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31/10/2018

Na Inglaterra, representantes da Fiocruz discutem zika

Julia Dias (Agência Fiocruz de Notícias)


Como parte da série de seminários sobre História da Saúde Global, um evento na Universidade de York, na Inglaterra, reuniu acadêmicos, ativistas e formuladores de políticas para discutir a epidemia brasileira de zika, seu contexto e seus desdobramentos. O seminário foi organizado em parceria com o escritório europeu da OMS e contou com a presença da presidente da Fundação, Nísia Trindade de Lima, e dos pesquisadores Gustavo Matta (Fiocruz) e João Nunes (University of York).

Os especialistas analisaram o papel do governo, do SUS, da Fiocruz e do movimento social de mulheres afetadas durante e depois da epidemia. “É importante dizer que a crise de zika não acabou. Não acabou para nós e não acabou para as famílias afetadas”, destacou Matta que, juntamente com a presidente da Fiocruz, representou a Rede Zika de Ciências Sociais. Nísia ressaltou a importância de uma abordagem interdisciplinar para o tema, pois trata-se de um problema científico, social e de saúde pública. Segundo Nísia, a Fiocruz desempenhou papel crucial durante a epidemia, mas o SUS também foi fundamental para detecção da correlação entre a microcefalia e a zika, apor meio da atenção pré-natal a gestantes.

No entanto, falhas da administração pública e do SUS também foram reveladas pela epidemia. Entre elas, o subfinanciamento do sistema e as falhas em lidar com determinantes sociais, como saneamento e condições de moradia. A política de prevenção de dengue, por exemplo, esteve sempre focada no controle do vetor e tem falhado há décadas em eliminar a doença. “Com certeza, a epidemia de zika e suas consequências é a ponta do iceberg. Precisamos enfrentar as questões mais amplas que são centrais para o sistema de saúde brasileiro, desde seu financiamento até a criação de seus modelos administrativo”, afirmou Nísia.

A liderança de algumas mulheres no enfrentamento da epidemia foi outro ponto de destaque de sua fala. Pesquisadoras como Selina Turco e Patrícia Brasil são reconhecidas e premiadas por sua atuação no tema. Além disso, as mulheres afetadas, que muitas vezes são referidas apenas como mães, também desempenham papel fundamental ao formar associações e demandar seus direitos. Duas representantes deste movimento estiveram presentes no evento na Inglaterra.

O pesquisador da Universidade de York, João Nunes, apontou aspectos mais amplos da política internacional que ajudam a explicar como a crise de zika funciona tanto como um espelho da política brasileira nos últimos anos, quanto encontra paralelo com outras crises globais, como a epidemia de ebola. A resposta do governo brasileiro à crise foi, na definição do pesquisador da Universidade de York, “míope e negligente”, ao não levar em conta a escala da crise e ao olhar para zika como “um problema de mosquitos”, ignorando outros fatores de influência, como infraestrutura sanitárias, direitos sexuais e reprodutivos e problemas de urbanização.

Para ele, o que vimos foi “uma combinação tóxica de despolitização, do entrincheiramento político, da economia neoliberal, do patriarcalismo, do colonialismo e da cultura do espetáculo”. Estes seriam os seis pontos que nos levaram à situação que enfrentamos, segundo Nunes. “Isso nos diz muito sobre a resposta ao zika. Também diz muito sobre a sociedade brasileira e sobre como a agenda de Saúde Global se define”. Essas condições históricas, econômicas, culturais e políticas explicariam, para ele, porque determinados problemas de saúde e suas respostas aparecem como “naturais ou inevitáveis”.

“Colocar a saúde pública como uma questão técnica, objetiva e apolítica para problemas autoevidentes é uma forma de despolitizar o debate”, opina Nunes. No entanto, as decisões sobre saúde pública são intrinsicamente políticas. “Elas dizem respeito ao tipo de sociedade queremos ser e a própria tentativa de despolitiza-las é um movimento político”.

Em relação ao entrincheiramento político, Nunes destaca o crescimento da extrema direita no mundo e, com isso, uma tendência à responsabilização dos indivíduos. No caso da Zika, isso levou a uma culpabilização das vítimas e a recomendações que não levavam em conta o contexto dos afetados, como o acesso a contraceptivos e a saneamento adequado.

Em relação à economia neoliberal, ele destaca principalmente a desregulação, a privatização e o ajuste estrutural que leva a medidas de austeridade. Todas essas ações sufocam o sistema público de saúde, dificultando a resposta a emergências como a da zika.

Na crise brasileira, o patriarcado também teve um papel relevante. A regulação dos corpos das mulheres ficou expressa nas falas de algumas autoridades que limitaram suas recomendações a pedir que gestantes cobrissem seus corpos para evitar picadas ou a pedir que mulheres deixassem de engravidar. Além disso, muitas mulheres afetadas passaram a ser vistas apenas como mães, tendo seu papel de cuidado reforçado o que, somado à falta de uma assistência adequada, reproduziu a dupla, ou até tripla, jornada a que estas mulheres são submetidas.

O colonialismo, para Nunes, se refletiu principalmente em dois fatores no caso da epidemia brasileira de zika que lembram muito a resposta ao ebola e a tradição da chamada medicina tropical. O primeiro deles foi a necessidade de contenção de uma doença que atingiu primeiramente uma população mais pobre em uma região marginalizada do Brasil, o Nordeste. “Era como se nada pudesse ser feito, a não ser conter para que a doença não chegasse aos principais centros do país e do mundo”, disse o professor, para quem essa abordagem reforça o estigma de que tragédias simplesmente ocorrem em certas regiões do mundo.

Além disso, a invasão de pesquisadores estrangeiros, que muitas vezes conduziram suas pesquisas e recolheram seus dados e amostras de modo predatório, sem prestar a devida atenção às vítimas foi outro ponto de destaque. Sobre este ponto, Gustavo Matta reafirma a necessidade de repensar as questões éticas de pesquisa e exemplifica: “algumas mães receberam formulários de consentimento para assinar em inglês ou mandarim, dá para acreditar?”.

Por último, João Nunes destacou o problema de como a mídia geralmente aborda as questões de saúde pública. “Problema de saúde global hoje facilmente se tornam em espetáculos para a mídia, foi assim com o ebola e a zika. Isto leva a um ciclo midiático curto e míope, que encara as doenças como produtos prontos para serem consumidos”, afirmou. Essa relação faz com que, mais uma vez, as vítimas se sintam usadas e que soluções de longo prazo sejam deixadas de lado, assim que a doença sai do radar da mídia, ainda que a emergência persista.

Encerrando as apresentações, o coordenador da Rede Zika, Gustavo Matta, lembrou que a crise da doença aconteceu em meio a uma crise política e econômica no Brasil: “tivemos dois presidentes e cinco ministros da saúde durante a epidemia”.

O pesquisador apontou os principais desafios encontrados no momento em que a crise começou, muitos dos quais persistem, como a incerteza, as questões éticas da pesquisa e os rumores sobre o tema e a demora das autoridades de governo para dar uma resposta efetiva. Por ser algo totalmente novo, até para cientistas, a epidemia de zika relacionada aos casos de microcefalia jogou familiares e pesquisadores em incertezas para as quais ninguém tinha respostas. Isso aumentou a vulnerabilidade das mães, que não sabiam o que podiam acontecer com seus filhos e ficavam suscetíveis a rumores. Entre eles, de que a síndrome de microcefalia seria decorrente de vacinas ou do uso de agrotóxicos.

Muitas das incertezas ainda não foram respondidas até hoje. A insuficiência da atenção é outro problema que ainda afeta os bebês nascidos com microcefalia. Apenas um terço deles está sob estimulação e apenas 60% tem acesso a serviços de saúde especializados, como neurologistas, fisioterapeutas e outros.

O pesquisador da Fiocruz aproveitou a oportunidade para convidar outros cientistas a se juntarem a rede global de pesquisa em zika, colaborando para formar um conhecimento mundial sobre o tema. “Devemos unir perspectivas de outros países afetados e esse esforço pode construir uma iniciativa de história crítica de saúde global sobre a epidemia de zika”, afirmou.

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