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28/11/2016

Estudo analisa noticiário do Dia Mundial da Luta contra a Aids

Renata Moehlecke (Agência Fiocruz de Notícias)


“Nu, vigia diz ter Aids e causa tumulto”: o título, publicado em 1° de dezembro de 1988 na capa da Folha de S. Paulo, marca como o jornal trabalhou o tema HIV/Aids no primeiro ano em que o Brasil se uniu a ONU na celebração anual de combate à doença. "Chama a atenção o fato de essa manchete ocupar um espaço significativo num jornal de grande circulação nacional no Dia Mundial da Luta Contra a Aids, e a notícia não tratar nem da doença, tampouco da comemoração da data", afirma a professora universitária Ana Condeixa, que defendeu tese de doutorado em 2016 no Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). A pesquisadora analisou como dois grandes jornais brasileiros abordaram, anualmente e por 25 anos, a temática da Aids no Brasil na data em que se comemora a luta contra a enfermidade. Segundo Ana, os resultados apontaram que a mídia apenas cumpriu seu papel de levar informação ao público leitor, mas não aprofundou as discussões propostas.

Na pesquisa, foram encontradas 289 matérias ao todo no período, entre manchetes de primeira página, editoriais, artigos, reportagens e entrevistas relativas ao Dia Mundial da Luta Contra a Aids, direta ou indiretamente. “Certamente, esta não é a primeira tese sobre a divulgação da Aids na imprensa que chama atenção da academia”, comenta a pesquisadora, que também é coordenadora do curso de Jornalismo da UnigranRio. “A maior parte dos trabalhos analisa jornais e, na grande maioria, também O Globo e a Folha de S. Paulo; mas o que torna meu trabalho diferente é o recorte temporal, uma vez que escolhi analisar o Dia Mundial da Luta Contra a Aids de 1988 a 2013”.

A pesquisadora explica que sua hipótese inicial era de que a imprensa parou de falar da Aids quando os números de óbitos caíram vertiginosamente, em função de novos medicamentos. No entanto, esta não se comprovou. “A cobertura priorizou o Brasil e o discurso científico, relacionando os dados nacionais com os internacionais; entretanto, os jornais reservaram pouco espaço em suas capas para tratar do tema, ainda que tenhamos escolhido uma data de culminância”, esclarece. “Além disso, os veículos também quase não deram voz às vítimas, priorizando, na maior parte das vezes o discurso de médicos e de pesquisadores, outras vezes de alguns responsáveis pelos movimentos de luta e enfrentamento da epidemia. E quando deu espaço foi aos hemofílicos, os que receberam sangue contaminado e/ou às mulheres que contraíram o HIV de seus maridos bissexuais. A imprensa dividiu os soropositivos em vítimas e algozes”.

Ela acrescenta que, ainda assim, houve períodos de silêncio nos periódicos. “O Brasil, entre 2010 e 2015, passou de 700 mil para 830 mil doentes de Aids, com 15 mil mortes por ano. Sozinha, a nação brasileira conta com mais de 40% das novas infecções por HIV da América Latina”, destacou. “Mesmo com a elevação dos números, o jornal O Globo, por exemplo, não publicou em sua capa matérias sobre o assunto na data analisada de 2007 a 2013. De 2009 a 2013, igualmente, não houve uma linha sequer acerca da epidemia nas primeiras páginas da Folha de São Paulo. A lógica seria essas informações estarem nesse espaço no Dia Mundial da Luta Contra a Aids”.

Segundo Ana, os jornais também pareceram não usar informações positivas em suas capas na data. “Nesses anos de silêncio, muitas foram as conquistas, tais como a conclusão do processo de nacionalização de um teste que permite detectar a presença do HIV em apenas 15 minutos. A Fiocruz passou a fabricar o teste, em 2008, ao custo de US$ 2,60 cada enquanto o Governo gastava US$ 5 por teste”, exemplifica. “No entanto, durante pelo menos quatro anos, houve um silenciamento na capa em dois dos maiores jornais do país no Dia Mundial da Luta contra Aids”.

Pela observação dos dados, ela argumenta que seria necessário buscar entender o porquê da lacuna encontrada. “Não podemos afirmar os motivos nem culpar a imprensa pelo não destaque dos dados apresentados, até porque há, no circuito midiático, outros interesses ou (des)interesses, sejam por parte das ONGs, dos movimentos sociais, da comunidade médica, dos doentes da Aids e do governo”, aponta Ana. “De toda forma, não somos ingênuos de afirmar que a imprensa é vítima da comunidade científica, do Ministério da Saúde, da OMS, da Unaids, dos movimentos sociais. A imprensa é parte da sociedade e, portanto, carrega em si todo o preconceito em relação ao sexo, à homossexualidade, às drogas, aos profissionais do sexo e à bissexualidade masculina, entre tantos temas. Esses fatores podem ter contribuído para as escolhas editoriais.”

Questões morais, ideológicas e preconceito

Devido a forma rápida como surgiu e se espalhou, de acordo com Ana Condeixa, a Aids conquistou espaço na imprensa, sobretudo, pela necessidade urgente da comunidade médica relatar as descobertas e avanços nos desafios enfrentados. “Os meios de comunicação se tornaram, então, palco das notícias e, da mesma forma, serviram de praça, uma espécie de Ágora, onde se discutiram ética, preconceito e solidariedade, retirando dos médicos e dos cientistas a exclusividade sobre a doença”, destacou. “Diferentemente de outras epidemias, a enfermidade trouxe mais do que dor e morte, pois impôs, por exemplo, transformações no sistema público de saúde, no controle de qualidade dos bancos de sangue. As questões levantadas também invadiram os lares, em suas mais distintas composições e gerações, e as pessoas tiveram que discutir abertamente a homossexualidade, a bissexualidade, a infidelidade e o uso de drogas”.

No entanto, Ana indicou que, nos meios de comunicação, as diferentes opiniões não parecem ter sido adequadamente exploradas: o que ocorreria até hoje, na maior parte dos casos, é um reflexo nos veículos dos possíveis preconceito sociais. “O jornal O Globo publicou, em 1996, uma matéria de capa para o Jornal da Família sobre mulheres infectadas por seus maridos. Ocorre que, se em 25 anos, não observamos nas matérias uma linha sequer sobre os HsH (homens que fazem sexo com homens), mas não podemos culpar apenas os jornais e os jornalistas por isso”, pondera a pesquisadora. “A bissexualidade masculina é um tabu em nossa sociedade. Pode-se culpar os gays, os drogados e os profissionais do sexo, com anuência de toda a sociedade, mas não se ousa levantar a questão de que homens casados que não se identificam com a orientação sexual homossexual vivam a bissexualidade. Se o tema foi discutido, ficou nos porões da comunidade científica e não chegou à imprensa de forma intensa. O dia mundial contra a doença poderia ajudar a jogar uma luz nessa questão, mas ainda hoje não o faz”.

Para a pesquisadora, a abordagem desses temas não é algo simples, pois não dependeria somente de uma mudança no modus operandi do jornalista. “Seria importante uma mudança na formação dos jornalistas. É preciso ter profissionais abertos a olhar o ‘outro’, a ampliar seus repertórios e derrubar barreiras trazidas pela educação, família, religião etc.”, disse. “No entanto, o problema do preconceito é parte da sociedade como um todo, o que pode ser um grande desafio”, complementa. Mesmo com essa dificuldade, para Ana, uma das possíveis vias de ampliação de diálogo dos meios de comunicação com a sociedade seriam as novas tecnologias e os jovens (público atualmente bastante afetado pela doença), que poderiam auxiliar na apresentação de diferentes formas de reflexão, debate e exposição de opiniões diversificadas, contribuindo para luta contra o preconceito.  

“Hoje cerca de 41 mil pessoas vivem com Aids no Brasil. Em 2015, o Ministério da Saúde divulgou uma pesquisa apontando o crescimento de 40% do número de infectados por Aids em jovens na faixa de 15 a 24 anos em todo o país”, esclarece. “No período de 25 anos que compreende esta pesquisa, muitas matérias foram publicadas e a transmissão de doenças pelo sexo, por exemplo, passou a ser assunto discutido pelas famílias. Ainda assim, há alguns desafios a enfrentar e resolver. A própria imprensa também sofreu mudanças com as novas tecnologias. Os grandes jornais agora têm suas versões on-line, e os jovens não são seus leitores; mas uma coisa não mudou: a grande imprensa ainda pauta os veículos menores, os blogs, o Youtube e outros canais, e também são pautadas por eles. Há que se descobrir, então, como falar com esse público, seja via Facebook, Snapchat, Twitter ou Instagram”. 

 

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