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16/07/2018

Estudo auxilia compreensão sobre danos neurológicos pelo zika

Vinícius Ferreira (IOC/Fiocruz)


Um grupo de cientistas acaba de alcançar resultados capazes de lançar luz a inquietantes perguntas levantadas a partir da epidemia do vírus zika que se espalhou pelo Brasil em 2015 e 2016: por que tantos casos de fetos afetados pela doença durante a gravidez materna foram diagnosticados com microcefalia? O que explica algumas crianças terem desenvolvido problemas motores e oculares mesmo sem alteração no perímetro craniano? Qual a razão do aumento nos casos de adultos com síndrome de Guillain-Barré? 

Após uma bateria de análises laboratoriais em amostras de homens e mulheres, incluindo gestantes, infectados com o vírus e de testes em camundongos, um estudo liderado pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com instituições nacionais e internacionais, identificou que a base dos danos ao sistema nervoso e à visão relacionados ao zika podem ser resultado de um “fogo amigo” na reação imune: ao reagir ao vírus, os anticorpos acabam mirando também em um componente presente nas membranas das células nervosas, conhecida como gangliosídeo GD3. Esta biomolécula representa um glicolipídeo capaz de desempenhar funções biológicas de extrema relevância na fisiologia das células tronco-neurais, principais alvos do hospedeiro na infecção pelo vírus da zika. Com isso, ao mesmo tempo em que o organismo reage ao vírus, mira também a própria estrutura das células do sistema nervoso. A pesquisa contou com parceria de especialistas da Escola de Medicina da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz). Os resultados foram publicados na revista Frontiers in Medicine.

Dados do Ministério da Saúde mostram que, desde o início da circulação do vírus no país, são contabilizados mais de três mil casos confirmados de bebês com microcefalia relacionados ao zika. Colômbia, Estados Unidos, Martinica, Panamá e Porto Rico também registraram casos de síndrome congênita associada à infecção pelo vírus. Em relação à síndrome de Guillain-Barré, 13 países do continente americano, incluindo o Brasil, notificaram aumento na incidência da doença. Por aqui, após a entrada do zika no território, alguns estados registraram uma elevação considerável da doença autoimune. De acordo com estatísticas da Organização Mundial da Saúde (OMS), houve crescimento sobretudo em Alagoas (516,7%), Bahia (196,1%), Rio Grande do Norte (108,7%), Piauí (108,3%), Espírito Santo (78,6%) e Rio de Janeiro (60,9%). A síndrome de Guillain-Barré é uma doença grave e sem cura. Além de causar paralisa geral, pode levar o paciente a ter dificuldade em engolir, falta de ar, fraqueza muscular facial, visão dupla e ritmo irregular do coração.

Passo a passo do estudo

Assim como qualquer microrganismo invasor, o zika tem um alvo preferencial no corpo humano: ao ser injetado na corrente sanguínea de um indivíduo pela picada de um mosquito Aedes aegypti infectado, o vírus procura as células-tronco neurais para se alojar e se replicar. Por esse motivo, é considerado um vírus com ‘neurotropismo’ (de forma simplificada, um vírus atraído pelo sistema nervoso). Presentes no cérebro, as células-tronco neurais são responsáveis por algumas das rotinas indispensáveis do corpo humano, como a geração de neurônios e a regeneração dos tecidos do corpo. Em menor grau, essas estruturas também são encontradas na retina ocular. É justamente na composição da membrana revestidora das células-tronco neurais que estão presentes os gangliosídeos GD3, fundamentais para o bom funcionamento dos neurônios. 

Após ser introduzido no organismo, o vírus zika já localiza, invade e destroi um conjunto de células-tronco neurais – e permanece nessa atividade de localização, invasão e destruição, várias e várias vezes seguidas, o que é necessário para garantir sua replicação e manutenção no organismo. E a cada nova etapa de invasão e destruição de células, parte da estrutura celular morta fica aderida ao vírus. Entre os resíduos da morte celular que ficam grudados no vírus estão os gangliosídeos GD3. É aí que o sistema imunológico, ao mirar o vírus, começa, inadvertidamente, a também direcionar seu arsenal para o próprio gangliosídeo GD3. Se o volume da reação imune for grande, o risco é de que o próprio sistema nervoso vire alvo. 

“Imagine um indivíduo que nunca entrou em contato com o vírus zika. No caso de uma infecção, ele ainda não possui anticorpos preparados para neutralizar o vírus. Essa produção começa somente depois de o organismo identificar o inimigo e reagir contra o sucesso dele em acometer o indivíduo durante a infecção”, explica Alexandre Morrot, pesquisador do Laboratório de Imunoparasitologia do IOC/Fiocruz e coordenador da pesquisa. “A partir daí, como em uma batalha, os anticorpos – um importante componente das respostas de defesa do hospedeiro, capazes de identificar, neutralizar e destruir os vírus em todos os tecidos e fluidos do corpo – são liberados para impedir a continuidade da destruição das células infectadas pelo vírus. Todo esse processo é muito bem arquitetado. No entanto, situações adversas podem acontecer. Às vezes, o corpo produz anticorpos auto-reativos, capazes de reagir contra biomoléculas do próprio hospedeiro, que acaba gerando um desequilíbrio desfavorável ao próprio individuo”, ilustra o imunologista, que antes de ingressar no IOC havia iniciado a pesquisa enquanto atuava no Laboratório Integrado de Imunobiologia da UFRJ.

Busca de evidências

Para testar a hipótese de que a própria reação imune ao zika usava as células nervosas e da retina ocular como alvos ‘colaterais’, os pesquisadores realizaram um primeiro teste para determinar se os anticorpos produzidos pelo corpo humano após a infecção por zika atuavam contra os gangliosídios GD3. Para isso, foram analisadas amostras de 13 pacientes – sendo seis homens e sete mulheres – e de 12 gestantes, todos com infecção prévia por zika. Para comparação, foi utilizado um grupo de indivíduos saudáveis. No grupo com histórico de infecção, os especialistas constataram um aumento significativo na produção de um tipo específico de anticorpos: os chamados autoanticorpos. “Eles reagem contra componentes do próprio organismo, podendo ocasionar doenças autoimunes, como a síndrome de Guillain-Barré, causada pelo ataque do sistema imunitário ao sistema nervoso periférico”, explica Alexandre. Com o método de Elisa (Ensaio de Imunoabsorção Enzimática, na sigla em português), foi identificada a prevalência da classe de autoanticorpos IgG contra o gangliosídeo GD3 (ou anti-GD3).

Em seguida, foi investigado se esses autoanticorpos anti-GD3 eram de fato capazes de reconhecer o gangliosídio GD3 presente na membrana plasmática das células-tronco neurais e da retina ocular. Nesse ponto, foram comparadas células da retina ocular de camundongos comuns e de camundongos modificados geneticamente para não expressar o gangliosídeo GD3 na retina ocular. Amostras de soro de pacientes infectados foram depositadas em lâminas com as células da retina ocular dos dois tipos de animais (com e sem GD3). Por meio de testes de imuno-histoquímica, a expressão do gangliosídeo pode ser observada nos tecidos de camundongos com GD3 quando em contato com os soros infectados. Nos tecidos sem GD3 não houve reação. Para comparação, o procedimento também foi realizado com os soros dos pacientes saudáveis. “Uma vez que o soro não continha autoanticorpos, nenhuma reação foi observada. Ou seja, por meio desse segundo teste constatamos que a infecção pelo zika é capaz de gerar autoanticorpos que atuam diretamente contra o gangliosídeo GD3”, explicita Morrot.

Mais uma peça no quebra-cabeça sobre o zika

Segundo o especialista, a produção de autoanticorpos contra uma substância vital para as atividades das células neurais pode afetar diretamente o processo de neurogênese, capaz de formar novos neurônios. “Uma vez que os autoanticorpos reconhecem os gangliosídios GD3 na superfície das células tronco-neurais, esse processo pode resultar na morte dessas células e afetar o desenvolvimento correto do tecido nervoso. Essa condição pode ser uma das explicações para o elevado número de crianças acometidas com microcefalia e outras malformações neurológicas, mesmo sem alteração do perímetro cefálico”, pondera o coordenador do estudo. 

Os dados científicos que vêm constatando problemas oculares nas crianças de gestantes infectadas pelo zika também aumentam as suspeitas sobre o GD3. “Este fato estreita a hipótese de que o ataque ao GD3 também está ligado à disfunção na biologia das células, uma vez que esse gangliosídio também desempenha importante papel na formação do tecido da retina”, argumenta Alexandre.

Em relação à síndrome de Guillain-Barré – uma questão que vem sendo investigada muito antes do vírus zika surgir como uma preocupação –, a literatura científica já demonstrava que respostas autoimunes direcionadas a gangliosídeos podem contribuir para complicações no sistema nervoso. Morrot acredita que a resposta inapropriada direcionada ao GD3 após a infecção pelo vírus zika pode ser uma explicação para o aumento de casos de adultos acometidos com a síndrome. 

Sinal de alerta

A forte indicação de que o GD3 pode ser a chave para entender as neuropatologias associadas às infecções por zika apontam que esse gangliosídeo pode ser avaliado como um biomarcador para identificar pacientes com maior risco de desenvolver complicações autoimunes relacionadas à síndrome de Guillain-Barré ou crianças com maior chance de danos neurológicos relacionados ao vírus zika. Ou seja: mensurar a presença do anti-GD3 pode ajudar a prever esses desdobramentos nocivos. Para isso, será necessário entender qual o limiar patológico de produção de autoanticorpos anti-GD3 – sobretudo após infecções secundárias ou subsequentes não apenas pelo zika, mas também por outros patógenos que possam desencadear esse processo de ‘fogo amigo’. Isso depende do estabelecimento de um acompanhamento prospectivo e multidisciplinar de pacientes.

O imunologista chama atenção, ainda, para outro fato relevante que surge na medida em que o GD3 entra em cena nos estudos sobre o zika: o método de produção de uma futura vacina para o vírus precisará considerar esse ponto. O pesquisador destaca que os diversos grupos debruçados no assunto precisarão ter cautela em relação à formulação de um imunizante que esteja baseado no uso de células de mamíferos para a produção de vacinas contra o vírus zika. Segundo Morrot, “tendo em vista que o vírus cresce bem em células progenitoras neuronais, que expressam GD3, a escolha dessas células ou mesmo tecidos embrionários para a produção de imunógenos ou variantes atenuadas do vírus poderia resultar em consequências danosas, pois a formulação vacinal poderia conter resíduos do gangliosídeo”. O especialista argumenta ainda que “fato semelhante aconteceu no passado com a vacina antirrábica, que está associada, em alguns casos, com a síndrome de Guillain-Barré como um dos eventos adversos. Pacientes que adquiriram esse distúrbio apresentaram taxas significativas de autoanticorpos contra gangliosídeos em seus organismos. Toda atenção e precaução são válidas, tendo em vista a importância da vacinação para a saúde pública na prevenção de doenças infecciosas e epidemias”, salienta.

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