore (EUA), conceituada instituição que é a atual referência global no monitoramento da Covid-19. O trabalho também incluiu pesquisa no Rockefeller Archive Center, com incentivo da Fundação Rockefeller. Atualmente, Lopes é pesquisador em estágio pós-doutoral na Casa de Oswaldo Cruz nos campos de história das doenças, história ambiental, história da saúde global e estudos sociais das ciências.
Lançamentos digitais em meio à pandemia
Além do lançamento dos exemplares impressos, o livro será também disponibilizado para aquisição na rede SciELO Livros. No final de maio, a Editora Fiocruz lançou Política de Controle do Tabaco no Brasil em formato digital na mesma plataforma. Em 27 anos recém-completados neste mês de maio, é a primeira vez que a Editora disponibiliza títulos online simultaneamente ao lançamento das obras físicas.
No calendário de publicações previstas para 2020, novos volumes estarão acessíveis para aquisição no SciELO Livros. Ao diversificar os modos de obtenção e acesso digital, a Editora e a plataforma se adaptam aos tempos atuais e aos novos hábitos e formatos de leitura e de apropriação da produção acadêmico-científica. Diante das transformações sociais causadas pela Covid-19 e em meio a um contexto de maior distanciamento físico, a iniciativa amplia a participação da Editora no formato digital de amplo acesso.
Os novos livros passam a integrar a ampla lista de volumes e coletâneas da Editora Fiocruz na biblioteca online. Já são cerca de 290 obras disponíveis no SciELO, sendo que, atualmente, 188 estão em acesso livre para download gratuito. Os demais títulos estão disponíveis para aquisição com média de 40% de desconto em relação ao valor dos livros tradicionais.
Clique aqui para mais informações sobre a participação da Editora Fiocruz no SciELO Livros.
Serviço:
Livro: O Feroz Mosquito Africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940)
Editora Fiocruz
Primeira edição: 2020
227 páginas
Preço SciELO Livros (versão digital): R$ 32,40
Preço de capa (versão impressa): R$ 54