Os documentários da Fioflix não precisam ser compostos de incontáveis informações didáticas para nos dizer alguma coisa. Em A Cidade nós somos apresentados primordialmente a um sentimento, sendo o contexto histórico ao qual ele é consequente apenas um plano de fundo. O filme conta a história, como o título já nos diz, de uma cidade. Percebemos logo de princípio que ela é diferente de outras, mesmo que aparentemente tão comum. Como se fosse apenas uma mancha de tinta marrom-tijolo em meio a um extenso verde do mato, vemos o primeiro vislumbre de uma pequena cidadezinha. O som dos passarinhos e o balançar das árvores pelo vento preenchem a única menção de vida que podemos perceber. Ao nos aproximarmos, percebemos melhor as construções e as ruas de um desgastado asfalto. Estas parecem completamente vazias, como se nem mesmo existissem moradores. Essa ausência é quebrada pela passagem de um fusca azul ciano que se destaca em meio aos tons terrosos de uma arquitetura simples. Acompanhamos a senhora que o dirige por essas ruas que seriam completamente vazias, a não ser por um ou dois pedestres todos, também, idosos.
Depois de curtos planos das ruas vazias, apresentam-se curtos planos das fachadas simples das casas e, posteriormente, dos seus interiores. Todos os residentes parecem ser de uma idade avançada, assim como parecem viver uma rotina simples. Ao fundo, o som chiado de um rádio conecta todos esses planos, como se o que os ligasse fosse a necessidade de ouvir algo para além dos sons calmos da natureza que os cerca. A câmera se instala nos ambientes como se nem mesmo estivesse ali. Como se fosse uma mosquinha pousada na parede, apenas observando aqueles moradores idosos existirem como existem todos os dias. O cair da água do chuveiro, o varrer da vassoura, maquiagens sendo passadas, meias calçadas, roupas no varal, cabelos penteados, caminhadas na calçada. Em uma mesa de café da tarde, ouvimos um pequeno diálogo sobre uma moradora que, aparentemente, não está mais na cidade. É casualmente que a notícia de que ela escolheu não retornar é feita: “Ela disse que se ela fosse para lá ela ia ficar, não tem condições de cozinhar”. A partir daí começamos a ouvir as vozes dos moradores, que nos contextualizam o que seria esta cidade e o porquê dela ser tão envelhecida. “Estamos aqui abandonados”, diz uma senhora em meio a risadas.
Diferente da cotidianidade das casas dessa cidadezinha, agora estamos em uma praia. Quatro dos moradores estão sentados na areia com a naturalidade de quem já fez isso centenas de vezes. Eles conversam e relembram as suas vidas enquanto jovens. Falam sobre ex romances em meio a risadas, como se fossem um grupo de adolescentes que cismam em se provocar. “E a Marlene, tu deu uma penteada na Marlene?” Todos soltam sinceras risadas e a Marlene, por sua vez, se avermelha como faria uma menina. “Sendo bem franco, com toda a minha idade, a mulher para mim tem que ter uma estatura, vamos dizer, como a Marlene.” Novamente, todos os quatro se explodem em risadas mas, não apenas isso, conversam sobre as dificuldades que já vivenciaram também. “Vai fazer 46 anos que nasceu um casal, dia 13 de abril do ano que vem. Daí eu tive as filhas que foram tiradas assim né, não podia ficar junto”. Os relatos de suas dores são contados casualmente, assim como as respostas que recebem: “Nós queremos que tu canta Nair, chega da tua história”. Quando Nair começa a cantar, ao fundo surgem imagens em preto e branco daquela mesma praia porém cheia de jovens, como aqueles que eles parecem se sentir ao conversar sobre suas lembranças.
É a partir do relembrar dessas memórias, seja pela contação de histórias, o cantar das músicas ou a exibição de fotografias, que passamos a ver imagens do que era a cidade do passado, quando ela era repleta de vida. As ruas que já vimos anteriormente em tons terroros, agora estão em preto e branco. Vemos a mesma cidade porém com muito mais movimento por meio do caminhar das pessoas. Reconhecemos aquela mesma arquitetura e as mesmas ruas, mas com outro tipo de vida. A partir daí, as imagens coloridas da atualidade misturam-se aos registros em preto e branco do passado de quando a cidade era jovem e populosa. “800 pessoas tinha, tava tudo lotado, três em cada quarto”. Depois de vermos algumas imagens do passado, um corte nos leva a um colorido e atual corredor de hospital que está vazio a não ser por um senhor que caminha por ele, vindo em nossa direção. Conforme ele desce o corredor, ele para em cada porta e olha para o interior dos quartos. Ao fazer isso, cenas antigas e, novamente, em preto e branco, são exibidas, como se ao olhar para os quartos daquele hospital o senhor relembrasse o que um dia aqueles quartos já guardaram: um hospital cheio de médicos e pacientes. Talvez seja o único paralelo em que a presença de pessoas no passado contraposta ao presente vazio não pressupõe mais vida. Ao parar na última porta do corredor, não vemos mais o passado, mas sim o quarto para o qual o senhor está de fato olhando, com um único paciente que descansa em sua cadeira de rodas.
Embora o filme seja bastante simples e ordinário, ele é muito bem decupado, sendo composto de uma montagem engenhosa e enquadramentos interessantes. Desenvolve-se um ritmo de história, como se nem mesmo estivéssemos assistindo a um documentário mas sim a um filme ficcional. Os planos conversam entre si, seguindo uma linha lógica e narrativa. Um exemplo dessa engenhosidade é um plano em que uma senhora toma banho. O som da água permanece mesmo quando outro plano está em cena. Essa permanência se justifica pela lavagem do chão. A água parece escorrer da própria câmera, tomando conta do salão que está sendo limpo. Não existe uma ligação clara entre o banho e a lavagem do chão a não ser a presença da água, que já é suficiente para parecer um corte natural entre um plano e outro. Todo o filme segue essa fluidez, sendo bastante fácil navegar por ele.
Passamos todo o filme, embora deslumbrados com uma bela fotografia e ritmo fluido, nos perguntando onde a narrativa quer nos levar. Nenhuma informação nos é fornecida a não ser detalhes da vida daqueles residentes. É aos poucos que começamos a ligar os pequenos indícios que nos são dados: “Eu era bem criança quando eu vim pra cá né, tinha sete anos, e eu achava que eu não ia conseguir ficar aqui dentro, será que eu vou ter que ficar a vida toda aqui?” “Minha família tá aqui mesmo, quando eu fico doente é eles que me cuidam.” “Nosso lugar é aqui não adianta sair para fora.” “Fomos trazidos para cá a força e envelhecemos aqui, o que que os velhos da nossa condição vai fazer lá fora?” Finalmente, textos dispostos acima das imagens da cidade do passado nos contam o real motivo da existência daquela cidade. É aí que nos é revelado que durante décadas, milhares de pessoas foram separadas e isoladas de suas vidas, famílias e amigos para serem levados àquele lugar. “Concebida como uma cidade em miniatura, a Colônia ltapuã isolava os portadores do Mal de Hansen, conhecido como lepra.” Saber o contexto histórico daquela realidade apenas depois de entendermos as dores e felicidades daqueles moradores faz com que o impacto seja imensamente mais profundo. Isso porque os entendemos enquanto pessoas antes de os entendermos enquanto pacientes, diferente da maneira como eles têm sido tratados ao longo de suas vidas.
“Tinha uma estrada de chão com bastante poeira e eu perguntava: mas onde é que vocês vão me levar? E eles diziam: nós já vamos chegar em um lugar bem bonito.” Em conjunto a essa fala, vemos a volta do fusca azul ciano, ainda em uma rua em tons terrosos e vazia. Vemos os mesmos planos da mesma cidade que vimos no começo do filme, porém agora com outros olhos. Uma tela preta nos exibe os dizeres: “Em 2012 restam 35 moradores, todos têm mais de 60 anos.” Então, vemos imagens das pessoas que acompanhamos ao longo do filme, conjuntamente com seus nomes escritos em tela. Os nomes permanecem enquanto a imagem atual é substituída por uma foto antiga de quando eles ainda eram jovens. Conjuntamente com esta foto, acrescenta-se a data desde a qual cada um deles está morando naquela cidade que tornou-se fantasma. A voz de Nair ressurge junto com os créditos que sobem ao fundo. Ela canta a mesma música da praia, junto com os demais. Eles acabam se interrompendo e discutindo como fizeram na praia anteriormente. Os créditos continuam subindo enquanto os ouvimos conversar e contar histórias. Mesmo no fim, prevalece-se a importância da memória e da lembrança. Para assistir A Cidade e outros 400 filmes sobre saúde, ciência e tecnologia, acesse a plataforma Fioflix.