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27/04/2015

Fiocruz sedia programa multidisciplinar sobre o uso de drogas

Carolina Landi


De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2014) do Ministério da Justiça, o Brasil é campeão mundial em números absolutos de homicídios por ano: são mais de 56 mil mortes violentas, sendo estimado que 50% dessas estejam relacionadas com a "guerra às drogas". O país é também o terceiro maior encarcerador de pessoas do mundo: cerca de 30% das prisões são igualmente relacionadas às drogas. O consumo dessas substâncias também vem crescendo no país, o que pode ser uma indicação de que a repressão talvez não seja a melhor estratégia para se lidar com o problema.  

Dentro desse contexto, cada vez mais existe a necessidade de iniciativas que lidem com a prevenção, redução de danos (consulte glossário abaixo), tratamento e reinserção social de usuários, e articulação política em torno do tema para possíveis mudanças na legislação sobre drogas ilícitas no Brasil. Para auxiliar o debate sobre essas questões, a vice-presidência de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz criou, em 2014, o Programa Álcool, Crack e outras Drogas (PACD). O principal objetivo da iniciativa é apoiar a pesquisa, eventos científicos e a articulação entre pesquisadores e demais atores no debate sobre o assunto. 

O programa, que conta com psicólogos, médicos, epidemiologistas, enfermeiros e cientistas sociais, entre outros, une sob um mesmo “guarda-chuva” as mais diversas iniciativas relacionadas ao tema dentro da Fundação. “O programa possibilitou integrar diferentes profissionais e propostas, para abordar a questão na sua complexidade e múltiplas interfaces com a sociedade”, diz Francisco Inácio Bastos, coordenador do Programa e pesquisador do Instituto de Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). “Temos uma vigorosa interface com o campo das doenças infecciosas, enquanto tradição da instituição, mas pouco em outras áreas vitais, como a questão dos acidentes de trânsito e dos problemas associados a intoxicações agudas por diferentes substâncias.”

As bases conceituais do programa são orientadas pelo desejo de transpor o paradigma de repressão, entendendo o abuso de substâncias como resultado de questões biopsicossociais e defendendo práticas de cuidado e respeito ao direito de usuários de substâncias psicoativas, seja o uso prejudicial ou não. “Buscamos uma política integral para os usuários de álcool e drogas. Os profissionais da Fiocruz que compõem o grupo entendem e corroboram com essa concepção. A função da Fiocruz é gerar mais dados para oferecer subsídios para que essa política possa ser transformada de uma forma positiva”, informa o assessor do Programa pela VPAAPS, Francisco Netto. Para o assessor, o principal desafio do Programa tem sido enfrentar o estigma e preconceito em torno do assunto. “A criminalização frequentemente gera mais danos que a droga em si”. 

“Questão de saúde, e não de justiça”

Para a primeira fase (identificação das pesquisas existentes) foi constituído um grupo de trabalho com mais de 15 membros. Foram realizadas cinco oficinas (a próxima será em maio), que culminaram na elaboração de um plano de ação e metas: apoiar eventos relacionados à pesquisa científica no tema; promover publicações geradas tanto por pesquisas quanto pela prática do Consultório de Rua  (consulte glossário abaixo) e outros centros de atendimento ao público; e participar do debate público sobre políticas de álcool, crack e outras drogas, estão entre os objetivos traçados. 

“A política de drogas gera mais danos que as próprias substâncias. Tratar o usuário como um cidadão de direitos é uma forma de cuidado e respeito. As políticas atuais de redução de danos têm tido uma resposta muito positiva. Nossos estudos locais e resultados qualitativos já indicam a eficácia no sentido de melhorar a saúde e condições de vida das pessoas”, relata Francisco Netto, que reconhece nos CAPS ADs e Consultórios na Rua “um caminho muito importante”. “É importante que existam ações complementares, como as unidades de acolhimento, para a pessoa passar um tempo maior, ou de habitação, em alguns casos. O projeto De Braços Abertos, de São Paulo, é uma referência importante. Além disso, há a necessidade de gerar uma fonte de renda (trabalho) e acesso à rede de saúde/cuidado (entrada nos serviços de urgência e emergência dos hospitais) para essas pessoas.” 

O coordenador Francisco Início cita a mudança na legislação de drogas de Portugal como um exemplo exitoso em curso, que reduziu de forma dramática as taxas de infecção entre usuários injetáveis, por HIV e hepatites virais (B e C). “Além disso, houve um aumento expressivo do encaminhamento para tratamento de pessoas com quadros mais graves. O sistema carcerário português (diminuto e bastante efetivo, se comparado ao brasileiro) está menos superlotado, ainda que sobrecarregado. Milhares de vidas foram salvas”. 

Entre as próximas ações do Programa, estão previstas uma publicação para divulgar as diversas atividades em andamento relacionadas ao PACD, um seminário para discutir as mudanças na legislação da maconha (em julho desse ano), e um o livro sobre experiências com consultórios na rua. 

Glossário: entenda alguns dos termos utilizados no debate

Descriminalização: a não-aplicação de penas criminais para uso ou posse de drogas ou parafernália para uso pessoal, às vezes, também usado para referir-se a outras infrações menores relacionadas a drogas. A posse permanece sendo uma infração sujeita a sanções civis ou administrativas;

Legalização: processo que põe fim à proibição e torna legal a produção, a distribuição e o uso de drogas para fins não medicinais ou científicos; 

Regulação: conjunto de regras legalmente aplicáveis que governam o mercado de um produto, por exemplo, uma droga – sua produção, disponibilidade e marketing, bem como os próprios artigos (preço, potência, embalagem). Diferentes mecanismos de controle podem ser usados, inclusive proporcionais aos riscos das drogas e necessidades locais; 

Consultório de/na Rua: equipes multidisciplinares de saúde, móveis, que assistem a populações em situação de rua e uso problemático de substâncias com a abordagem de redução de danos. Trabalham de maneira integrada a redes maiores, que incluem Unidades Básicas de Saúde, Centros de Atendimento Psicossocial, Serviços de Urgência, Emergência e outro; 

Redução de danos: políticas, programas e práticas que visam mitigar consequências econômicas, sociais e de saúde negativas causadas pelo uso de drogas psicoativas legais ou ilegais, sem ter a abstinência como pré-requisito.

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