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15/03/2024

Estudo analisa acesso de população em situação de rua de BH à assistência na pandemia

Fiocruz Minas


Uma pesquisa da Fiocruz Minas analisou o acesso da População em Situação de Rua (PSR) às medidas emergenciais adotadas nas áreas de saúde e assistência social durante a pandemia de Covid-19, no município de Belo Horizonte. O estudo traçou um panorama inédito, mostrando os serviços que mais alcançaram esse público, os principais obstáculos encontrados pelas pessoas ao buscarem atendimento, os desafios enfrentados por gestores e trabalhadores da saúde e assistência social, as inovações implementadas em meio à crise, entre outros aspectos. A pesquisa apresentou ainda um perfil atualizado da PSR na capital mineira, contribuindo para preencher uma lacuna de dados e possibilitar o aperfeiçoamento das políticas públicas voltadas para populações vulneráveis à emergência sanitária.

Para chegar aos resultados, os pesquisadores se basearam em dados relacionados à PSR, disponíveis em bancos de dados governamentais das áreas de saúde e assistência social, e se debruçaram sobre documentos de gestão produzidos pela Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), entre março de 2020 e dezembro de 2021, relacionados ao enfrentamento da pandemia. Além disso, no período de 2021 a junho de 2022, foram realizadas entrevistas com pessoas em situação de rua, pessoas com experiência de vida na rua, trabalhadores e gestores relacionados aos serviços de saúde e de proteção social, representantes da defensoria pública e da sociedade civil organizada com iniciativas de atendimento a essa população. Ao todo, houve 48 entrevistas semiestruturadas e quatro grupos focais, totalizando 86 entrevistados.

“Após a coleta de todo esse material, fizemos uma triangulação de dados qualitativos e quantitativos, de forma a contemplar as diferentes variáveis que afetam a PSR e a ampliar a compreensão dos resultados, já que a análise qualitativa ajuda a explicar o que foi constatado na quantitativa. Além disso, foi instituído um Comitê de Acompanhamento, composto por gestores e trabalhadores da saúde e assistência social de diferentes áreas e funções e por representantes da Pastoral Nacional do Povo da Rua (Pastoral da Rua) e do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, que, durante toda a pesquisa, contribuiu para corrigir inconsistências dos dados, facilitar a entrada dos pesquisadores em equipamentos da saúde e serviços da assistência social para coleta das informações, assim como em espaços organizados pela Pastoral da Rua, sanar dificuldades encontradas no percurso da pesquisa, além de discutir e qualificar os resultados da pesquisa”, explica a pesquisadora Anelise Andrade de Souza, uma das coordenadoras do estudo.

Resultados

No que se refere ao perfil, a análise quantitativa constatou que a PSR em Belo Horizonte é majoritariamente adulta, masculina, negra, com ensino fundamental incompleto. Entretanto, durante a pandemia, verificou-se uma tendência de mudança desse padrão, com aumento de mulheres na rua e de pessoas com maior escolaridade. Já a análise qualitativa apontou, entre todos os entrevistados, a percepção de aumento da PSR após o início da emergência sanitária. “Nas entrevistas, os principais motivos apontados para esse aumento foram perda do emprego, incapacidade de pagar aluguel, migração do interior para a capital em busca de emprego e conflitos familiares decorrentes do aumento do tempo compartilhado em isolamento dentro de casa”, explica Anelise.

Outro aspecto analisado foi o número de atendimentos de saúde destinados à PSR. Os pesquisadores adotaram um recorte temporal de um ano antes e um ano após o início da pandemia, entre 2019 e 2021. Conforme a análise quantitativa, houve 47.971 atendimentos antes da emergência sanitária, contemplando 9.999 pessoas, e 37.912 após o início da pandemia, abrangendo 7.707 pessoas. Nos serviços de urgência, observaram-se 8.099 atendimentos antes da emergência sanitária, referente a 4.110 pessoas, e 4.324 atendimentos durante, destinados a 2.393 pessoas. Houve, portanto, uma queda no número de atendimentos, que se deu de forma mais acentuada nos primeiros meses da pandemia; posteriormente, a rede da saúde conseguiu aumentar o número de atendimentos de pessoas em situação de rua com sintomas respiratórios e ainda retomar a quantidade de atendimentos por outras queixas.

“Ao analisarmos os documentos gerados pela PBH, vimos que, inicialmente, a principal orientação para a população era evitar utilizar o sistema de saúde com questões não relacionadas à Covid-19 ou com sintomas leves, para não causar aglomerações que poderia  aumentar o risco de transmissão da doença. As entrevistas nos mostraram que essa orientação afastou a PSR dos serviços de saúde, mesmo para cuidados de condições crônicas que não deveriam ser interrompidos”, destaca Anelise. Segundo a pesquisadora, as análises também apontaram que, nos meses iniciais da pandemia, a gestão da saúde teve dificuldades para reordenar o sistema, mas, com o passar dos meses, os serviços foram se adaptando e incluindo novos fluxos e diretrizes para sintomáticos respiratórios. “Isso coincide com o período encontrado na análise quantitativa sobre o aumento de atendimentos da PSR com sintomas respiratórios e com a retomada de atendimentos por outras queixas”, explica a pesquisadora.

Os dados quantitativos mostraram ainda que os serviços de saúde foram afetados pelos picos de contágio da Covid-19, ocorridos nos meses de julho e dezembro de 2020. Uma das medidas adotadas para responder a esse aumento da transmissão foi a determinação de que cada regional teria um Centro de Saúde temporariamente convertido em Unidade de Atendimento 24 horas não Covid-19, com o intuito de absorver o volume excedente das UPAs. Os usuários vinculados a essas unidades convertidas em apoio à urgência foram referenciados a outros Centros de Saúde, mudança que afetou a PSR, já que o Centro de Saúde Carlos Chagas, situado na região central da cidade e considerado referência para atendimento a esse público, foi convertida para serviços de urgência. De acordo com os trabalhadores de saúde entrevistados, essa mudança quebrou o vínculo dos usuários frequentes, sendo seus efeitos percebidos mesmo após o retorno aos atendimentos na unidade.

No que se refere à saúde mental, os dados quantitativos indicaram que houve um aumento dos atendimentos nos centros de atenção psicossocial, passando de 4.354 atendimentos antes da pandemia para 4.622 durante a emergência sanitária. Já os dados qualitativos mostraram que esse aumento foi considerado pelos trabalhadores consequência do contexto pandêmico, devido à crise econômica decorrente do período, que, por sua vez, influenciou no aumento e agravamento de crises psicossociais.

Barreiras

Na área de assistência social, um obstáculo significativo para o acesso da PSR foi a alteração no funcionamento dos CREAS, centros de referência regionais que coordenam grande parte da rede de proteção social especial, que tiveram as atividades suspensas durante os dois primeiros meses da pandemia e, posteriormente, funcionaram remotamente até o sétimo mês do fechamento da cidade. Além disso, O Bolsa Família, principal programa de transferência de renda brasileiro, teve seu cadastro de entrada suspenso por 120 dias pelo governo federal e, posteriormente, a atualização do cadastro no CadÚnico, pré-requisito para o programa, passou a ser exclusivamente de forma remota em BH.

Os documentos analisados também mostraram que apenas dois serviços da assistência social foram considerados essenciais para permanecerem em funcionamento durante a pandemia, e, ainda assim, com restrições. Os serviços que mantiveram seu funcionamento foram os SEAS, que realiza abordagens na rua, e os Centros POP, espaço para fazer refeições, cuidar da higiene pessoal, guardar pertences e esclarecer dúvidas. Em contrapartida, diante do aumento da demanda, a gestão da assistência social implementou expansões de seus serviços, criando um terceiro Centro POP, em 2020, e ampliando, em 2021, um que já existia.

Entre os trabalhadores de saúde, uma das principais dificuldades apontadas ocorreu no início da pandemia, quando houve a publicação de diferentes orientações por meio de notas técnicas, gerando desorganização dos fluxos de trabalho. Os trabalhadores relataram dificuldade de comunicação com os gestores e insegurança quanto aos protocolos; já os gestores disseram que isso se deu devido à velocidade do desdobramento da pandemia e ao desconhecimento inicial da doença.

Outro ponto constatado na análise qualitativa foi um atraso de cerca de três meses após o início da pandemia para o nivelamento de informações entre os trabalhadores da saúde e da assistência social. Além disso, verificou-se que a ausência de um sistema de informação compartilhado entre os serviços públicos trouxe dificuldades de integração.

Por outro lado, as análises mostraram que a existência de uma preocupação compartilhada sobre vulnerabilidade da PSR permitiu a execução de ações intersetoriais no decorrer da pandemia, aproximando gestores e trabalhadores da assistência e da saúde. Os serviços volantes da saúde e da assistência social foram os que mais se destacaram como forma efetiva para alcançar o público-alvo. “Um consenso entre todos os entrevistados é que o fechamento da cidade trouxe para a PSR barreiras de acesso às necessidades básicas, pois sua sobrevivência dependia de ações ligadas à movimentação nas ruas. Nesse sentido, a atuação das equipes volantes foi fundamental, pois possibilitou a distribuição de insumos para o atendimento das necessidades básicas sanitárias e de alimentação desta população, principalmente nos primeiros meses”, diz Anelise.

Inovações

As análises também mostraram que, durante a emergência sanitária, houve espaço para inovações, como a implementação de um serviço intersetorial de gestão mista entre as secretarias de saúde e assistência social, que ficou conhecido como Acolhimento Emergencial. Foram estabelecidos fluxos para triagem e encaminhamento dos sintomáticos respiratórios com suspeita de Covid-19 sem indicação clínica para internação hospitalar. Inicialmente, disponibilizaram-se 260 vagas, para o período de 14 dias de isolamento social, mas, posteriormente, devido à falta de demandas, passaram a ser oferecidas 22 vagas, que, em outro momento, chegaram a 30.  “Gestores e trabalhadores da saúde afirmam que houve poucos casos de adoecimento entre a PSR proporcionalmente à população geral. Os motivos atribuídos foram o fechamento da cidade, que diminuiu o contato da PSR com a população geral da cidade, e por ficarem a maior parte do tempo em locais abertos”, explica a pesquisadora.

Outro aspecto mencionado por usuários, trabalhadores e gestores da saúde e assistência social foi o significativo impacto positivo das iniciativas da Sociedade Civil Organizada Pastoral da Rua, que promoveu ações sistematizadas de atendimento e encaminhamentos, promovendo a integração das redes de saúde e assistência social, bem como mobilizando outras entidades e órgãos públicos para o cuidado à PSR durante a pandemia. Destacam-se duas ações principais: uma instalação de permanência-dia e serviços intersetoriais no centro da cidade, chamada Canto da Rua Emergencial, e instalações de moradia para acolhimento temporário e apoio psicossocial para a PSR. “Todos os entrevistados apontaram esses serviços, especialmente o Canto da Rua Emergencial, como importantes pontos de referência e apoio na rede de cuidados da PSR durante a pandemia”, afirma Anelise.

Para a pesquisadora, o conjunto de evidências quantitativas e qualitativas coletadas no estudo mostram mais intervenções emergenciais que funcionaram como facilitadores do acesso à PSR do que medidas que constituíram barreiras. Mas, segundo ela, um fator foi fundamental para o sucesso das ações: Belo Horizonte já possuía sistemas de saúde e de assistência social robustos, com serviços desenhados especificamente para o atendimento da PSR.

“Quando começamos a pesquisa, no início da pandemia, já sabíamos que BH tinha uma estrutura de SUS e assistência social bem sedimentadas. O estudo confirmou que essa estrutura deu sustentação às medidas emergenciais implementadas, facilitando o acesso da PSR aos serviços. Entretanto, é preciso criar mecanismos para superar as barreiras surgidas pelas medidas emergenciais, como o fechamento da cidade. A movimentação nas ruas influencia no modo de vida da PSR, que passa a enfrentar dificuldades para suprir suas necessidades básicas, e, por isso, a assistência não pode ser descontinuada. O ideal é que não tenha pessoas morando nas ruas, mas, enquanto houver, é necessário melhorar o acesso desse público aos serviços, sem perder de vista a necessidade de desenvolver políticas públicas para tirá-las dessa situação”, destaca Anelise.

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