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30/07/2024

Equidade e produção local são destaques na cúpula sobre preparação para pandemias

Ana Paula Blower e Cristina Azevedo (Agência Fiocruz de Notícias)


Discussões em torno da equidade no acesso a vacinas e sua relação com a produção local, financiamento e cooperação foram alguns dos pontos-chave das discussões no primeiro dia da Cúpula Global de Preparação para Pandemias (GPPS 2024, na sigla em inglês), organizada pelo Ministério da Saúde (MS), a Fiocruz e a Coalizão para Promoção de Inovações em prol da Preparação para Epidemias (Cepi). O evento, que ocorre no Rio de Janeiro e termina nesta terça-feira (30/7), teve, na abertura, a participação de autoridades da saúde, como o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, o diretor-executivo do Programa de Emergências Sanitárias da OMS, Mike Ryan, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, o presidente da Fiocruz, Mario Moreira, e a presidente da Cepi, Jane Halton.

O presidente da Fiocruz, Mario Moreira, afirmou que o desafio é garantir que as vacinas desenvolvidas possam ser produzidas em escala mundial e distribuídas de forma igualitária (Foto: Peter Ilicciev)
 

 

Durante a mesa que debateu a Missão 100 dias, que prevê que nesse período seja possível responder a uma nova ameaça viral, Mario Moreira enfatizou que há numerosos desafios, como pesquisa, desenvolvimento e escalonamento da produção em tempo necessário. Segundo ele, algo que também o preocupa é o desafio de garantir o acesso a todos. “Temos acúmulo de conhecimento e capacidade para desenvolver as vacinas cada vez em tempo mais curto, mas essa não é a maior questão", afirmou. “O desafio é garantir que as vacinas desenvolvidas possam ser produzidas em escala mundial e distribuídas de forma igualitária”. 

‘O país só vacina se produz’

Possibilitando o acesso equitativo por meio da produção local e regional foi justamente o tema escolhido para uma das principais mesas do dia. Nela, o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo Econômico-Industrial da Saúde do MS, Carlos Gadelha, destacou que a pandemia mostrou que os países sem capacidade produtiva e tecnológica não conseguem enfrentar as crises. “O Brasil só vacina quando tem produção local”, disse. Ele lembrou a concentração de insumos em países ricos durante a pandemia de Covid-19 e afirmou: “Queria enfatizar o vínculo entre a capacidade produtora e o acesso universal à saúde. No Brasil, a produção local salvou 200 mil vidas. Devemos isso à Fiocruz e ao Butantan, que junto a redes privadas permitiram essa vitória”. Para Gadelha, é preciso “enxergar o Sul Global não apenas como consumidor, mas com riqueza de pessoas e tecnologia para cooperar numa rede de inovação e produção em saúde”. 

O acordo entre a Cepi e a Fiocruz para a entrada na rede mundial de fabricantes de vacinas da Coalizão, assinado durante a Cúpula, foi classificado pelo diretor do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), Mauricio Zuma, como uma “grande responsabilidade” e a possibilidade de demonstrar o compromisso da Fundação com os esforços globais em propiciar o acesso equitativo a vacinas. “Estamos num grande momento para fortalecer a produção regional, mas sabemos que isso só não é suficiente. O desenvolvimento de capacidades tecnológicas demanda outros requisitos que não são simples de obter”, afirmou Zuma. “Precisamos ter mais liberdade de operar, menos restrições de propriedade intelectual, mais acesso a capital para continuar investindo e modernizando nossas instalações, em pesquisa e desenvolvimento”. Ele acrescentou que também é necessário mais colaboração e coordenação: “E é neste ponto que acredito que as organizações internacionais têm um papel importante para que possamos atingir o que estamos debatendo aqui [equidade]”.

O diretor de Bio-Manguinhos/Fiocruz, Mauricio Zuma, disse que o desenvolvimento de capacidades tecnológicas demanda outros requisitos que não são simples de obter (Foto: Peter Ilicciev)

 

Zuma explicou que a produção de Bio-Manguinhos durante a pandemia foi resultado de uma longa trajetória de aprendizado. “Foi calcado em processos de transferência de tecnologia, e agora estamos nos pautando pelo desenvolvimento de nossos produtos, com parceiros estratégicos”, disse. “Se não tivermos essa capacidade [de produção local], não teremos futuro”.  

'A ciência voltou'

O evento foi aberto pela ministra Nísia Trindade Lima, que como membro do conselho da Coalizão participou da primeira cúpula da Cepi, em 2022, em plena pandemia, quando ainda era presidente da Fiocruz. A ministra defendeu a necessidade de financiamentos contínuos e robustos para iniciativas de enfrentamento de emergências de saúde e para o desenvolvimento de tecnologias para testes diagnósticos e medicamentos.

“Muito se falou da velocidade no desenvolvimento das vacinas naquele período, fruto do financiamento constante de pesquisa a laboratórios, que fizeram a diferença no enfrentamento à pandemia. Mas é necessário que a pesquisa e o desenvolvimento sejam mais equitativos, focados nos desafios globais”, ressaltou, lembrando momentos difíceis que o país atravessou e destacando que “a ciência voltou ao Brasil”.

A ministra da Saúde, Nísia Trindade Lima, destacou que é de suma importância que sejam feitos financiamentos contínuos e robustos para iniciativas de enfrentamento de emergências de saúde (Foto: Peter Ilicciev)

 

O secretário-geral da OMS, Tedros Adhanom, admitiu que Covax, o mecanismo de fornecimento de vacinas a países pobres durante a pandemia, não foi rápido o suficiente. “Não podemos permitir que o mesmo ocorra da próxima vez. E vai haver uma próxima vez. Não é questão de ‘se’, mas de ‘quando’”, disse Adhanom, em vídeo. Ele citou iniciativas, como a transferência de tecnologia para vacinas de plataforma mRNA e o Hub da OMS para Inteligência Epidêmica e Pandêmica, em Berlim. “Ainda temos um longo caminho a percorrer. Mas, juntos, estamos deixando o mundo mais preparado do que jamais esteve”, acrescentou.

O secretário-geral da Organização Pan-Americana de Saúde, Jarbas Barbosa, concorda que o mundo está melhor do que antes da pandemia, mas ainda longe de onde precisa estar. “Temos uma visão clara de nossa fraqueza. Os países estão mais realistas. Foi uma lição dolorosa”, disse.

Financiamento e cooperação no Sul Global

O diretor-geral do CDC África, Jean Kaseya, destacou em um painel sobre vigilância  que, mais do que pensar no futuro, é preciso enfrentar o presente, diante de um quadro de surtos de doenças infecciosas, como Mpox, no continente. “Não estou pensando no que virá, mas no que estamos vivendo hoje”, afirmou, ressaltando que há lacunas a serem superadas. Kaseya destacou a importância de ações coordenadas entre os países africanos. Hoje, segundo ele, a África não teria como enfrentar uma pandemia de forma adequada, pois são necessários investimentos em diversas frentes, como em pesquisa e fortalecimento dos sistemas de saúde. “Em nível global, a resposta [à Covid-19] não foi ideal”, lembrou, destacando que espera que o Tratado de Pandemias seja finalizado e aceito para garantir acesso menos desigual a insumos, por exemplo.

A questão do financiamento voltou ao debate na mesa sobre a Missão 100 dias. A presidente da organização Find, Ayoade Alakija, puxou a discussão para como se preparar para enfrentar uma crise ou investir na capacidade produtiva local sem fundos suficientes. “Como vamos produzir, regulamentar? Precisamos olhar para trás e entender nossa história para olhar para frente”, referindo-se às iniquidades na pandemia. Assim como Kaseya, ela chamou atenção para surtos em curso na África e a dificuldade para diagnóstico de casos: “Estamos enfrentando ameaças agora, doenças das quais ninguém está falando”. 

Refletindo também sobre as diferenças de acesso a insumos de saúde na pandemia, Mario Moreira enfatizou que a Missão 100 dias só será possível com um “novo arranjo global”. O presidente da Fiocruz destacou ainda a tradição da Fundação de colaboração na América Latina e África, especialmente com países da Comunidade de Língua Portuguesa (CPLP), na área de ensino, com oferta de cursos de capacitação e especialização, e no apoio à estruturação e fortalecimento dos sistemas de saúde. 

Uma pesquisa apresentada pela presidente da Cepi mostrou que, se a Missão de 100 Dias fosse implementada e bem-sucedida quando a Covid-19 surgiu, 800 milhões de infecções teriam sido evitadas. “Por isso estamos comprometidos em acelerar e apoiar de forma sustentável a pesquisa, o desenvolvimento e as capacidades em todo o mundo. Todo país, independentemente de riqueza ou localização geográfica, deveria poder proteger sua população”, disse Jane Halton. “A colaboração não é opcional. Quando se trata de uma doença infecciosa, a ameaça a um é uma ameaça a todos”.

Richard Hatchett, CEO da Cepi, ressaltou que para alcançar a Missão dos 100 Dias é necessário "desenvolver capacidades com contramedidas médicas e globalizar o acesso a estas tecnologias", aproveitando novas ferramentas como a Inteligência Artificial para eliminar gargalos. "Enfrentar pandemias é essencial para o bem-estar da população mundial, e a liderança do Brasil pode causar um impacto significativo nesse sentido".

‘Não vamos nos sair melhor na próxima pandemia nos preparando para a passada’

Em vários momentos do dia, participantes ressaltaram que a prevenção de pandemias passa pela preparação constante e reforço dos sistemas de saúde. Comparando a pandemia de Covid-19 à travessia de um navio em meio à uma tempestade, o diretor-executivo do Programa de Emergências Sanitárias e diretor-geral adjunto da OMS, Mike Ryan, alertou que é preciso emergir com um renovado senso de propósito e um trabalho diário permita para traçar um rumo que permita navegar por futuras epidemias. 

“Não vamos nos sair melhor na próxima pandemia nos preparando para a passada. Somente nos sairemos melhor se pudermos prever, prevenir, detectar e responder coletivamente a emergências sanitárias todo santo dia. Se construirmos juntos sistemas de saúde mais resilientes, que absorvam os choques enquanto são ampliados e que protejam a força de trabalho. Só poderemos nos sair melhor investindo em nossas comunidades”, disse Ryan.

Para ele, a alta conectividade do mundo acaba por expô-lo. “Somos a população mais conectada da História. Nos movemos em horas entre os centros urbanos ao redor do mundo. Essa conexão nos trouxe muitos benefícios em termos de desenvolvimento humano, mas também nos deixa vulneráveis. O contágio do patógeno se move rapidamente entre nós, assim como o contágio da desinformação. É uma faca de dois gumes. Diante das pandemias, pode ser a nossa maior fraqueza, mas afirmo que é a nossa maior força. O caminho que trilharmos agora determinará até que ponto poderemos proteger o nosso mundo da próxima ameaça pandêmica”, disse o diretor-geral adjunto. “Devemos repensar as nossas abordagens e reimaginar o nosso futuro se quisermos enfrentar as tempestades que estão por vir”, aconselhou.

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