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13/12/2019

Genômica e epidemiologia

Reinaldo Guimarães*


Os dois jornais que leio diariamente noticiam o lançamento de uma pesquisa cujo objetivo é mapear o genoma dos brasileiros (veja aqui e aqui). Pesquisa importante, bancada pelo Departamento de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde (Decit/MS) e conduzida por Lygia da Veiga Pereira e seu grupo na USP. Os jornais remetem a relevância da pesquisa à necessidade de conhecermos os nossos padrões genéticos. O grupo de Lygia talvez seja o mais indicado no Brasil para liderar essa pesquisa. Além sua competência, a pesquisadora tem antigas relações de pesquisa com o MS, estabelecidas quando este apoiou iniciativas importantes no campo da terapia celular nos anos 2000.

As matérias jornalísticas destacam também a participação de uma empresa que fará o processo automatizado de sequenciar os genomas, e aqui vale um comentário. Na década de 1990 foi realizado o primeiro sequenciamento do genoma humano, que demorou uma década e custou US$ 3 bilhões. Em 1993, na cerimônia de lançamento do projeto, um geneticista importante, Walter Gilbert, disse o seguinte, em tradução livre: “Uma sequência de 3 bilhões de bases podem ser postas em um simples CD e alguém será capaz de tirar o CD do bolso e dizer: aqui está um ser humano; sou eu!”. O fato é que a sequência do genoma está longe de ‘ser’ um ser humano, hoje um sequenciamento custa menos de mil dólares e é um processo automatizado realizado em empresas que fazem exames laboratoriais.

O valor científico da pesquisa não está, portanto, no sequenciamento per se, mas em outras duas coisas. Em primeiro lugar, na identificação das variantes genéticas existentes nos genomas dos brasileiros que, em decorrência da rica composição étnica de nossa população, podem ser distintas das de outras populações. E, em segundo lugar e muito mais importante, o estudo será capaz de associar essas variantes ao que os epidemiologistas chamam de "desfechos", que designam sinais e sintomas de doenças decorrentes de uma grande quantidade de determinantes, inclusive, mas longe de serem apenas genéticos. E este segundo objetivo não depende exclusivamente da pesquisa liderada por Lygia e seu grupo.

A associação de uma variante genética a um desfecho depende do conhecimento da história laboratorial e clínica das pessoas que terão seus genomas sequenciados e esse conhecimento é bastante mais complexo do que o processo automatizado do sequenciamento e mesmo do que a identificação das variantes genéticas. Ele depende de estudos epidemiológicos de longo prazo (estudos de coorte), nos quais uma população tem seu estado de saúde acompanhado em condições de controle rigoroso. Portanto, a maior virtude científica da pesquisa anunciada é associar uma ou mais variantes genéticas a um ou mais desfechos laboratoriais ou clínicos. E a expressão tecnológica dessa associação é a possibilidade dessas associações transformarem-se em alvos para o desenvolvimento de medicamentos que possam atuar sobre essas variantes e, consequentemente, sobre as doenças a que estão associadas.

A experiência brasileira com estudos de coorte é, hoje em dia, bastante rica. Há estudos importantes em curso em Pelotas (os de maior duração), em Minas, em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia. O estudo que está sendo anunciado ancora-se em uma coorte chamada Estudo Longitudinal de Saúde dos Adultos (Elsa), que teve início mais ou menos na mesma ocasião em que Lygia esteve participando de pesquisas com células-tronco. Foi inaugurado em 2008 e vem sendo desde então apoiado pelo mesmo Decit/MS. Ele é um estudo multicêntrico com braços no Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia. A população acompanhada (cerca de 15 mil pessoas) é composta por adultos servidores públicos de universidades e institutos de pesquisa nesses seis estados.

Apesar do permanente apoio do MS ao Elsa, há alguns anos o projeto vem passando por algumas dificuldades de financiamento, em virtude dos cortes orçamentários federais. É de se esperar que esse novo projeto liderado por Lygia Pereira, dada a visibilidade que a genômica tem hoje dia, sirva para reforçar o apoio ao Elsa, sem o qual a genômica não alcançaria seus objetivos mais importantes.

*Reinaldo Guimarães é vice-presidente da Abrasco e pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da UFRJ.

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