Um estudo internacional que abrange Brasil, Estados Unidos e, mais recentemente, Argentina e África do Sul busca descobrir, entre três coquetéis de medicamentos anti-retrovirais, o mais eficaz contra a transmissão vertical do HIV, ou seja, de mãe para filho. O Brasil participa com oito centros — dois no Estado do Rio, dois em São Paulo, um em Minas Gerais e três no Rio Grande do Sul.
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Sem intervenção, a transmissão vertical ocorre em cerca de 30% dos casos (Foto: Arquivo CCS) |
Patrocinado pela Sessão de Aids em Crianças, Adolescentes e Mães do Instituto Nacional de Saúde e Desenvolvimento Humano da Criança (NICHD), em colaboração com o Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID), ambos da rede de Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, o estudo teve início em março de 2004 e é coordenado pela infectologista Valdiléa Gonçalves Veloso, pesquisadora do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec) da Fiocruz. O nome comprido (NICHD/HPTN 040 — Fase III do estudo clínico randômico sobre a segurança e a eficácia de três esquemas terapêuticos anti-retrovirais neonatais para a prevenção da transmissão do HIV-1 no parto) não esconde a relevância da iniciativa.
A transmissão vertical do HIV pode ocorrer em qualquer período: na gestação, no trabalho de parto, no próprio parto e também durante a amamentação. Sem qualquer intervenção, a transmissão ocorre em cerca de 30% dos casos. De acordo com a coordenadora, desde a publicação dos resultados do estudo PACTG 076, em 1994, sabe-se que a transmissão vertical pode ser reduzida com os anti-retrovirais, e estudos posteriores demonstraram que a transmissão pode cair até mesmo quando a administração das drogas é tardia, já no curso da gestação ou mesmo no parto, ou ainda administradas apenas ao recém-nascido, afirma. “Intervenções não-medicamentosas como a cesariana eletiva e a substituição do aleitamento materno contribuem para a redução da transmissão”, informa a pesquisadora. O uso conjunto dessas intervenções pode reduzir a transmissão para menos de 2% dos casos.
O desenho original do estudo previa a participação apenas de Brasil e Estados Unidos, países em que a maior parte das mulheres tem diagnóstico de Aids no pré-natal — o que é o ideal. Mas para que seja atingida a previsão de cerca de 1.700 crianças nascidas de mulheres infectadas pelo HIV foram convidados a participar um centro em Joanesburgo, na África do Sul, e outro em Buenos Aires, na Argentina. No primeiro semestre de 2006 estavam cadastradas 600 crianças, a maior parte recrutada pelas equipes do Rio de Janeiro.
O diagnóstico oportuno, abrindo caminho para as intervenções necessárias — como os anti-retrovirais, a cesariana ou a substituição da amamentação —, ainda é um grande desafio para os países em desenvolvimento, observa Valdiléa. No Brasil, cerca de 30% das mulheres grávidas com HIV chegam ao trabalho de parto sem saberem que estão infectadas ou sem qualquer prevenção da transmissão, embora a rede pública ofereça diagnóstico e tratamento. “Isso acontece por uma combinação de barreiras enfrentadas pelas mulheres mais vulneráveis no acesso ao sistema de saúde, que ficam sem os cuidados do pré-natal ou recebem cuidados de baixa qualidade”, aponta a infectologista. Por exemplo, o médico não oferece o teste; ou, se oferece, o resultado demora tanto que o bebê nasce antes que a mãe inicie o tratamento, e a criança acaba por não se beneficiar dos recursos. “No Brasil, o pré-natal de baixa qualidade é um problema muito maior do que a falta do pré-natal”, avalia, “uma vez que a maior parte das brasileira freqüenta o pré-natal”.
De fato, dados do MonitorAids apontam: em 2004, 96% das gestantes brasileiras tiveram ao menos uma consulta pré-natal; o teste de HIV foi pedido para 75% delas; o resultado não saiu antes do parto para 35%. Assim, o diagnóstico na hora do parto, com testes rápidos, é a única opção. Nesse momento, o uso de anti-retrovirais e a substituição da amamentação ainda podem impedir a transmissão, mas em nível bem inferior ao obtido no início da gestação. Para mulheres nessa situação, o Ministério da Saúde recomenda a administração de zidovudina (AZT) durante o parto, a substituição do aleitamento materno e a administração de AZT também ao recém-nato, segundo Valdiléa.
Quanto à melhor estratégia, ainda não há uma conclusão. “Nosso estudo vai avaliar que esquema de profilaxia com anti-retrovirais é mais eficaz na redução da transmissão no momento do parto: AZT sozinho (recomendado pelo Ministério da Saúde), AZT+nevirapina ou AZT+nevirapina+nelfinavir”, diz a infectologista. Os laboratórios Boehringer Ingelheim Pharmaceuticals e GlaxoSmithKline doaram os medicamentos — zidovudina, lamivudina e nevirapina — como contribuição ao financiamento do estudo.
Todos os exames são feitos no Brasil, onde ficam armazenadas também todas as amostras biológicas. O Laboratório de Aids e Imunologia Molecular, do Instituto Oswaldo Cruz da Fiocruz, sob a responsabilidade da bióloga Mariza Gonçalves Morgado, é o repositório de espécimes biológicos do estudo para os centros do Brasil. No Ipec é feita a gerência dos dados do estudo provenientes dos centros.
Participam do estudo, no Brasil, o Hospital dos Servidores do Estado (Rio de Janeiro) e o Hospital Geral de Nova Iguaçu (Baixada Fluminense); em Porto Alegre, o Grupo Hospitalar Conceição (Hospital Conceição e Hospital Femina) e o Complexo Hospitalar da Irmandade Santa Casa da Misericórdia; em Belo Horizonte, a Universidade Federal de Minas Gerais; em São Paulo, Universidade Federal de São Paulo e Universidade de Ribeirão Preto.
O médico José Henrique Pilotto, pesquisador do estudo no Hospital Geral de Nova Iguaçu, observou que o número de gestantes com o vírus HIV sem tratamento durante a gestação é 65% mais alto no Rio do que no restante do país. As cariocas não fazem pré-natal? “É possível que o maior recrutamento no Rio de Janeiro indique que um número significativo de mulheres continue com acesso limitado aos recursos de prevenção da transmissão vertical do HIV no sistema de saúde”, observa Valdiléa Gonçalves Veloso.
Notificação é crucial para a vigilância
No texto de apresentação do Boletim Epidemiológico Aids/DST 2005, divulgado em dezembro passado, o então diretor do Programa Nacional de DST/Aids, Pedro Chequer, observava que as notificações sobre gestantes soropositivas para o HIV, de natureza compulsória desde o ano de 2000, vêm aumentando ao longo do período analisado, mas continuam aquém do número estimado nos estudos de prevalência nacional. Em 2004, segundo ele, das 12.644 gestantes soropositivas para o HIV estimadas, houve cerca de 52% notificações.
Para Chequer, a notificação de gestantes HIV+ contribui não somente para identificar os fatores que contribuem para a transmissão vertical do HIV, mas também como instrumento importante de monitoramento das tendências do HIV na população de 15 a 49 anos de idade, representante da população sexualmente ativa do país (A íntegra da apresentação está neste link).
A estimativa de 12.644 gestantes soropositivas para o HIV a que se referiu o ex-diretor do PNDST/Aids foi feita por um estudo de 2004, numa amostra representativa de parturientes de 15 a 49 anos de todas as regiões do país. Segundo o estudo, 3 milhões de mulheres dão à luz no Brasil anualmente, e a taxa de prevalência de portadoras do HIV no momento do parto é de 0,42%, o que corresponde a 12.644 mil parturientes infectadas.
Para conhecer o mais precocemente possível o estado sorológico da gestante/parturiente/puérpera, o país tornou a notificação obrigatória pela Portaria nº 5 de 21/2/2006, publicada no Diário Oficial de 22/2/2006, Seção 1 página 34), conforme a Lei 6.259/75. Para que seja efetiva a vigilância epidemiológica, as unidades de saúde devem notificar mensalmente os casos de infecção de gestantes pelo HIV à instância municipal responsável, de onde as informações saem para as secretarias estaduais e, destas, para o Ministério da Saúde. Os fluxos e os prazos de encaminhamento das informações devem coincidir com os das notificações de Aids.
O baixo número de notificações de gestantes soropositivas no Rio de Janeiro (88 entre janeiro e junho de 2005, contra 764 em São Paulo, 158 em Minas Gerais e 56 no Espírito Santo), possivelmente confirma a observação dos pesquisadores de que no estado as mulheres vulneráveis têm acesso limitado aos serviços de prevenção do SUS.
Fonte: Radis