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10/05/2007

Em defesa dos direitos de travestis e transexuais

Fernanda Marques


Nos documentos oficiais, seu nome ainda é Marcelo Geraldo Nascimento. Para Majorie Marchi, isso não é um constrangimento monstruoso, na medida em que existem questões mais urgentes, como o acesso dos travestis e transexuais à saúde, educação e trabalho. Para adquirir uma aparência condizente com a imagem que fazia de si mesma, Majorie fez mudanças nos seios, pernas e quadris e, por conta de transformações corporais sem a devida assistência médica, colocou em risco sua saúde. Travesti desde os 13 anos, ela concorda com os resultados da pesquisa da advogada Miriam Ventura, segundo a qual os direitos de saúde e de cidadania dos travestis e transexuais são limitados a um seleto grupo considerado apto a se submeter à cirurgia para mudança da genitália. Hoje à frente da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Rio de Janeiro (Astra-Rio) e do projeto Damas, da Secretaria municipal de Assistência Social, Majorie contou um pouco de sua experiência.


Pode fazer uma breve apresentação sua?


Majorie: Sou Majorie Marchi, brasileira, nascida no estado do Rio de Janeiro em 13 de dezembro de 1974. Tenho ensino médio completo e atualmente estou cursando pré-vestibular para ingressar na faculdade de comunicação social (jornalismo). Sou travesti desde os 13 anos. Sobrevivi da prostituição dentro e fora do Brasil (Itália, Suíça, França). Em 2003, me inscrevi em um projeto social (Damas) para tentar uma oportunidade no mercado formal de trabalho, o que era um antigo sonho de criança – viver como mulher plenamente, trabalhar, estudar e ter vida em família. Ao término do projeto, fui empregada e, após passagem por outras atividades, hoje trabalho na Secretaria municipal de Assistência Social, no Núcleo de Direitos Humanos, onde tenho a oportunidade de coordenar a execução do mesmo projeto que mudou a minha vida, possibilitando a outras ‘trans’ terem a mesma oportunidade. Não satisfeita, em 2005, junto com um grupo de amigas, resolvi fundar uma ONG totalmente voltada ao atendimento e à melhoria de vida para os segmentos de travestis, transexuais e transgêneros do estado do Rio de Janeiro.


Você está à frente da Astra-Rio e do projeto Damas. Explique o que são essas iniciativas e quais as principais atividades que desenvolve.


Majorie: A Astra-Rio é uma entidade fundada em 29 de janeiro de 2005 para viabilizar ações e articulações sociais inclusivas para os segmentos de travestis, transexuais e transgêneros. Em dois anos de fundação reunimos e associamos 145 travestis e transexuais no Estado do Rio de Janeiro. Temos ações voltadas para a inclusão escolar, acompanhamento médico, psicológico e jurídico, oficinas de valorização e elevação da auto-estima e cursos profissionalizantes. O projeto Damas é uma iniciativa da Prefeitura do Rio de Janeiro com o objetivo de minimizar as mazelas e a exclusão social de travestis e transexuais residentes no município, criando uma rede de oportunidades no mercado formal de trabalho e na vida. O projeto teve sua turma piloto em 2003, na qual me inscrevi. Fui selecionada para a primeira turma. Ao término do projeto, os resultados obtidos foram superiores aos esperados. Foi comprovada a adesão do público-alvo ao projeto, que tem dois módulos. O primeiro é um mês de capacitação intensiva para o mercado formal de trabalho. O segundo consiste em um estágio de três meses em empresas, órgãos públicos, ONGs etc, para adquirir ou reciclar potencialidades e experiências profissionais. Hoje, o projeto alcança a marca de cem ‘trans’ atendidas e tem, em média, 20 formalmente empregadas. Acredito que o nascimento da Astra-Rio teve como grande impulso o projeto Damas, que deu uma injeção de ânimo nos nossos sonhos de que um dia poderíamos ser cidadãs.


Na sua opinião, os transexuais enfrentam hoje no Brasil problemas de acesso aos serviços públicos de saúde? Por quê?


Majorie: Os problemas enfrentados pelas pessoas ‘trans’ em qualquer área, como saúde, educação e trabalho, têm como fundamento o preconceito e a intolerância às diversidades, principalmente a uma diversidade tão desafiadora como é vista a dos travestis e transexuais, que divergem totalmente do padrão pré-estabelecido do que seria homem ou mulher. Diferentes de gays e lésbicas, que, caso desejem ou julguem necessário, podem camuflar a sua sexualidade, travestis e transexuais são rapidamente identificados. Por isso, muitas vezes fica impossível ter acesso a serviços e oportunidades ou mesmo ter sua cidadania respeitada. Para sanar essa exclusão, é necessário que os órgãos de saúde enxerguem todas nós como cidadãs brasileiras de direito, sem classificar, subdividir e determinar quem tem ou não direito aos serviços públicos.


A advogada Miriam Ventura, em sua pesquisa de mestrado, analisou documentos da Justiça e do Conselho Federal de Medicina. Ela não entrevistou transexuais. Mesmo assim, você disse que se sente inteiramente contemplada pelos resultados do estudo. Por quê?


Majorie: O fato de Miriam ter pesquisado somente documentos confirma minha antiga contestação de que a Justiça e a medicina estão induzindo jovens travestis e transexuais a optarem pela cirurgia de transgenitalização, para terem direito à modificação corporal, por meio da terapia de hormônio aplicada para a realização da cirurgia, e também para se livrarem do constrangimento da documentação masculina. A decisão sobre realizar a cirurgia de transgenitalização é muito pessoal e importante. Deve ser tomada conscientemente e não impulsionada pelas necessidades de transformações corporais seguras, com assistência médica, ou pela possibilidade da troca de documentação. O acesso a modificações corporais seguras e à troca de identidade deve ser direito de todas as identidades ‘trans’ que desejarem e não de um grupo seleto escolhido por médicos. O fato de Miriam não ter entrevistado travestis e transexuais elimina qualquer influência ou comprometimento sentimental. Mesmo assim, o resultado da pesquisa traduz os sentimentos desses dois segmentos. Ainda hoje incontáveis são os casos de complicações decorrentes do uso indevido de silicone industrial e da leiga terapia de hormônios, freqüentes na realidade de travestis e transexuais participantes da Astra-Rio. Temos jovens travestis que não almejam a cirurgia de transgenitalização e sabem que provavelmente não passariam nas avaliações psicológicas dos centros de tratamento para transexuais no serviço público, porque não são consideradas “verdadeiras transexuais”. Além disso, muitas ‘trans’, principalmente as que ganham dinheiro na Europa, realizam a cirurgia clandestinamente para obterem o direito à modificação dos documentos.


Como foi e é a sua relação com o seu corpo, desde a infância?


Majorie: Eu sofria muito na infância por acreditar que jamais teria uma aparência condizente com a que eu fazia de mim mesma. Desejava usar vestidos, maquiagem. Sempre me senti menina. Sonhava em ter quadris e pernas grossas e, principalmente, seios.


Como foi sua experiência com as transformações corporais?


Majorie: Aos 12 anos, conheci outras ‘trans’ e, no convívio, me foi apresentada à leiga terapia hormonal, que, aos olhos de um menino ‘trans’ de 12 anos, parecia a solução para um de seus problemas: a aparência. Dei inicio às minhas transformações corporais. Já aos 17 anos, cansada das idas e vindas das modificações hormonais, que são temporárias - você precisa reaplicar constantemente -, resolvi, então, injetar silicone. Concluí minhas modificações: seios, quadris e pernas. Nestes anos, não tive problema com a minha utilização de silicone líquido - pura sorte, considerando o grande número de complicações e óbitos decorrentes desta prática. Em 2000, retirei o silicone líquido dos seios e coloquei uma prótese de silicone apropriada. As modificações corporais ocorreram para que eu pudesse viver com uma aparência condizente com a que eu fazia de mim mesma. Mas, devido às más condições de higiene, eu não faria de novo, naquelas condições. A grande maioria das ‘trans’ que conheço recorre às modificações para poder se sentir de acordo com a imagem que elas fazem de si mesmas. Conheço relatos de complicações e óbitos por causa desses procedimentos realizados de forma inadequada.


Como é a questão do nome na sua identidade e em outros documentos?


Majorie: Meu nome nos documentos ainda é Marcelo Geraldo Nascimento, o que, para mim, não chega a ser um constrangimento monstruoso, mas realmente não aceito que me chamem por este nome em nenhuma circunstância. Gostaria de poder modificar meus documentos, mas, para mim, temos outras questões mais emergenciais, como o acesso escolar e o ingresso no mercado formal de trabalho, para uma auto-sustentabilidade longe das calçadas.


Os problemas identificados pela pesquisadora Miriam Ventura se encaixam na sua experiência pessoal ou na de outras pessoas com que você convive?


Majorie: Total e perfeitamente.


Entre os membros da Astra-Rio, esses problemas são recorrentes, isto é, há muitos indivíduos que desejam fazer transformações parciais do corpo e trocar de nome, mas encontram dificuldades jurídicas e médicas, na medida em que não desejam realizar a cirurgia para mudança da genitália?


Majorie: Não posso dar números, pois não realizamos uma pesquisa sobre esse assunto. Mas essa não é uma realidade só entre membros da Astra-Rio. Isso se aplica a ‘trans’ de todo o Brasil.


Conhece pessoas que buscaram clínicas no exterior?


Majorie: Este é o caso da grande maioria das transgenitalizadas brasileiras e de várias do meu ciclo de convivência. A maioria das ‘trans’ que trabalha na Europa realiza a cirurgia em países como a Tailândia e Equador, sem ter que passar por estudos. As que têm mais recursos fazem em Londres.

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