10/05/2007
No final do século 20, a biologia molecular e a genômica revolucionaram a ciência ao desvendar características genéticas de microorganismos e propor uma nova escala para classificação das espécies. Autor do livro Genes: fatos e fantasias, publicado pela Editora Fiocruz, o parasitologista Eloi Garcia, pesquisador do Laboratório de Bioquímica, Fisiologia e Imunologia de Insetos do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) da Fiocruz, comenta nesta entrevista o novo paradigma científico descortinado pelas tecnologias moleculares e aponta os possíveis rumos da ciência frente aos impactos da metagenômica.
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Eloi Garcia (Foto: Arquivo CCS) |
A perspectiva genômica tem importante significado histórico porque redireciona o olhar científico ao proporcionar uma nova escala, mais precisa, para o estudo de microorganismos. Qual o significado dessa mudança de paradigma para o desenvolvimento da ciência?
Garcia: A metagenômica, que poderia ser considerada “megagenômica”, abre uma nova perspectiva para a ciência porque permite a identificação de uma quantidade enorme de microorganismos presentes em seu ambiente natural. Durante os últimos 50 anos, até o advento da biologia molecular e de técnicas da genética e da bioinformática, o estudo de microorganismos era feito exclusivamente pela fisiologia, morfologia e bioquímica de organismos cultiváveis em meios de cultura, em ambiente de laboratório. Esse sempre foi o maior desafio no estudo de bactérias: quando uma fonte diversa de microorganismos é coletada da natureza e colocada em meio de cultura, dificilmente toda a sua biodiversidade é preservada, sobrevivem somente as espécies capazes de crescer em cultura. Essa condição configurava um entrave para a pesquisa científica, que era então limitada ao estudo das espécies capazes de crescer em um meio artificial de cultura gerado no ambiente laboratorial. O que acontece, porém, é que existe uma infinidade de organismos que não sobrevive fora das condições naturais, até então desconhecidos pela ciência.
Isso significa que os cientistas passaram a contar com técnicas que permitem enxergar uma nova dimensão do mundo?
Garcia: Na realidade, nós conhecemos muito pouco – ou quase nada – sobre microorganismos. A partir deste novo horizonte aberto pela metagenômica estamos começando a aprender. Isso é muito importante porque, ao menos na minha opinião, o mundo é um mundo de microorganismos; plantas, animais e o ser humano são exceções à regra. E o número de espécies de microorganismos que está sendo revelado agora é incrível. Um exemplo disso é a caracterização da microbiota presente no tubo digestivo do homem por meio da metagenômica: se antes era registrado um índice de 40 a 60 espécies de microorganismos, hoje quase mil organismos inéditos já foram identificados. A metagenômica é o primeiro passo para o estudo de um mundo até então quase completamente desconhecido pela ciência e esse conhecimento só tende a avançar.
Como a metagenômica pode ultrapassar os antigos limites da ciência e revelar com maior precisão a quantidade de microorganismos presentes em um ambiente natural?
Garcia: A metagenômica não isola um microorganismo para realizar sua identificação, mas avalia todo o ambiente onde ele se encontra e extrai o DNA de todos os organismos presentes ali. Com isso, sequencia concomitantemente o material genético de todos os microorganismos presentes em determinado ambiente. Através de técnicas da bioinformática, os resultados são comparados às seqüências já conhecidas, organizadas em um riquíssimo banco de dados. Assim, os microorganismos até então desconhecidos podem enfim ser identificados.
Na sua opinião, esta nova tecnologia poderá mudar a prática da ciência?
Garcia: A metagenômica influenciará toda a prática da ciência. Ela abre os olhos dos cientistas para a infinidade de bactérias presentes em um determinado meio. Em nosso tubo digestivo, por exemplo, existe uma quantidade abissal de microorganismos e essa tecnologia propiciará um melhor entendimento da interação entre as bactérias do tubo digestivo, o homem e os outros microorganismos presentes ali.
Em que medida a metagenômica poderá beneficiar o conhecimento sobre as bactérias?
Garcia: Nós conhecemos muito pouco sobre as bactérias e a lente de aumento da metagenômica permitirá um estudo aprofundado desses microorganismos. Com base nessa tecnologia, projetos de pesquisa prometem, por exemplo, identificar a biodiversidade de microorganismos presentes na folha de uma árvore, no ar de Nova York, nas águas de determinado rio ou em insetos vetores de doenças com importante impacto epidemiológico.
O senhor compararia a nova perspectiva proporcionada pela metagenômica a alguma outra descoberta da ciência?
Garcia: Com esse impacto não. A ciência está passando por um momento único e as pessoas estão extremamente preocupadas com as conseqüências dessa mudança de paradigma. As novas tecnologias da biologia molecular, da metagenômica e da bioinformática demonstram que o que os antigos parâmetros de classificação das espécies demonstravam ser uma bactéria pode ser, na realidade, um amplo conjunto de microorganismos antes não enxergado.
Quais os desdobramentos do aumento exponencial do número de microorganismos conhecidos para o conceito tradicional de espécie?
Garcia: Essa constatação é o ponto de partida para a discussão – e, quem sabe, para a reformulação – do conceito de espécie. O que é uma espécie, hoje? É isso que está em discussão. Como determinar uma espécie: por sua morfologia, pelo genoma, por seus produtos em meio de cultura? É uma grande discussão. Na minha opinião, o parâmetro deve ser o DNA.
Por quê?
Garcia: O DNA é o diferencial mais sensível. Mas algumas questões ainda devem ser discutidas. Existe uma variação entre o DNA de humanos, por exemplo, chamada de polimorfismo, mas ela não justificaria afirmar que duas pessoas são de espécies diferentes. A questão é estabelecer o percentual de alteração genética que permitiria a classificação de uma nova espécie – para macro ou microorganismos.