Na segunda metade do século 19, o Jornal do Commercio do Rio de Janeiro era um dos principais periódicos do país e apresentava uma gama variada de assuntos, com sessões que iam desde as últimas notícias da Europa até avisos de escravos fugitivos. Esses anúncios de notificação de fuga apelavam pela identificação e devolução dos cativos, baseados em uma estrutura básica repetitiva, que apontava dados característicos (idade, aparência e condições físicas, profissão, costumes etc), locais onde viviam e os nomes de seus proprietários.
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Aquarela Escravos doentes (1819-20), de Henry Chamberlain |
É a partir desses anúncios descritivos, publicados no ano de 1850, que a historiadora Márcia Amantino resolveu tentar compreender alguns aspectos sociais e cotidianos da escravidão. Em artigo presente na mais recente edição da revista História, Ciências e Saúde – Manguinhos, da Fiocruz, a pesquisadora verifica as condições de saúde e dos corpos de escravos cuja fuga foi anunciada no jornal em questão. “Valendo-se das características e da saúde desses escravos, pode-se inferir a situação em que viviam”, comenta Márcia.
Foram utilizadas duas estratégias para a obtenção de um panorama das condições físicas dos escravos fugidos. Uma se deu por meio da análise das descrições feitas pelos senhores; a outra, mais ligada à saúde, fundamentou-se no detalhamento dos problemas físicos que cada escravo fugitivo possuía, relacionado ao saber médico ou popular da época. Segundo a historiadora, os anúncios revelam informações de ordem patológica e etiológica (que tem a ver com a enfermidade e com o agente causador desta, respectivamente), assim como fornece dados sobre aspectos anatômicos.
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Cartaz afixado no Rio de Janeiro que alertava sobre escravo fugido em 1854 |
A situação patológica que mais se destacou nos itens avaliados refere-se ao tipo infectocontagioso, sendo a varíola a mais aludida. “É grande o número de escravos citados nos anúncios como portadores de varíola ou bexigosos, ou ainda como portadores das marcas deixadas pela doença, pois os que sobreviviam a ela ficavam marcados pelo resto da vida”, esclarece Márcia. Ela acrescenta que, entre os casos observados, as doenças causadas por traumas decorrentes de lesões ocupam o segundo lugar em prevalência. Somando-se a estas a classe de doenças provocadas por carências, de acordo com a pesquisadora, fica visível que mais de um terço do universo de indivíduos analisados não possuía boas condições de vida e trabalho.
Outro indicativo da precariedade da saúde dessa população, segundo Márcia, são as marcas corporais, que aparecem classificadas em cinco grupos diferentes. O primeiro e o segundo estão relacionados às marcas infligidas por esses próprios indivíduos, conforme hábitos e crenças das nações de origem. O terceiro é composto por marcas de propriedade de seus senhores. O quarto e o quinto grupo se referem a cicatrizes sem referências específicas e marcas de castigos, respectivamente.
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Anúncios de escravos fugidos veiculados no jornal O Liberal de Minas (1868) |
“Para concluir, pode-se afirmar que as evidências de condições patológicas levantadas a partir dos anúncios de fujões aqui discutidos, pela sua natureza e pela freqüência em que ocorrem, parecem reforçar a hipótese de que um dos grandes motivos que levavam o escravo a fugir eram os maus-tratos, infligidos talvez com a intenção de marcar o corpo como lição àquele e a outros rebeldes”, diz a historiadora, que complementa que maus-tratos não são somente castigos físicos, mas também a má alimentação e a quebra nos diretos adquiridos.
Márcia ainda elucida que não era lucrativo para os senhores pagar pela recompensa e por um escravo impedido de realizar plenamente suas atividades em função das doenças. No entanto, até os doentes mais graves eram procurados. “Tal fato remete não à lógica econômica, mas a uma lógica social de controle da escravaria, em que seria importante recapturar os fugitivos para que servissem de exemplo aos demais, e não apenas para que retornassem a seu papel de produção”.