Artigo investiga a neurastenia em São Paulo, a terra dos "ianques do sul", no início do século 20

Publicado em - Atualizado em
Ricardo Valverde
Compartilhar:
X

A mais nova edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, publicada pela Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), recupera um momento da industrialização e da urbanização nacionais, no início do século 20, em que a cidade de São Paulo começava a despontar e a ficar conhecida como “A locomotiva brasileira”. E, consequentemente, surgiam também os males e enfermidades associados ao desenvolvimento, como a neurastenia, tida como “a doença da modernidade” ou “doença americana”. Para alguns, no entanto, aquela era uma doença até bem-vinda, pois coletivamente indicava que São Paulo se encontrava no rumo do progresso e, individualmente, os acometidos por ela podiam se considerar homens laboriosos, já que apresentavam um quadro de exaustão física e psicológica, fraqueza e nervosismo, advindos do trabalho – ou seja, da construção daquela que o New York Times, em 23 de dezembro de 1900, registrou como “a cidade ianque do Brasil”, pelo impulso econômico e pujança típicos das urbes dos Estados Unidos.

O artigo aponta que a primeira citação à neurastenia ocorreu em terras ianques e teve como autor o médico e eletroterapeuta George Miller Beard (Imagem: pintura de André Brouillet de 1887)

 

De acordo com o historiador Sebastian Dorsch, que assina o artigo na revista, os paulistas também se viam como os “ianques do Brasil” ou os “ianques do sul”, por apresentar um ritmo de desenvolvimento “muito americano”. Diante desse quadro, a descrição da neurastenia como enfermidade resultante do progresso vinha a calhar à identificação de São Paulo como usina do desenvolvimento nacional. No texto, Dorsch analisa anúncios publicitários, livros científicos e de ciência popular, artigos em jornais e revistas, todos escritos e veiculados em São Paulo. O historiador lamenta que o acerto do Hospital de Juquery (atualmente Franco da Rocha) tenha sido destruído em 2005, pois guardava dados dos neurastênicos brasileiros, que costumavam viajar para a Europa e os Estados Unidos para fazerem tratamentos com renomados especialistas.

A primeira citação à neurastenia ocorreu em terras ianques e teve como autor o médico e eletroterapeuta George Miller Beard, que em 1869 publicou o artigo Neurasthenia, or nervous exhaustion (Neurastenia, ou exaustão nervosa), no Boston Medical and Surgical Journal. Após o artigo de Beard, analistas comentaram amplamente sobre o sucesso econômico e do estilo de vida americanos, relacionando-os a uma vida estressante e ao vício em trabalho. Os EUA, na época, eram “uma nação neurastênica”.

Em 1909, o médico Ascanio Villas Boas escreveu na Gazeta Clínica que cada era tem suas “formas de nervosidade” específicas. Segundo o doutor, a aceleração do ritmo, a crescente insegurança da época, o industrialismo, a forte concorrência em todos os ramos de atividade, a rapidez das comunicações e da transmissão do pensamento, influem na criação do desequilíbrio mental, tornando a neurastenia uma doença que revelava a “mentalidade do tempo atual”. Em meados da década de 1910, Antônio Austregésilo Rodrigues Lima dizia que, com a vida moderna, “a debilidade nervosa se exalta e os sintomas ansiosos dominam as populações das cidades”. Para ele, o nervosismo estava tão espalhado que “podemos dizer que todo mundo foi, é ou será nervoso”.

Dorsch lista os diversos anúncios publicitários que, na virada do século 19 para o 20, eram facilmente encontrados nos jornais paulistanos e indicavam medicamentos, aparelhagens e métodos de cura para a neurastenia. Entre esses produtos estavam um granulado à base de noz-cola que continha cafeína e era apresentado como um “fortificante geral e reconstituinte de primeira ordem”. Havia ainda o Kola-Werneck, um tônico contra as moléstias ou excessos que produzem o esgotamento nervoso, e o Vinho Reconstituinte Granado, um preparado que é “estimulante, nutritivo e digestivo, de grande eficácia para combater a anemia, o raquitismo, a fraqueza e a neurastenia”. O artigo da História, Ciências, Saúde – Manguinhos relaciona também os Digestivos Picard, o Elixir de Papaina de F. Braga , o licor Kola-Bah e a Panbiline de Annonay.

Entre as aparelhagens, nenhuma fez mais sucesso que o Cinturão Elétrico Herculex, que oferecia saúde e vigor ao combater a neurastenia. As seções de cartas dos jornais paulistanos publicavam cartas em que leitores elogiavam o cinturão e comentavam suas curas. O doutor N. T. Sanden, criador do Herculex, dizia que “os sinais de perturbação nervosa são a irritabilidade, a impaciência, a irresolução e muitas vezes a incompetência... Quando a energia do sistema nervoso não pode mais se recuperar-se, é tempo de lhe dar um auxílio”. De acordo com o médico, o princípio desse método de cura vem “do poder motriz que atua sobre vós, a força física, sexual e mental, chama-se força nervosa: isto é, eletricidade”, já que “os maiores sábios da atualidade dizem que a vala do sistema nervoso-sexual [sic] é uma rede de fios elétricos”.

No entanto, a neurastenia era entendida como uma doença benquista, já que revelava a operosidade intelectual ou física de quem a contraía, o que era algo positivo em uma sociedade que buscava se firmar e se identificar com o trabalho e o progresso. Não era difamatório ser considerado neurastênico. O diagnóstico dos psiquiatras até agradava aos familiares, por ser muito mais bem aceito do que, por exemplo, a histeria ou a demência precoce. E, por meio do tratamento, os pacientes alcançavam forças “hercúleas” e eram abastecidos com novas energias, por meio dos remédios citados acima. Além disso, havia uma clara diferenciação entre as causas da neurastenia e as das moléstias como febre amarela e varíola, entre outras, típicas das “massas bestializadas”.

O autor do artigo diz que São Paulo parecia ser o palco ideal para o surgimento dos neurastênicos. A capital paulista passava a ser concebida como “cidade-estado neurastênica”. E, fortalecido por forças hercúleas, os habitantes do lugar poderiam enfrentar as exigências da vida moderna e assim construir a “raça de gigantes”, conceito caro aos paulistas e que vinha do tempo dos bandeirantes que desbravam o estado, uma “região predeterminada ao sucesso e à prosperidade”, como apontava um estudo sociológico publicado na época.