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01/08/2016

Fiocruz promove debate sobre uso medicinal da maconha

Alexandre Matos (Farmanguinhos/Fiocruz)


A maconha é uma planta impregnada de simbologia. Se do ponto de vista sociocultural ela habita o limbo, sob a luz da Ciência, a Cannabis sativa representa um potencial remédio para inúmeras patologias. No entanto, é preciso romper com o preconceito para avançar cientificamente para oferecer essa alternativa terapêutica aos pacientes. Essa foi uma visão unânime entre os participantes do seminário Maconha medicinal no Brasil: possíveis cenários, realizado na última quinta-feira (28/7), no Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz), no Rio de Janeiro.

Organizado pela associação Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o evento reuniu pesquisadores de diferentes instituições, nacionais e internacionais, profissionais de vários campos de atuação, bem como acadêmicos, políticos e ativistas - maioria mães de crianças que sofrem convulsões e epilepsia. O objetivo do encontro foi discutir o acesso e o uso da cannabis para fins medicinais.

 “Neste caso específico, existe uma resistência que chega a atingir o plano do absurdo”, frisou o vice-presidente de Ambiente e Atenção à Saúde da Fiocruz, Valcler Rangel. “Discussões como essa deveriam ser mais fáceis, mas são complexas devido à resistência que as pessoas têm, principalmente do ponto de vista cultural, que até se explica, mas que não se justifica”, criticou. O motivo das críticas se deve ao fato de que, segundo os especialistas presentes ao seminário, já foram identificadas cerca de 100 substâncias na cannabis.

De acordo com os pesquisadores, há mais de dois mil anos a maconha já era usada para fins medicinais. Com o avanço científico do século 20, a descoberta revolucionária se deu em 1965, quando o pesquisador israelense Rafael Mechoulam isolou o elemento Delta 9 Tetrahidrocanabinol. O THC, como é conhecida a molécula mais psicoativa da maconha, atua como relaxante muscular e anti-inflamatório. Dentre os benefícios, produz efeito anticonvulsivo, anti-inflamatório, antidepressivo e anti-hipertensivo. Além de ser usado também como analgésico e no tratamento para aumentar o apetite.

Diante dessa abundância de elementos candidatos a medicamentos, Rangel explicou que vários países já regulamentaram a utilização medicinal da cannabis, popularmente chamada de maconha. No entanto, o estigma ainda presente no Brasil gera entraves ao avanço científico. “Consequentemente, são colocadas dificuldades para a assistência farmacêutica, limitando o uso de todos os recursos terapêuticos que poderíamos oferecer para atenção à saúde no país”.

Valcler Rangel ressaltou ainda a parceria com a Apepi e destacou a missão da Fiocruz no atendimento à rede pública de saúde. “Nossa competência é juntar a pesquisa e o ensino a fim de produzir alternativas para a saúde da população. Neste caso aqui, especificamente, a alternativa seria a produção de um fitocannabinóide, isto é, produzir um fitomedicamento à base de cannabis”, assinalou.

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) concede uma permissão para importação do THC. Isso ocorre mediante prescrição médica. “O problema é que muitos médicos não querem prescrever devido ao preconceito”, observou a organizadora do evento, Margarete Brito. A advogada é mãe da pequena Sofia que sofre de crise epilética em decorrência de uma doença rara denominada CDKL5. Ela explicou que outro problema que os pacientes enfrentam é o preço da substância no mercado internacional. “Nosso objetivo aqui é discutir uma possível política nacional sobre uso da maconha para fins medicinais no Brasil. Estamos felizes com a possibilidade de parcerias com instituições públicas na área de pesquisa”, ressaltou.

Nesse cenário desafiador, o diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz), Hayne Felipe da Silva, colocou a unidade à disposição. “Está no âmbito da missão de Farmanguinhos a luta pela ampliação do acesso da população brasileira a medicamentos. Então, coloco à disposição todas as nossas potencialidades, nossas disponibilidades para chegar a um fitomedicamento e poder disponibilizá-lo para a nossa população”.

Hayne Felipe ressaltou a capacidade do grupo envolvido na discussão, e destacou a competência técnica da Fiocruz, com atuação qualificada em diferentes frentes, como pesquisa clínica, qualidade e produção pública. “Temos discutido ao longo desse tempo uma maneira de chegarmos o mais rapidamente possível a esse fitomedicamento e poder disponibilizá-lo dentro do nosso Sistema Único de Saúde. Espero que a gente saia daqui com mais encaminhamentos que nos facilitem a chegar o mais rapidamente a este objetivo”, incentivou.

Direitos humanos

Enquanto a produção nacional não ocorre, o jeito é importar. Devido ao alto custo com a importação das substâncias da cannabis, famílias de alguns pacientes têm cultivado a planta em casa, o que gera outro problema, este de ordem legal. “Hoje em dia a gente enxerga o auto-cultivo e o cultivo por associações como mais uma via de acesso. Então, o convite ao Marcelo Freixo foi também para pedir o apoio dele para que esse tema seja discutido dentro da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj)”, enfatizou Margarete Brito, que também é coordenadora da Apepi.

Deputado estadual pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), e pré-candidato a prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Freixo é também presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj. “Eu não só estou absolutamente convencido de que vamos ganhar esta causa, como também poderemos trabalhar juntos e coloco a Comissão de Direito Humanos à disposição”, disse. Freixo lembrou ainda os avanços importantes no debate sobre o uso recreativo da maconha. “Portanto, não é possível divergência no que diz respeito ao uso medicinal. Esta é uma questão humanitária central, e a Comissão de Direitos Humanos pode e deve atuar nisto”, argumentou.

Ele esclareceu que a natureza dessa legislação é de cunho federal. “Mas a Comissão pode ser um elo. A gente pode fazer audiências públicas, convidando entidades federais para um debate, por exemplo. A Assembleia Legislativa é um espaço importante no Rio de Janeiro e pode sim ser de defesa desta questão de dignidade da vida humana. O acesso à saúde é o ponto central no debate de direitos humanos. Vocês aqui têm o compromisso da Comissão de Direitos Humanos em levar esse debate para dentro da Assembleia Legislativa ainda no segundo semestre deste ano. Outra questão importante é o limite entre a medicina e o direito. Temos que chamar os profissionais de Direito e da Medicina para um debate, que pode acontecer dentro da Alerj, para que avancemos numa legislação. Inclusive convidando bancadas federais de diversos partidos”, sugeriu Freixo.

Parceria público-público

Durante o seminário, Marcelo Freixo sugeriu a elaboração de parcerias para a saúde entre instituições públicas, o que ele chamou de parceria público-público. “O poder público, seja municipal ou estadual, poderia propor uma parceria com universidades e com a própria Fiocruz para desenvolver projetos sobre a cannabis medicinal. Isso seria um grande avanço. Imagine o incentivo à pesquisa, a proposição de legislação, a garantia de recursos”, argumentou.

Ele disse ainda que tal projeto é factível. “Então fica aqui o compromisso no que diz respeito à construção de uma política de elaboração de parceria público-público. Outro compromisso é a possibilidade de colocar a Alerj no eixo do debate com diversos entes: seja no âmbito estadual ou federal, no campo da Medicinal e do Direito, mas, fundamentalmente, apoiando as famílias dos pacientes, que são protagonistas dessa história”, assinalou.

Uso medicinal não é ilegal

Uma das mesas do seminário reuniu advogados com o propósito foi discutir a legislação. Professora de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana Boiteux apresentou o trecho de uma reportagem, veiculada na extinta revista Olhar Virtual, da UFRJ. No texto, uma professora de Medicina, também da UFRJ, ressalta os benefícios da cannabis, sobretudo no tratamento de pacientes oncológicos, ainda assim a médica acredita que a substância não deve ser liberada para uso medicinal, tendo em vista que se trata de uma droga ilegal. “Eu gostaria de dizer para ela, e para todos os meus colegas médicos, que não é ilegal o uso medicinal. Uso medicinal está sujeito a controles de vigilância sanitária, a controles que existem para todos os medicamentos”, explicou.

Luciana disse que o debate sobre o uso da maconha para fins medicinais não se trata de ativismo. “Nós estamos atuando na efetivação do que está escrito na lei. Existe uma lei antidrogas aprovada em 2006 que segue uma linha de tratados e convenções internacionais proibicionistas. Mas o próprio tratado nunca proibiu o uso medicinal de nenhuma substância que tenha sido colocada na ilegalidade”, argumentou. “Nós temos que discutir é o ‘como’, pois o direito já existe”, concluiu.

Ela trouxe o exemplo da morfina, medicamento criado a partir do ópio, usado contra dores severas, muito utilizado em pacientes com câncer. “O problema é que, por questões políticas, a cannabis foi colocada equivocadamente numa lista de substâncias perigosas, e que contém muito mais restrições burocráticas. Em resumo, estamos lidando aqui é com a burocracia”, observou. “Este seminário da cannabis medicinal está interligado com todo o debate da legalização. Mas eu acredito que o que deveria mover a todos nós é o benefício dessas crianças, as que conhecemos hoje, as que virão no futuro e outras que estão do nosso lado, mas que nem sabemos que necessitam dessas substâncias. Elas poderão ser beneficiadas e é nossa responsabilidade batalhar por isso”.

Troca de experiências

Foi montada também uma mesa de caráter científico, instituída por pesquisadores do Brasil e do Chile. Os especialistas abordaram também o uso do cannabidiol e de outras substâncias encontradas na maconha. Segundo eles, o cannabidiol tem efeitos analgésicos, ansiolítico, antiemético, anticonvulsivo, anti-psicótico e sedativo.

Além da barreira legal, outras dificuldades apontadas pelos especialistas são o custo do produto importado (autorizado pela Anvisa), dificuldades de acesso, falta de padronização, falta de fornecedores confiáveis e falta de fornecedores de THC. Os pesquisadores apresentaram como possíveis soluções novos fornecedores, novos produtores institucionais, bem como cultivo coletivo e individual. A farmacologista chilena Jaqueline Ruz apresentou da instituição dela, Knop Laboratorios, no desenvolvimento de fitofármacos à base de cannabis. O oibjetivo, segundo ela, é buscar um fitofármaco, além de fornecer matéria-prima de forma segura e padronizada.

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