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14/07/2008

Tese recupera história de revista agrícola que fez divulgação científica

Ricardo Valverde


Uma publicação que depois de décadas de grande sucesso editorial se dividiu, ganhando outros nomes, tem parte de sua trajetória recuperada agora, a partir de uma defesa de tese de doutorado. Intitulado A educação do Jeca: ciência, divulgação científica e agropecuária na revista Chácaras e Quintais (1909-1948), o trabalho da bibliotecária Wanda Weltman analisa a atuação de pesquisadores – alguns deles pertencentes ao Instituto Oswaldo Cruz (IOC), embrião da atual Fiocruz – na divulgação científica de áreas como agronomia, ciências biomédicas e biológicas para um público, em sua maioria, formado por agricultores e criadores. Durante anos, esses cientistas difundiram seus conhecimentos no periódico, contribuindo também para o pensamento e a elaboração de políticas públicas para o setor.


 Edição de julho de 1932 mostra o

Edição de julho de 1932 mostra o 'campo idealizado'


Wanda, que conhecia Chácaras e Quintais desde que fez seu mestrado, em que estudou a produção científica do IOC entre 1909 e 1917, optou por desenvolver uma tese sobre a revista ao se dar conta do expressivo número de artigos de autoria de pesquisadores de Manguinhos e de outras instituições nas páginas da publicação. Cientistas como Arthur Neiva, Henrique Aragão, Ângelo Moreira da Costa Lima, Vital Brasil, Renato Kehl e outros respondiam a cartas de chacareiros e fazendeiros de diversas partes do país e publicavam artigos sobre veterinária, entomologia agrícola, controle de pragas, ofidismo e mesmo a respeito de saúde pública (doenças como lepra e malária volta e meia ganhavam espaço nas páginas de Chácaras e Quintais), embora este não fosse um tema central no periódico. Fundamentalmente, ela queria entender o motivo de esses pesquisadores, em geral médicos, escreverem para uma revista sobre agricultura e pecuária. “A divulgação científica em periódicos agrícolas tem sido pouco estudada”, observa Wanda.


De acordo com a bibliotecária, alguns cientistas que publicavam nessas revistas pertenciam a instituições científicas das áreas de saúde pública e ciências biomédicas, que a princípio não teriam vínculo com a pesquisa agrícola. “A inter-relação se estabeleceu na medida em que pesquisas dessas instituições adotavam o paradigma da medicina pastoriana, que estabelecia, muitas vezes, relação entre doenças humanas e doenças animais. As pesquisas nessa área resultaram no desenvolvimento e especialização da entomologia, que identificava nos insetos a transmissão e a causa de doenças humanas, de doenças animais e de pragas na lavoura. Assim, nessas instituições desenvolveram-se pesquisas em áreas que interessavam tanto a agricultores quanto a criadores”, comenta Wanda.


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 Chácaras e Quintais de março de 1932 


“Muitos deles começaram suas carreiras científicas praticamente na mesma época em que passaram a colaborar com a revista, o que ajudou a fortalecer suas trajetórias profissionais e a legitimar o papel que desempenhavam”, diz Wanda, acrescentando que pesquisadores do Instituto Pasteur de São Paulo, do Instituto Biológico de São Paulo, do Instituto Butantan e do Instituto Agronômico de Campinas eram igualmente assíduos em Chácaras e Quintais. Eram cientistas como o microbiologista José Reis, que escrevia artigos sobre avicultura e se tornou um dos mais conceituados divulgadores da ciência no Brasil, e o zoólogo Rodolfo von Ihering, que escreveu uma cartilha escolar, na tentativa de que as crianças levassem o conhecimento aos pais. Para esses homens, uma das maneiras de intervir na realidade era divulgar seus trabalhos em publicações que chegassem ao grande público. Segundo Reis, que fez um curso de especialização em ciências no IOC, a tarefa era importante para a ciência, para o agricultor e para o cientista, que deveriam caminhar juntos. “A história da publicação ilumina dimensões da história da ciência, vista como indissociável da história da divulgação científica”, diz Wanda.


Embora Chácaras e Quintais tenha permanecido com este nome até 1971 – quando foi dividida e deu origem às revistas Avicultura Industrial e Suinocultura Industrial, que são publicadas até hoje – Wanda preferiu levar sua pesquisa até 1948, ano em que foi fundada a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e o papel dos cientistas se mostra consolidado. Outros periódicos agrícolas contemporâneos de Chácaras e Quintais que contaram com cientistas entre seus articulistas foram A Lavoura, O Criador Paulista, O Fazendeiro, a Revista de Veterinária e Zootecnia e o Boletim do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio.


 Caricatura do Jeca feita por José Reis em 1932 

Caricatura do Jeca feita por José Reis em 1932 


Chácaras e Quintais foi criada pelo conde italiano Amadeu Amadei Barbiellini, que chegou ao Brasil com mulher e filha em 1907 – e aqui ele viu nascer outros dez filhos. Naquele mesmo ano Barbiellini fundou a revista Entomologista Brasileiro, que durou apenas dois anos e foi sucedida pela publicação estudada por Wanda. O objetivo do conde, que morava em uma chácara em Vila Ema, na capital paulista, e também tinha um aviário e uma imobiliária, era reunir no periódico artigos sobre agricutura e pecuária escritos por especialistas. Autodidata, o conde também coletava insetos e fazia parte de sociedades de entomologia – alguns insetos têm o nome do nobre em suas denominações científicas. Ainda em vida, sua coleção entomológica foi doada à Escola Nacional de Agronomia (atual Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).


Considerada um sucesso para a época, Chácaras e Quintais tinha periodicidade mensal e circulava com cerca de 130 páginas, recheadas de anúncios de chocadeiras, ferramentas, máquinas, medicamentos animais e também humanos. As capas mostravam um campo idealizado, tipicamente americano ou europeu, e retratavam a “vocação agrícola” brasileira. Além dos artigos de especialistas e das respostas a problemas comuns da agropecuária, a revista noticiava episódios como a inauguração de escolas agrícolas, contava a história da agricultura ao longo dos séculos e também abria espaço – ainda que pequeno – para a ficção, na forma de contos e poesias. Em sua fase áurea, nos anos 40, chegou a ter 200 mil assinantes e recebia cerca de 500 cartas por dia. “Os assinantes ganhavam brindes como almanaques e bolsas. Havia ainda as assinaturas vitalícias, que os pais faziam para que os filhos menores recebessem a revista até o fim de seus dias”, conta Wanda.


 Anúncio de 1941 das Vacinas Manguinhos, que até 1938 eram produzidas pelo IOC 

Anúncio de 1941 das Vacinas Manguinhos, que até 1938 eram produzidas pelo IOC 


A revista, que chegou a circular na Argentina, no Uruguai, em Portugal e nas colônias portuguesas, promovia concursos (de flores, de avicultura, de suinocultura e até de uma novela agrícola) e os vencedores ganhavam prêmios – a alguns em forma de galinhas. Em 1912 o conde lançou um suplemento feminino, chamado Aigrette.


O conde, em geral, não envolvia diretamente a revista em campanhas políticas – embora, de uma certa maneira, ele apoiava certas tendências da política agrícola, como o apoio à policultura e ao cooperativismo – mas levou a publicação, em 1929, a apoiar a tese de que o Ministério da Agricultura deveria ser dirigido por um agrônomo. Isso veio a ocorrer em 1937, quando Fernando Costa – primeiro colocado em um concurso promovido pela revista – se tornou ministro da Agricultura do governo de Getúlio Vargas. O ministério teve, ao longo do período estudado, diversos de seus técnicos e funcionários como colaboradores da revista.


 Propaganda de remédio contra lombrigas e vermes veiculada na revista em 1932 

Propaganda de remédio contra lombrigas e vermes veiculada na revista em 1932 


O interesse de Wanda por publicações vem de longe, já que seu pai, o falecido jornalista Moysés Weltman (1931-85), criou as revistas Radiolândia e Amiga. Ele também foi o autor de Jerônimo, o herói do sertão, uma radionovela que estreou em 1953 e fez um sucesso estrondoso durante 14 anos, na Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Weltman também escreveu novelas para a TV, como O rei dos ciganos e Rosinha do sobrado – esta última uma homenagem à mãe de Wanda.


A coleção completa de Chácaras e Quintais pode ser consultada na Biblioteca de Ciências Biomédicas da Fiocruz. Wanda, que trabalha na Fundação, é bibliotecária-chefe da Casa de Oswaldo Cruz (COC), unidade da Fiocruz que mantém o programa de doutorado em que ela desenvolveu a tese.


 O conde também fazia coluna social: o casamento de sua filha Josephina foi noticiado em 1935

 O conde também fazia coluna social: o casamento de sua filha Josephina foi noticiado em 1935

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