Início do conteúdo

24/05/2010

Jovens indígenas podem estar sujeitos ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas

Renata Moehlecke


Em artigo publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, pesquisadores da Fiocruz, com base em uma pesquisa etnográfica, analisaram as interações socioculturais entre jovens indígenas amazonenses e suas relações com o consumo de bebidas alcoólicas. O estudo apontou que esses jovens bebem cada vez mais cedo, de modo mais frequente e violento, e que há dificuldades coletivas para lidar com o comportamento, já que este não se enquadra nas tradições vividas pela tribo e nem no contexto escolar formal de ensino, também presente na localidade.


 Festividade indíngena em Iauraretê (Foto: Geraldo Andrello)

Festividade indíngena em Iauraretê (Foto: Geraldo Andrello)


Segundo os pesquisadores, os moradores da cidade indígena Iauaretê (localizada na região do Alto Rio Negro, noroeste amazônico) compartilham o uso do caxiri, bebida alcoólica fermentada à base de mandioca e frutas, em festas, mas, principalmente, em ritos de iniciação masculina. “Nas festas, o jovem iniciado passa a usar pinturas faciais e os adornos específicos, diferenciando-se dos não-iniciados (crianças). A capacidade de ingerir grandes quantidades de caxiri e dançar por horas é um indicativo da virilidade juvenil, sendo objeto de orgulho para os seus parentes”, comentam os estudiosos. “Somente após o ritual de iniciação, que propiciava a plena identificação como membro do grupo, o jovem estaria apto à busca de parceiras sexuais legítimas, em condição de se tornarem esposas. E apenas após o nascimento de seus filhos, o iniciado seria considerado adulto”.


Com a introdução da escola formal no contexto vivido, o consumo de bebidas alcoólicas ganha outro significado, já que o prolongamento dos anos escolares acaba fazendo com que o jovem não cumpra o ritual de iniciação tradicional, causando uma indefinição quanto a sua entrada na juventude. “O consumo de caxiri é algo esperado de um jovem iniciado de doze ou treze anos. No entanto, ao se tornarem alunos, os jovens só tem permissão de beber com idade mais avançada”, afirmam os pesquisadores. “Por um lado, sendo estudantes, são equiparados a crianças, que não deveriam beber. Por outro lado, demanda-se dos jovens que ingiram grandes quantidades de caxiri, demonstrando tanto sua virilidade, como sua confiança e respeito pelos anfitriões”.


Além disso, a convivência com jovens de diferentes vilas na escola causa ainda mais confusão com relação à permissão de consumo da bebida. “Facilmente um jovem terá informações sobre situações de consumo de bebidas alcoólicas que ocorrem nas diferentes vilas de Iauaretê. Ocorrendo uma festa na vila de um amigo da escola, um jovem pode ser convidado a beber caxiri. Uma vila distinta da sua é um lugar de outras pessoas”, explicam os estudiosos. “Valendo-se das regras atribuídas à juventude e de cortesia entre as vilas, eles reivindicam que lhes seja servido caxiri, seja nos contextos de consumo coletivo, nos salões comunitários ou na casa de amigos. Ademais, o dinheiro obtido pelos jovens torna-os compradores de bebida, inserindo-os nas relações de comércio que geram renda para outras famílias, num contexto de crescente monetarização”.


Outro aspecto relevante para o problema está ligado à participação feminina nesse contexto. “Tradicionalmente, a mulher é responsável pela produção de alimentos e bebidas, o caxiri inclusive. Provê-los em grande quantidade é algo esperado e demandado do pólo feminino dos núcleos familiares. Suprimir a produção de caxiri implicaria em solapar o ideal do zelo feminino com a roça e manufatura de produtos derivados da mandioca”, elucidam os pesquisadores. “Nas últimas décadas, as mulheres de Iauaretê passaram, ainda, a auferir lucro com a venda do caxiri. Iniciativas para reduzir sua venda geraram descontentamento entre as mulheres, porque essa fonte de renda representa um aporte financeiro importante para a manutenção das unidades domésticas”.


Em síntese, os pesquisadores consideram que a questão é difícil de se resolvida consensualmente. “Os dados mostram que as festas cumprem uma função muito mais ampla que o congraçamento entre os presentes. A redução destas demandaria a alteração de estruturas culturais que demarcam a identidade dos grupos e as relações de prestígio das lideranças”, destacam. “A supressão desses eventos obrigaria as lideranças a buscar novos caminhos para apaziguar diferenças e circunscrever hostilidades. Trata-se de uma difícil tarefa, sobretudo se consideramos a fragilidade dos laços que unem os moradores das vilas, que se valem principalmente da condição de coresidentes para manter a coesão social necessária à vida comunal”.


Publicado em 20/5/2010.

Voltar ao topo Voltar