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23/03/2020

‘Fake news’ circularam na imprensa durante surto de gripe espanhola no Rio em 1918

Cristiane Albuquerque (COC/Fiocruz)


Água quente com vinagre, receita de coco e até óleo consagrado. Esses são alguns ingredientes de receitas que circulam na internet prometendo, sem nenhuma comprovação científica, combater o novo coronavírus (Covid-19). Se a divulgação das chamadas fake news – ou notícias falsas – tornou-se um fenômeno massivo com as redes sociais e o uso de aplicativos de troca de mensagem pelo celular, em 1918, foram a imprensa carioca e até mesmo as autoridades que contribuíram para disseminar as chamadas ‘receitas peculiares’ que prometiam curar a gripe espanhola. Essa é uma das constatações do artigo O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’, do pesquisador Ricardo Augusto dos Santos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). 

Receitas peculiares também circularam na imprensa paulista, como estas publicadas em 'O Estado de S. Paulo' em 21/10/1918 (imagem: Revista Careta/Acervo Casa de Rui Barbosa)
 
 

Acredita-se que a gripe espanhola tenha sido trazida ao território brasileiro por um navio inglês, o Demerara, que passou pelos portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro em 1918. Em meados de setembro daquele ano, essas cidades portuárias já estavam infestadas. Com o avanço da doença, algumas promessas de cura eram noticiadas pela imprensa da época: caldo de galinha, quinino, ovos e limão eram alguns dos produtos considerados milagrosos. “Mesmo sem comprovação do valor terapêutico das substâncias e o desconhecimento do perigo da ingestão sem controle, os jornais divulgavam receitas com a promessa de cura. Verdadeiros ou não, esses boatos eram como se fossem realidade pelo impacto emocional que causavam e eram distribuídos pelo governo”, destaca Ricardo. 

O estudo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos observa, ainda, que situação semelhante também foi identificada durante a pandemia da Peste Negra que assolou a Europa do século 14 a 17. Naquele período, surgiram diversas explicações para o mal: castigo divino, influência dos planetas e contaminação do ar e da água por ‘suspeitos’ eram respostas que davam sentido às epidemias e ao cotidiano massacrado pelo horror, contribuindo para que o medo tomasse conta da população. “Na época dos surtos epidêmico da peste na Europa, a maioria esmagadora da população não sabia ler. A divulgação dos boatos era feita de forma verbal, as pessoas comentavam umas com as outras e espalhavam as informações imprecisas”, comentou o pesquisador. 

Atualmente, alguns veículos da imprensa têm equipes dedicadas exclusivamente ao fact checking – verificação de fatos a partir de dados, estudos científicos e registros de órgãos oficiais, por exemplo. No contexto da atual pandemia do coronavírus, o pesquisador adverte para a necessidade de buscar e somente compartilhar informações de fontes confiáveis e seguras. “As informações incorretas podem contribuir de forma negativa para esse problema de saúde pública. Desta forma, a imprensa deve atuar na desconstrução de narrativas distorcidas sobre a pandemia”, defendeu. No Portal Fiocruz é possível encontrar orientações sobre a Covid-19 e o novo coronavírus. Leia notícias da Fiocruz sobre o tema na Agência Fiocruz de Notícias

Ruptura de normas sociais

Uma vez associada a moléstia ao doente, este era isolado. (...) As autoridades públicas restringiram-se a orientar a população a evitar os lugares de aglomerações (...). O medo apossou-se pouco a pouco da população. Os trechos destacados podem parecer familiares e similares aos alertas feitos atualmente, mas remetem às recomendações de prevenção tanto da peste quanto da gripe espanhola. No cenário atual, as instruções das autoridades são semelhantes. De acordo com o historiador, as epidemias são um risco para todos. Mas, no contexto brasileiro, é preciso levar em consideração, também, a questão social no enfrentamento de epidemias. 

“As pessoas mais pobres, por exemplo, não possuem moradia e alimentação adequadas, muitos pertencem ao chamado mercado informal. Cumprir as medidas de prevenção pode significar não ter renda. Por isso, muitos continuam trabalhando, correndo riscos. As autoridades devem considerar as características desse grupo social para que ele não tenha sua saúde e economia ainda mais prejudicados”, advertiu Ricardo. 

Outros pontos de convergência entre as epidemias, segundo o pesquisador, são a negação da sua existência ou a avaliação de que os surtos serão pequenos. Explicações que associam as epidemias a castigos divinos contra os pecados dos homens também são muito frequentes. A fuga, a perda dos laços comunitários, a ruptura das normas sociais e o medo são outras manifestações que, apesar das diferenças sociais e históricas, são recorrentes. 

“Talvez a maior semelhança entre as epidemias seja a quebra das normas sociais de convivência e sociabilidade. Os processos são rápidos e, de uma hora para outra, a vida é suspensa. Durante a gripe, no Rio, em 1918, as pessoas jogavam nas ruas os cadáveres de parentes próximos para que carroças recolhessem os corpos ou os enterravam nos quintais. A epidemia impossibilitou que esse tipo de ritual funeral fosse executado, por exemplo”, pontuou.

Epidemias: sentimentos de medo e prazer

A partir da análise da obra literária Decamenon de Giovanni Boccaccio, o artigo mostra ainda que, apesar do impacto dramático da peste negra e das orientações de isolamento, aquele período foi marcado por comportamentos descritos como uma ‘busca aos prazeres antes que o mundo acabasse’. “Nesse aspecto, as epidemias proporcionam sentimentos de medo e prazer. Medo da morte e a alegria de continuar vivo. Para muitos, o fim do mundo era certo e estava próximo, o que os levava ao esquecimento da doença pelo prazer. Por isso, as pessoas não respeitaram as orientações de isolamento, saiam às ruas para se divertir e bebiam sem constrangimento”, explicou Ricardo. 

Já no Rio de Janeiro, registros da imprensa da época mostram que cariocas foram obrigados a cumprir tais determinações. Dois terços da população ficaram doentes e acamados, e o número oficial de mortos foi de cerca de 15 mil. Em novembro de 1918, depois de três meses de epidemia, a gripe espanhola estava controlada na cidade. 

De acordo com o estudo, após a epidemia, um fenômeno interessante aconteceu no Rio de Janeiro: o Carnaval de 1919, o primeiro depois da gripe, foi apontado como um dos mais animados da época. Elementos presentes na epidemia foram alvos de crítcas ou brincadeira. A cidade se divertiu e brincou com um evento que ainda estava causando terríveis reflexos e as revistas ilustradas como O malho e Careta documentaram em dezenas de fotografias a folia que animou o Rio. “Uma alegria incomum que tomou conta da cidade. Registros mostram a festa popular com bailes, blocos, batalha de confetes e até uma dramatização carnavalesca da situação que os vitimara. Era a festa e o prazer, onde antes havia medo e morte”, finalizou. 

Gripe espanhola: a cidade ganhou um ar sepulcral, mostra historiadora

O cotidiano da cidade do Rio de Janeiro durante o surto de gripe espanhola em 1918 também é discutido em artigo da historiadora Nara Azevedo, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz. Em La dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, ela aponta que, "além de esvaziar a cidade de seus sons cotidianos, a gripe afetou a boemia". "A cidade foi progressivamente paralisando até ganhar um ar sepulcral. Todos os serviços funcionavam precariamente por falta de pessoal", escreveu a pesquisadora.
  
Entre os relatos, Nara Azevedo cita trecho de um texto publicado pelo Correio da Manhã em 20 de outrubro de 1918. "Era fúnebre o aspecto da cidade ontem à noite. Todo o comércio fechado, o movimento nulo, absolutamente nulo. Um ou outro bar e botequim ainda servia a freguesia, mas de longe em longe, porque, em sua quase totalidade, essas casas, que tanta vida davam à cidade, não funcionavam. O café não se encontrava, nos que com pessoal reduzido procuravam atender os fregueses", publicou à época o jornal.

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