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04/06/2020

Ganhador do Prêmio Dr. Lee Jong-Wook de Saúde Pública 2020, João Aprígio defende mobilização social para doação de leite materno

Organização Mundial da Saúde (OMS)


Pesquisador da Fiocruz, João Aprígio Guerra de Almeida defende a mobilização social para promover o uso de leite materno doado para recém-nascidos que não podem ser amamentados por suas mães. A força motriz por trás da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, coordenada pela Fundação, João Aprígio também é o secretário executivo do Programa Ibero-Americano de Bancos de Leite Humano. Como reconhecimento do seu trabalho, João Aprígio recebeu o Prêmio de Saúde Sasakawa em 2001 e o Prêmio do Memorial Dr. Lee Jong-wook de Saúde Pública em 2020. Graduado em engenharia de alimentos em 1981, João concluiu um mestrado em microbiologia em 1986 pela Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, e um doutorado em saúde infantil e da mulher em 1988 pela Fiocruz, no Rio de Janeiro.

Como reconhecimento do seu trabalho, João Aprígio recebeu o Prêmio de Saúde Sasakawa em 2001 e o Prêmio do Memorial Dr. Lee Jong-wook de Saúde Pública em 2020 (foto: Divulgação)

 

OMS: Como começou o seu interesse pela amamentação?

João Aprígio: Começou com um interesse pelo leite. Conheci o diretor de uma grande empresa brasileira de leite e laticínios em um churrasco, e comecei a falar com ele sobre a minha paixão por química nuclear, e ele tentou me convencer a passar a fazer pesquisa sobre o leite. Ele dizia que o leite é um produto maravilhoso, com o qual você pode fazer qualquer coisa - de bolas de sinuca a cola para asas de aviões. Fiquei curioso e visitei a empresa dele, onde conversei sobre pesquisa sobre leite com um professor. Acabei estudando engenharia de alimentos na Universidade Federal de Viçosa e fiquei muito interessado na análise da composição química do leite em diferentes mamíferos.

OMS: E como você passou disso ao foco em seres humanos?

João Aprígio: Um obstetra entrou em contato comigo enquanto eu ainda estava na faculdade. Ele estava trabalhando em uma área rural e estava tentando estabelecer bancos de leite materno para ajudar mães que amamentavam. Mas ele estava tendo dificuldade em conservar o leite, e perguntou se eu podia ajudar. Então eu visitei dois bancos de leite materno e fiquei chocado com a falta de controle de qualidade. Cheguei a escrever uma carta ao Ministério da Saúde expressando minha preocupação, e decidi mudar o foco da minha pesquisa para a coleta e a preservação seguras do leite humano.

OMS: Você chegou a receber alguma resposta do Ministério da Saúde?

João Aprígio: Sim. Recebi até um convite para me encontrar com especialistas em amamentação no Rio de Janeiro. Lembro que fiquei sentado em silêncio até que eles começaram a falar de microbiologia e a sugerir soluções que não me pareciam corretas. Compartilhei com eles os achados da pesquisa que eu vinha lendo e eles acabaram por me convidar a me juntar ao programa nacional de promoção da amamentação, como consultor.

OMS: Por que a amamentação é tão importante?

João Aprígio: O consumo de leite humano é uma das intervenções mais baratas que existem para garantir a nutrição infantil. Já foi demonstrado que a amamentação não só promove o desenvolvimento cognitivo, mas também melhora a resposta imune. Uma das melhores maneiras de garantir que recém-nascidos recebam o leite materno do qual precisam é apoiar a lactação da mãe, mas quando isso não basta, ou quando a mãe não pode produzir leite, os bancos de leite humano podem ter um papel vital em termos de suporte.

OMS: Quando você começou a trabalhar com bancos de leite humano pela primeira vez?

João Aprígio: Quando cheguei à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio, em 1985, como pesquisador visitante. Fiz uma análise da qualidade do banco de leite da fundação e me pediram ajuda para melhorá-la. Acabei fazendo um mestrado em técnicas de conservação de leite humano em Viçosa ao mesmo tempo em que eu redesenhava o processo de conservação do leite, estabelecia sistemas de controle de qualidade e treinava funcionários na Fiocruz. Defendi minha tese em 1986 e, para demonstrar minha gratidão pela equipe da Fiocruz, fiz a eles uma proposta de transformar o banco de leite humano deles em um centro de pesquisa sobre leite humano. Para minha surpresa, me ligaram e disseram que a minha proposta tinha sido aceita, e me convidaram de volta para implementá-la. Acabei me mudando para o Rio com a minha família e comecei a trabalhar montando o centro de pesquisa no Instituto Fernandes Figueira.

OMS: Que desafios você enfrentou ao montar o centro de pesquisas?

João Aprígio: Um dos grandes desafios para mim foi abraçar os aspectos psicossociais da amamentação. Na época, o meu foco era leite, leite, leite. Para mim, parecia que não fazia sentido ter um laboratório moderníssimo para garantir a qualidade e a segurança do produto se eu não tinha o produto. Então, obviamente, eu precisava de alguma forma de estimular as mulheres que podiam doar. E por mais ridículo que possa parecer, a dimensão feminina era totalmente nova para mim. Tive sorte de conhecer a pesquisadora Maria Cecília de Souza Minayo, que me orientou para fontes bibliográficas importantes vindas da sociologia da saúde, da antropologia comparativa e da psicologia social. Essas fontes mudaram totalmente o meu modo de pensar.

OMS: De que maneira?

João Aprígio: Elas me fizeram entender que o assunto leite materno não pode ser reduzido à simples logística da produção e da distribuição do leite. Passei a ver que a mulher não é simplesmente o meio de produção do leite: ela é uma mulher que por acaso também é mãe, que pode ou não ter escolhido ser mãe, pode ou não ter escolhido amamentar, e que provavelmente tem muitas outras responsabilidades para além da amamentação. Passei a admirar o modo no qual a biologia da produção de leite é influenciada por fatores ambientais.

OMS: E como isso mudou seu modo de pensar?

João Aprígio: Para mim, ficou mais fácil entender por que as mulheres respondem com maior ou menor sucesso ao papel ao qual são apresentadas. Também vi o quão marginalizadas são as mães dentro do discurso paternalista que havia se desenvolvido em torno da amamentação. Isto pode ser atribuído à primeira tese médica brasileira sobre o assunto, que foi apresentada em 1838 e tinha como título A utilidade do aleitamento materno e os inconvenientes que resultarão do desprezo deste dever. Este “abandono do dever” é um assunto que aparece em pesquisas posteriores, correlacionando o desmame à participação na força de trabalho.

OMS: Você pode falar um pouco mais sobre isso?

João Aprígio: No Brasil, a um certo ponto estabeleceu-se um consenso de que a “epidemia” de desmame nos anos 70 e 90 estava relacionada ao aumento da urbanização da população e à entrada das mulheres no mercado de trabalho, juntamente com o marketing agressivo das fórmulas industriais para bebês. No entanto, quando eu e meus colegas conduzimos uma pesquisa qualitativa entre mulheres vivendo em diferentes regiões do Brasil, para descobrir suas motivações para o desmame, as principais respostas que recebemos fomos “pouca produção de leite” e “meu leite secou”. Não encontramos nenhuma correlação entre o desmame e a participação em empregos formais. Para mim, isto sugere que não deveríamos nos apressar tanto em correlacionar emprego e desmame.

OMS: Como a sua pesquisa mudou a sua conduta com relação ao apoio às mães que amamentam?

João Aprígio: Como eu disse, quando eu comecei, minha preocupação principal era o leite, como obter quantidades suficientes de leite para dar apoio às mães que amamentavam. Depois de fazer essa pesquisa, entendi que esse foco no leite enquanto commodity e em mulheres enquanto produtoras corria o risco de ajudar a perpetuar as tendências nocivas reveladas pelas minhas leituras. Meus colegas e eu acreditamos muito fortemente que não deveríamos permitir que nossos bancos de leite se transformem em leiterias humanas. Para nós, a protagonista na história do aleitamento é a mulher, e não o seu leite, e nem mesmo o seu bebê. A nossa preocupação principal se tornou como dar apoio às mulheres para que elas possam amamentar seus próprios bebês.

OMS: Como essa mudança de conduta se expremiu na maneira em que os seus centros são organizados?

João Aprígio: A principal função das pessoas que trabalham nos centros de apoio é criar uma ligação com as mulheres, ouvi-las sem julgamento, para que elas possam nos contar suas próprias histórias e assim construir confiança. Quando essa confiança já foi criada, conselhos médicos sobre todos os problemas que podem ocorrer durante a amamentação e sobre como amamentar de acordo com as diretrizes da OMS podem ser fornecidos de maneira mais efetiva. Em especial, é só depois de conseguir uma ligação com as mulheres que começamos a pensar em coletar, testar, pasteurizar e distribuir o leite. A ideia é criar uma grande comunidade de aleitamento, que por sua vez gera as doações de leite que podem ser usadas para ajudar mães quando for necessário.

OMS: Coletar, testar, pasteurizar e distribuir o leite são funções importantes?

João Aprígio: Absolutamente sim, e nós temos muito orgulho da nossa capacidade de executar essas funções de maneira econômica. Mas eu gosto de enfatizar a importância de oferecer suporte às mães, porque este aspecto é facilmente negligenciado. Isso inclui ir além das paredes dos nossos bancos, para dar suporte às mulheres na comunidade. A mãe que liga para o nosso número gratuito às três da manhã, a mãe cujo bebê está chorando e que pode estar absolutamente estressada por causa dos tiroteios e do tráfico de drogas acontecendo logo fora da casa dela, podem encontrar uma pessoa qualificada para ouvi-la. Ter essa possibilidade muda a experiência da mãe. Ela não está mais sozinha com o bebê. Ela tem apoio.

OMS: Hoje a rede brasileira de bancos de leite humano inclui 224 bancos de leite humano e 215 centros de coleta. Qual foi o impacto dessa iniciativa sobre o aleitamento materno no Brasil?

João Aprígio: Foi atribuído a ela um aumento substancial do aleitamento materno e uma queda na mortalidade infantil. Por exemplo, a prevalência do aleitamento exclusivo em crianças de menos de seis meses de idade passou de 4,7% em 1986 a 37,1% em 2006. No entanto, desde então este patamar não mudou, e precisa ser feito algo mais para manter as tendências positivas. Também é importante reconhecer que esta é uma iniciativa entre muitas, incluindo o Programa Nacional de Aleitamento Materno em 1981, que introduziu a regulação da comercialização de alimentos para bebês, a implementação da Estratégia de Aleitamento Materno e Alimentação Complementar e, mais recentemente, os esforços para dar apoio às mulheres que trabalham e amamentam.

OMS: Você já apoiou iniciativas similares de leite materno em outros países. O que o levou a isso?

João Aprígio: O Prêmio Sasakawa de Saúde de 2001 aumentou a visibilidade do nosso trabalho e trouxe muitos pedidos de cooperação técnica internacional. Em 2005, decidimos organizar essa cooperação e começamos a trabalhar com outros países da América Latina, que naquela época não tinham bancos de leite humano. Os poucos que existiam tinham sido fechados nos anos 80, inclusive na América Central, por causa da preocupação com a transmissão do HIV através do leite materno. Hoje trabalhamos não só com países da América Central e da América do Sul, mas também com Portugal e Espanha, e com países lusófonos da África.

OMS: Como a conduta se adapta a diferentes contextos?

João Aprígio: Ela foi implementada em vários cenários diferentes sem problema algum, em grande parte porque já tínhamos adaptado o modelo para que funcionasse nas diferentes condições encontradas no Brasil. Também é importante notar que nós não reproduzimos nem transferimos o modelo de banco de leite. Em vez disso, transmitimos os princípios que norteiam o nosso modelo, e no coração desses princípios está a importância vital de dar apoio à mãe.

Leia a reportagem original no site da OMS.

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