19/03/2015
Marina Lemle / Blog de HCS-Manguinhos
O lançamento, na semana passada, do Portal de Periódicos da Fiocruz, que dá livre acesso ao conteúdo de sete revistas científicas editadas por diferentes unidades da Fundação Oswaldo Cruz, tem estimulado discussões acadêmicas sobre questões atuais no campo da política de publicação científica, como o acesso aberto ao conhecimento e a sua internacionalização.
Maria Cecília Minayo, editora científica da revista Ciência & Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), considera o portal um avanço importante por tornar acessível a qualquer cidadão a produção intelectual institucional do país e dos parceiros internacionais, hoje publicada nas mais diferentes revistas científicas.
“A iniciativa é um posicionamento a favor do acesso aberto e traz uma perspectiva de ampliação das colaborações nacionais e internacionais e do debate público sobre o estado do conhecimento em saúde pública e saúde coletiva”, diz. Para Maria Cecília Minayo, ciência, tecnologia e inovação são hoje o “ouro” de um país. “O campo científico não tem fronteiras, mas nenhum país cresce e se desenvolve se não tiver pesquisas que o libertem da dependência do conhecimento de outros para crescer e se desenvolver”, afirma.
Internacionalização ou estrangeirização?
Marília Sá Carvalho, editora de Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), considera a publicação científica parte essencial da construção do conhecimento, por definição compartilhado, “ou não é ciência como entendemos hoje”. Uma questão “quente”, a seu ver, é a internacionalização dos periódicos. Para ela, a internacionalização vem sendo perseguida de forma equivocada, colocando metas de estrangeirização.
“Por exemplo, a definição de cotas de autores estrangeiros pode ter como efeito colateral o risco de se priorizarem publicações de menor qualidade simplesmente para dar um caráter internacional à revista. Por outro lado, traduzir tudo para inglês pode não ser a internacionalização desejada. Que tal alguns artigos serem traduzidos para espanhol, no espírito da integração sul-sul?”, reflete. Marília explica que traduzir para o inglês, atualmente a língua franca da ciência, pode ser uma excelente opção para artigos mais biológicos, mas não se o objeto do artigo for, por exemplo, uma avaliação do Programa de Saúde da Família, o qual espera-se que seja lido por pessoas envolvidas na gestão, em todos os níveis. “Uma revista totalmente trilíngue seria perfeita se os custos não fossem tão altos”, resume.
De acordo com Marília, nenhum país pode ser refém de critérios de publicação alheios a ele. “A universalidade da ciência se constrói localmente, e mais ainda no caso da saúde. Sem qualquer xenofobia, entendo que o que é prioridade para um país, ou talvez para a indústria de publicações estabelecida nos países centrais, não necessariamente nos serve. Além disso, o contexto onde é feita a pesquisa muita vezes tem papel essencial no que é produzido. O que pesquisamos, como pesquisamos, como relatamos nossas descobertas, são influenciados fortemente pelo ambiente onde vivemos, e deve mesmo ser assim. A homogeneidade não é boa para a ciência – e aliás, nem para a cultura”, afirma.
Marília acrescenta que as publicações científicas que são dirigidas de dentro de um país, em especial no nosso caso de um país não central na produção acadêmica, permitem o diálogo local entre pares, e não apenas entre “aqui” e “lá”. “Nossa voz científica precisa de espaço para amadurecer, e esse espaço são as nossas revistas”, defende.
Para Marília, a iniciativa do portal de periódicos científicos é excelente porque permitirá às revistas aprofundar o debate sobre a publicação científica e dar maior visibilidade ao que é publicado, respeitando a independência editorial. Ela destaca o pioneirismo brasileiro no acesso aberto, liderado pela biblioteca eletrônica SciELO, que reúne uma seleção de periódicos científicos brasileiros.
Cadernos de Saúde Pública é uma das poucas publicações mensais no SciELO. Segundo a editora, o aumento na periodicidade foi resultante de um imenso aumento na produção científica no campo. Porém, quantidade não significa necessariamente qualidade. Em 2014, a revista recebeu 1699 submissões, mas a proporção de recusas é da ordem de 85 a 90%.
“A qualidade do que chega deixa muito a desejar. Publicamos um editorial onde a questão da originalidade foi abordada. Muitos artigos com hipóteses muito semelhantes, mesma abordagem metodológica, quase uma linha de montagem onde muda o objeto mas a estrutura da pesquisa é exatamente a mesma. Por exemplo, por que começar a discussão dos artigos afirmando que vários estudos mostraram padrões semelhantes? Não parece um bom argumento para publicação”, comenta.
Outro fator problemático, segundo Marília, é a revisão por pares, um trabalho quase invisível. “Muitos colegas não respondem às solicitações de revisão. Atualmente, para cada artigo enviado para consultores, 5,4 simplesmente não respondem (saiba mais no artigo The value of peer review).
Contramão da privatização da comunicação científica
Outro desafio é aumentar a conscientização política dos pesquisadores sobre as questões que interferem na ampliação do acesso ao conhecimento. De acordo com Angélica Ferreira Fonseca, editora do periódico Trabalho, Educação e Saúde, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, um processo de mercantilização incide sobre a produção de conhecimento em vários níveis, incluindo a comunicação científica.
“De um modo geral os pesquisadores buscam conhecer apenas os meios de dar visibilidade aos seus resultados de pesquisa nos espaços mais prestigiados academicamente, sem uma reflexão e uma crítica do quanto essa postura pode acentuar a já forte privatização da ciência e dos produtos e processos que dela derivam”, explica.
Angélica acrescenta que a sistematização de repositórios e, sobretudo, uma política de acesso aberto são os avanços a serem conquistados mais imediatamente. Para ela, a política de acesso aberto à informação científica permite uma aproximação da utopia da democratização do conhecimento pelas duas vias estratégicas de divulgação consagradas na histórica reunião de Budapeste, em 2002: a via verde, com os repositórios institucionais, e a via dourada, com as revistas eletrônicas de acesso aberto.
“O Portal de Periódicos nasce sob o signo do que há de mais atual em termos de comunicação científica, dispondo para acesso gratuito um significativo número de artigos científicos publicados nas sete revistas com selo Fiocruz, a maioria resultado de pesquisa original produzida no Brasil e no exterior. Esta ação estratégica beneficiará a comunidade científica tanto do nosso país quanto dos países do eixo Sul-Sul”, prevê.
Angélica defende que a produção de conhecimento científico de um país deve sustentar-se por seus vínculos com as questões socialmente relevantes das diversas áreas e acrescenta que a ciência tem ainda a atribuição de provocar reflexões e transformações. ”As publicações científicas têm o papel fundamental de ampliar o acesso ao conhecimento. Nesse caso, não considero apenas relevante o espaço que os periódicos ocupam entre pesquisadores envolvidos no ciclo de produção de conhecimento científico, mas sim entre cidadãos que podem, de diversas formas, se relacionar com esses conhecimentos. A formação profissional, por exemplo, me parece um espaço importante de circulação de artigos científicos, que podem ser incorporados promovendo novas compreensões sobre as situações que atravessam os contextos de trabalho, possivelmente interferindo no movimento de compreensão crítica e transformação da realidade que, em última instância, é o que mais nos interessa”, argumenta.
Políticas públicas para garantir sustentabilidade e autonomia
Para Carlos Machado de Freitas, editor científico da Editora Fiocruz, se as publicações científicas tem por princípio divulgar o conhecimento científico e tecnológico – um bem público – ele deve ser compartilhado das formas mais amplas e livres possíveis, pois só assim podem efetivamente contribuir para um desenvolvimento social que tenha como objetivos o bem estar humano, a sustentabilidade ambiental e a justiça social.
Segundo ele, a comunicação científica através de livros e revistas científicas avançou bastante nos últimos anos no Brasil. “Hoje temos mais de cem editoras universitárias publicando cerca de dois mil livros novos a cada ano. Recentemente a Rede SciELO anunciou que já possui mais de 500 mil artigos indexados e publicados online em acesso aberto. Deste total, mais da metade dos artigos foram publicados em revistas científicas brasileiras, ainda que estas correspondam a cerca de um terço do total de periódicos”, conta.
Os maiores desafios, a seu ver, são políticas públicas de médio e longo prazo que garantam a sustentabilidade financeira e autonomia das editoras universitárias e das revistas científicas, com o objetivo de ampliá-las e fortalecê-las em suas capacidades de publicarem os resultados da pesquisa científica. Para o editor, a comunicação científica deve ser considerada parte integrante da pesquisa científica, assim como dos processos de formação e qualificação de jovens no país, o que exige que seja ampliada e compartilhada, estimulando a troca de conhecimentos. “Não temos como avançar nisto sem financiamento de médio e longo prazos, bem como a profissionalização das editoras através de estruturas que potencializem o processo editorial”, afirma.
Para Machado de Freitas, o Portal de Periódicos é mais uma inciativa que mostra que a Fiocruz, como instituição pública e financiada com recursos públicos, considera fundamental que o conhecimento publicado em suas revistas esteja disponível para toda a sociedade através do acesso aberto e sem custos para autores, instituições ou leitores. “Com esta iniciativa a Fiocruz assume um papel importante no debate sobre o significado do acesso aberto em nosso país e sobre o financiamento da comunicação científica, principalmente através das revistas científicas”, conclui.