Na Inglaterra, representantes da Fiocruz discutem zika

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Julia Dias (Agência Fiocruz de Notícias)
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Como parte da série de seminários sobre História da Saúde Global, um evento na Universidade de York, na Inglaterra, reuniu acadêmicos, ativistas e formuladores de políticas para discutir a epidemia brasileira de zika, seu contexto e seus desdobramentos. O seminário foi organizado em parceria com o escritório europeu da OMS e contou com a presença da presidente da Fundação, Nísia Trindade de Lima, e dos pesquisadores Gustavo Matta (Fiocruz) e João Nunes (University of York).

Os especialistas analisaram o papel do governo, do SUS, da Fiocruz e do movimento social de mulheres afetadas durante e depois da epidemia. “É importante dizer que a crise de zika não acabou. Não acabou para nós e não acabou para as famílias afetadas”, destacou Matta que, juntamente com a presidente da Fiocruz, representou a Rede Zika de Ciências Sociais. Nísia ressaltou a importância de uma abordagem interdisciplinar para o tema, pois trata-se de um problema científico, social e de saúde pública. Segundo Nísia, a Fiocruz desempenhou papel crucial durante a epidemia, mas o SUS também foi fundamental para detecção da correlação entre a microcefalia e a zika, apor meio da atenção pré-natal a gestantes.

No entanto, falhas da administração pública e do SUS também foram reveladas pela epidemia. Entre elas, o subfinanciamento do sistema e as falhas em lidar com determinantes sociais, como saneamento e condições de moradia. A política de prevenção de dengue, por exemplo, esteve sempre focada no controle do vetor e tem falhado há décadas em eliminar a doença. “Com certeza, a epidemia de zika e suas consequências é a ponta do iceberg. Precisamos enfrentar as questões mais amplas que são centrais para o sistema de saúde brasileiro, desde seu financiamento até a criação de seus modelos administrativo”, afirmou Nísia.

A liderança de algumas mulheres no enfrentamento da epidemia foi outro ponto de destaque de sua fala. Pesquisadoras como Selina Turco e Patrícia Brasil são reconhecidas e premiadas por sua atuação no tema. Além disso, as mulheres afetadas, que muitas vezes são referidas apenas como mães, também desempenham papel fundamental ao formar associações e demandar seus direitos. Duas representantes deste movimento estiveram presentes no evento na Inglaterra.

O pesquisador da Universidade de York, João Nunes, apontou aspectos mais amplos da política internacional que ajudam a explicar como a crise de zika funciona tanto como um espelho da política brasileira nos últimos anos, quanto encontra paralelo com outras crises globais, como a epidemia de ebola. A resposta do governo brasileiro à crise foi, na definição do pesquisador da Universidade de York, “míope e negligente”, ao não levar em conta a escala da crise e ao olhar para zika como “um problema de mosquitos”, ignorando outros fatores de influência, como infraestrutura sanitárias, direitos sexuais e reprodutivos e problemas de urbanização.

Para ele, o que vimos foi “uma combinação tóxica de despolitização, do entrincheiramento político, da economia neoliberal, do patriarcalismo, do colonialismo e da cultura do espetáculo”. Estes seriam os seis pontos que nos levaram à situação que enfrentamos, segundo Nunes. “Isso nos diz muito sobre a resposta ao zika. Também diz muito sobre a sociedade brasileira e sobre como a agenda de Saúde Global se define”. Essas condições históricas, econômicas, culturais e políticas explicariam, para ele, porque determinados problemas de saúde e suas respostas aparecem como “naturais ou inevitáveis”.

“Colocar a saúde pública como uma questão técnica, objetiva e apolítica para problemas autoevidentes é uma forma de despolitizar o debate”, opina Nunes. No entanto, as decisões sobre saúde pública são intrinsicamente políticas. “Elas dizem respeito ao tipo de sociedade queremos ser e a própria tentativa de despolitiza-las é um movimento político”.

Em relação ao entrincheiramento político, Nunes destaca o crescimento da extrema direita no mundo e, com isso, uma tendência à responsabilização dos indivíduos. No caso da Zika, isso levou a uma culpabilização das vítimas e a recomendações que não levavam em conta o contexto dos afetados, como o acesso a contraceptivos e a saneamento adequado.

Em relação à economia neoliberal, ele destaca principalmente a desregulação, a privatização e o ajuste estrutural que leva a medidas de austeridade. Todas essas ações sufocam o sistema público de saúde, dificultando a resposta a emergências como a da zika.

Na crise brasileira, o patriarcado também teve um papel relevante. A regulação dos corpos das mulheres ficou expressa nas falas de algumas autoridades que limitaram suas recomendações a pedir que gestantes cobrissem seus corpos para evitar picadas ou a pedir que mulheres deixassem de engravidar. Além disso, muitas mulheres afetadas passaram a ser vistas apenas como mães, tendo seu papel de cuidado reforçado o que, somado à falta de uma assistência adequada, reproduziu a dupla, ou até tripla, jornada a que estas mulheres são submetidas.

O colonialismo, para Nunes, se refletiu principalmente em dois fatores no caso da epidemia brasileira de zika que lembram muito a resposta ao ebola e a tradição da chamada medicina tropical. O primeiro deles foi a necessidade de contenção de uma doença que atingiu primeiramente uma população mais pobre em uma região marginalizada do Brasil, o Nordeste. “Era como se nada pudesse ser feito, a não ser conter para que a doença não chegasse aos principais centros do país e do mundo”, disse o professor, para quem essa abordagem reforça o estigma de que tragédias simplesmente ocorrem em certas regiões do mundo.

Além disso, a invasão de pesquisadores estrangeiros, que muitas vezes conduziram suas pesquisas e recolheram seus dados e amostras de modo predatório, sem prestar a devida atenção às vítimas foi outro ponto de destaque. Sobre este ponto, Gustavo Matta reafirma a necessidade de repensar as questões éticas de pesquisa e exemplifica: “algumas mães receberam formulários de consentimento para assinar em inglês ou mandarim, dá para acreditar?”.

Por último, João Nunes destacou o problema de como a mídia geralmente aborda as questões de saúde pública. “Problema de saúde global hoje facilmente se tornam em espetáculos para a mídia, foi assim com o ebola e a zika. Isto leva a um ciclo midiático curto e míope, que encara as doenças como produtos prontos para serem consumidos”, afirmou. Essa relação faz com que, mais uma vez, as vítimas se sintam usadas e que soluções de longo prazo sejam deixadas de lado, assim que a doença sai do radar da mídia, ainda que a emergência persista.

Encerrando as apresentações, o coordenador da Rede Zika, Gustavo Matta, lembrou que a crise da doença aconteceu em meio a uma crise política e econômica no Brasil: “tivemos dois presidentes e cinco ministros da saúde durante a epidemia”.

O pesquisador apontou os principais desafios encontrados no momento em que a crise começou, muitos dos quais persistem, como a incerteza, as questões éticas da pesquisa e os rumores sobre o tema e a demora das autoridades de governo para dar uma resposta efetiva. Por ser algo totalmente novo, até para cientistas, a epidemia de zika relacionada aos casos de microcefalia jogou familiares e pesquisadores em incertezas para as quais ninguém tinha respostas. Isso aumentou a vulnerabilidade das mães, que não sabiam o que podiam acontecer com seus filhos e ficavam suscetíveis a rumores. Entre eles, de que a síndrome de microcefalia seria decorrente de vacinas ou do uso de agrotóxicos.

Muitas das incertezas ainda não foram respondidas até hoje. A insuficiência da atenção é outro problema que ainda afeta os bebês nascidos com microcefalia. Apenas um terço deles está sob estimulação e apenas 60% tem acesso a serviços de saúde especializados, como neurologistas, fisioterapeutas e outros.

O pesquisador da Fiocruz aproveitou a oportunidade para convidar outros cientistas a se juntarem a rede global de pesquisa em zika, colaborando para formar um conhecimento mundial sobre o tema. “Devemos unir perspectivas de outros países afetados e esse esforço pode construir uma iniciativa de história crítica de saúde global sobre a epidemia de zika”, afirmou.