Uma pesquisa desenvolvida no Instituto Carlos Chagas (ICC/Fiocruz Paraná) abre novas perspectivas para o tratamento da leucemia linfoide aguda (LLA), o tipo de câncer mais comum na infância. O trabalho resultou na concessão de patentes na China, em julho de 2024, e nos Estados Unidos, em dezembro. A tecnologia permanece em processo de análise para concessão de patente no Canadá, Índia e na Comunidade Europeia. A descoberta, feita pelos pesquisadores Tatiana Brasil e Nilson Zanchin e a estudante de doutorado Stephanie Bath de Morais, propõe uma versão inovadora da enzima asparaginase humana, tornando o tratamento mais eficiente e menos tóxica.
A asparaginase é um dos principais medicamentos utilizados no tratamento da LLA desde os anos 1970. Atualmente, a enzima usada no tratamento é extraída de bactérias e, embora eficaz, causa uma forte reação imunológica no organismo, provocando efeitos colaterais. A solução desenvolvida pelo grupo da Fiocruz Paraná propõe uma alternativa com menor risco de rejeição, pois utiliza uma versão modificada da asparaginase humana. “A versão humana da enzima, por si só, não tem atividade bioquímica suficiente para ser usada como medicamento. Nosso estudo identificou alterações estruturais capazes de ativá-la, tornando-a funcional para fins terapêuticos”, explica Tatiana Brasil.
O desenvolvimento do projeto teve início em 2013, quando o Brasil enfrentou o risco de desabastecimento do medicamento importado. O desafio levou a equipe a investigar possibilidades de produção nacional, indo além da simples reprodução do medicamento existente. “A asparaginase usada hoje no tratamento é a mesma desde os anos 1970, com poucos avanços. Nossa abordagem foi modificar a versão humana da enzima para que ela tivesse um efeito terapêutico, minimizando as reações adversas”, observa Tatiana.
A pesquisa revelou que a asparaginase humana, quando produzida em laboratório, inicialmente não apresentava atividade suficiente para degradar a asparagina, aminoácido essencial para a proliferação das células cancerígenas. “Nosso trabalho foi identificar e modificar regiões específicas da estrutura da enzima para que ela adquirisse a mesma capacidade terapêutica da versão bacteriana, mas com menor probabilidade de causar rejeição pelo sistema imunológico”, explica Stephanie Morais.
O impacto da pesquisa também se estende para a produção nacional de biofármacos. Hoje, o Brasil importa toda a asparaginase utilizada no Sistema Único de Saúde (SUS). A nova enzima poderia permitir a produção local e reduzir custos. “Com a produção nacional, seríamos menos dependentes das importações e poderíamos ampliar o acesso ao tratamento, beneficiando especialmente o SUS”, afirma Tatiana.
A trajetória de proteção patentária foi acompanhada pelo Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT) da Fiocruz. “Desde os primeiros resultados positivos, já trabalhávamos no pedido de patente para garantir a proteção intelectual da descoberta”, lembra Tatiana. A obtenção das patentes na China e nos Estados Unidos reforça o caráter inovador do projeto e pode acelerar futuras parcerias para desenvolvimento industrial.
Atualmente, a equipe trabalha na otimização da produção da enzima para testes pré-clínicos, conduzidos em colaboração com o Instituto Nacional de Câncer (INCA). Além disso, Biomanguinhos, unidade da Fiocruz especializada em produção de biofármacos, também participa do processo. “Nosso objetivo é realizar testes pré-clínicos para validar a eficácia da enzima e avançar para a fase de testes clínicos”, detalha Stephanie.
O diretor da Fiocruz Paraná, Stenio Fragoso, destaca a importância estratégica da pesquisa para a instituição e para a saúde pública. “Essa conquista demonstra a capacidade do Instituto Carlos Chagas de produzir inovações científicas com impacto direto na população. Ter uma solução inovadora para o tratamento da leucemia infantil mostra o potencial da ciência brasileira em gerar respostas concretas para desafios em saúde”, afirma.
A expectativa da equipe é que os avanços obtidos permitam acelerar os testes e, futuramente, levar a nova asparaginase ao mercado. “Nossa enzima pode ser uma alternativa terapêutica de primeira linha para adultos, que têm resposta imune mais forte à asparaginase bacteriana. O impacto pode ser ainda maior do que prevíamos”, conclui Tatiana.
A coordenadora da Assessoria de Novos Negócios e Inovação (ANNI) do ICC/Fiocruz Paraná, Fabrícia Pimenta, destaca o trabalho contínuo da instituição na valorização e proteção das pesquisas desenvolvidas. “A concessão dessas patentes reforça a relevância da inovação científica nacional e amplia as possibilidades de futuras parcerias para a viabilização do novo medicamento”, destaca.