01/12/2022
Os contínuos impactos – diretos e indiretos – da pandemia de Covid-19 sobre a atenção à saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS) ainda precisarão ser monitorados por um longo período por especialistas de diversas áreas. Já se sabe, porém, que há uma significativa demanda represada de procedimentos e atendimentos hospitalares no país desde o início da pandemia, em 2020, em comparação com a média de procedimentos do período imediatamente anterior (2014-2019). É o que aponta a Nota Técnica Demanda potencial de atendimentos hospitalares em razão da pandemia de Covid-19, documento elaborado por pesquisadores do MonitoraCovid-19 e do Projeto de Avaliação do Desempenho do Sistema de Saúde (Proadess), iniciativas vinculadas ao Instituto de Comunicação e Informação em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Icict/Fiocruz).
Segundo a nota, os estudos destacaram as dinâmicas dos 30 grupos de procedimentos listados no Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do SUS de 2014 até maio de 2022, que são os dados consolidados até o momento do estudo. Em seguida, foram comparados os volumes específicos dos anos marcados pela Covid-19 (2020, 2021 e 2022) em relação à média do período 2014-2019. Na comparação, a pesquisa mostra que o Brasil apresenta 1.102.146 procedimentos em déficit e com potencial de demanda. Ou seja, cerca de um milhão de procedimentos hospitalares foram represados no Sistema Único de Saúde após o início da pandemia. “Algumas regiões do país apresentam déficit considerável de atendimentos clínicos e procedimentos cirúrgicos que podem evoluir com complicações. Além disso, a demanda reprimida nos exames e diagnósticos representam problemas para agravamento de condições clínicas não atendidas a tempo”, afirma a nota.
As informações levantadas abarcam o conjunto do país, com dados específicos de cada região. No Brasil, fica evidente o impacto da pandemia em diversos grupos de procedimentos e tratamentos hospitalares analisados. “Procedimentos com finalidades diagnósticas e cirúrgicas apresentaram expressiva diminuição desde 2020. Em algumas causas, observa-se recuperação dos níveis históricos desatendimento, entretanto a oscilação observada no período pandêmico apresenta relação temporal direta com ondas de aumento de casos subsequentes de Covid-19 no país, possivelmente relacionada ao impacto da atenção à doença nos serviços de saúde”, destaca o documento.
Os pesquisadores ressaltam que o período inicial da pandemia – meses de março, abril e maio de 2020 – apresentou um número muito elevado de procedimentos hospitalares não realizados. Já os primeiros cinco meses analisados em 2022 demonstram uma recuperação do sistema; entretanto, o volume de procedimentos não realizados ainda traz um passivo enorme de atendimentos. São números que representam uma potencial demanda, além de enormes desafios, para o sistema de saúde nos próximos anos.
Sudeste tem déficit de quase 400 mil procedimentos hospitalares desde 2020
Nos dados por regiões, ficam mais evidentes as demandas represadas de tratamentos e procedimentos cirúrgicos afetados pela pandemia. No Norte do país, cirurgias do aparelho digestivo, do sistema osteomuscular, do aparelho geniturinário, tratamentos em nefrologia, além de consultas e atendimentos estão entre os maiores déficits de 2020 para cá. No total, de 2020 a 2022, foram 23.268 procedimentos não realizados na comparação com a média anterior à pandemia.
Tabela: demanda potencial de atendimentos por grupos de procedimentos hospitalares (fonte: Nota Técnica 26, MonitoraCovid-19)
Na região Nordeste, alguns dos procedimentos não realizados de mais destaque são as cirurgias do aparelho digestivo e do aparelho geniturinário, as chamadas pequenas cirurgias, as cirurgias de pele, do tecido subcutâneo e mucosa, as cirurgias de mama, as cirurgias das vias aéreas superiores, da face, da cabeça e do pescoço, as cirurgias do aparelho circulatório. Considerando todos os grupos de procedimentos, o estudo mostra que, desde o início da pandemia, a região apresenta um volume de 367.560 a menos do que esperado em relação à média de 2014-2019.
O Centro-Oeste apresentou déficit considerável em cirurgias do aparelho digestivo, órgãos anexos e parede abdominal em 2020 e 2021, com recuperação discreta em2022. Os tratamentos clínicos que apresentaram déficit em outras regiões tiveram expressiva recuperação na região em 2021 e 2022. Entretanto, os procedimentos cirúrgicos (por exemplo, do aparelho digestivo, das vias aéreas superiores e do aparelho circulatório) não foram recuperados. No total, o número total de procedimentos represados foi de 14.643 em relação à média do período 2014-2019.
O Sudeste apresentou o maior déficit em relação à média antes da pandemia: 398.729 procedimentos a menos durante a emergência da Covid-19. A região apresentou grande déficit de tratamentos clínicos em 2020, situação que não se repetiu em 2021 e 2022. Entretanto, os procedimentos cirúrgicos na região não se recuperaram, com destaque para cirurgias do aparelho digestivo, do aparelho geniturinário, do aparelho circulatório, das vias aéreas superiores, pequenas cirurgias e cirurgias de pele, tecido subcutâneo e mucosa.
A Região Sul apresentou grande déficit de tratamentos clínicos em 2020 e, apesar de melhora nos anos seguintes, segue com dados preocupantes. Os procedimentos cirúrgicos na região não se recuperaram, com destaque para cirurgias do aparelho digestivo, do aparelho geniturinário, do aparelho circulatório e das vias aéreas superiores. A comparação do período pandêmico com a média de 2014-2019 mostra que a região registrou 262.873 procedimentos a menos.
Os dados observados mostram que o quadro de desassistência em saúde durante a pandemia se expandiu de diversas formas, não se limitando aos agravos ligados diretamente à doença. “A queda do número de atendimentos de internação pode ter influenciado tanto no excesso de mortes observado, quando pode trazer outros problemas a longo prazo”, alerta a Nota Técnica, que cita quedas nos atendimentos por glaucoma e catarata como exemplos de cirurgias eletivas que podem, a médio e longo prazos, causar impactos maiores na população.
Os pesquisadores envolvidos no estudo ressaltam ainda a importância de investimentos na atenção e na promoção da saúde. A nota enfatiza que o represamento dos atendimentos no SUS deve ter influenciado diretamente nos óbitos indiretos observados pela Covid e, muito provavelmente deve trazer grandes dificuldades à nova rotina de atendimento do sistema, que necessitará de investimentos para ao menos retomar os níveis pré-pandêmicos. "Os desafios do SUS nos próximos anos são enormes, tanto pelo passivo adquirido durante a pandemia, quanto pelos cuidados pós-Covid que eventualmente o sistema terá que tratar", finaliza Diego Xavier, pesquisador do Icict/Fiocruz e um dos responsáveis pelo levantamento.