20/06/2016
Manuela da Silva e Danilo Ribeiro de Oliveira
A Lei Nº 13.123, de 20 de maio de 2015, conhecida como a Lei da Biodiversidade, foi recentemente regulamentada pelo Decreto No 8.772, de 11 de maio de 2016, após um longo período de debate e consulta pública, envolvendo diversos setores da sociedade civil.
Essa nova legislação é criada com fundamento na Constituição Federal de 1988 e na Convenção sobre a Diversidade Biológica, vindo a substituir a MP 2186-16, de 2001, até então, o primeiro ato normativo a trazer regulamentação para acesso ao patrimônio genético (PG) e ao conhecimento tradicional associado (CTA) e à repartição de benefícios no Brasil para fins de pesquisa científica, bioprospecção e desenvolvimento tecnológico, além de ser responsável pela criação do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, o CGEN. Esse marco regulatório ficou conhecido por: 1- trazer uma série de entraves burocráticos, de difícil cumprimento para a academia e setor empresarial, criando barreiras para P&D sobre biodiversidade e conhecimento tradicional; 2- criminalizar e desestimular a pesquisa, a inovação e o desenvolvimento tecnológico envolvendo a biodiversidade brasileira; 3- resultar em pouca repartição de benefícios sobre o acesso ao PG e ao CTA; 4- ter baixa participação dos membros e setores da sociedade civil; 5 – prejudicar colaborações internacionais.
Mesmo com todos esses problemas indicando a premente necessidade de aprimoramentos, a nova lei demorou quase 15 anos para ser publicada, em função das diferentes visões sobre o tema, no que tange aos segmentos da sociedade civil. Em um país democrático, atender aos diferentes pensamentos e interesses tornou-se um processo de difícil conciliação, e porque não dizer, sem um real ponto de consonância, já que a Lei ainda não agrada totalmente os diversos segmentos envolvidos nesta discussão.
Dentre as inovações trazidas, há a criação do Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado (SisGen), do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB) e do Programa Nacional de Repartição de Benefícios. Além disso, foi extinto o conceito de Bioprospecção, enquanto outros foram criados, tais como: material reprodutivo, produto intermediário, produto acabado, elementos principais de agregação de valor ao produto, acordo setorial, variedade tradicional local ou crioula e raça localmente adaptada ou crioula.
A representação do CGEN também sofreu profundas mudanças. De acordo com a Lei, passaria a ser integrado por 21 conselheiros, sendo 12 representantes de órgãos da administração pública federal e 9 representantes da sociedade civil, buscando manter um equilíbrio entre os setores acadêmicos, a indústria e as populações tradicionais.
Mas, as novidades não param por aí. São tantas as mudanças que esse texto centrará naquelas que mais afetam a academia, buscando trazer informações àqueles que têm atividades, direta ou indiretamente, relacionadas com a biodiversidade. Dentro desse contexto, é fundamental compreender a abrangência da Lei que envolve pesquisa, desenvolvimento tecnológico e exploração econômica de produto acabado e de material reprodutivo oriundos do acesso ao PG e CTA. De acordo com as novas definições de acesso ao PG e de pesquisa, a lei alcança atividades que não estavam contempladas pela MP 2186-16, tais como pesquisas relacionadas à taxonomia, filogenia, epidemiologia molecular, ecologia molecular, entre outras. Outra novidade é que a utilização de informações oriundas de bancos de dados públicos de sequências genéticas como o GenBank também está no escopo da lei.
A nova lei determina que seja realizado cadastro no SisGen, durante a fase de pesquisa científica e desenvolvimento tecnológico, para acesso ao PG, acesso ao CTA e envio de PG. A substituição da obrigatoriedade de obter autorização prévia pelo cadastro traz um avanço, já que essa mudança permite que o Governo mantenha um controle sobre essas atividades, sem burocratizar excessivamente as pesquisas.
Porém, em alguns casos é necessário que o cadastramento seja prévio, tais como: remessa; requerimento de qualquer direito de propriedade intelectual; comercialização do produto intermediário? divulgação dos resultados, finais ou parciais, em meios científicos ou de comunicação? e notificação de produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido em decorrência de acesso.
Em casos muito específicos nos quais há envolvimento de estrangeiros e que o acesso ao PG ou ao CTA ocorra em área indispensável à segurança nacional e em águas jurisdicionais brasileiras, na plataforma continental e na zona econômica exclusiva, há necessidade da Autorização Prévia pelo SisGen e da anuência pelo Conselho de Defesa Nacional ou Comando da Marinha.
Além de cadastro e autorização, há também a notificação que deve ser realizada pelo usuário, por meio do SisGen, antes da exploração econômica. Haverá também a possibilidade do usuário realizar pelo SisGen a regularização, adequação e reformulação de pesquisas e desenvolvimento tecnológico realizadas durante a vigência da MP 2.186/2001, ou seja, entre 30 de junho de 2000 e a data de entrada em vigor da Lei. A Adequação será necessária para os pesquisadores que obtiveram autorizações durante a vigência da MP. A Reformulação é para os casos de autorizações solicitadas e que ainda estavam em tramitação na data de entrada em vigor da Lei. A Regularização será exigida nos casos em que as atividades foram realizadas em desacordo com a legislação em vigor à época. Neste último caso, as regras estão mais flexíveis. Haverá isenção de 100% do pagamento de multas por irregularidades relacionadas à MP para a pesquisa. No caso de desenvolvimento tecnológico, a isenção será de até 90%, podendo o saldo remanescente ser revertido em projetos para conservação; uso sustentável de biodiversidade; transferência de tecnologias; licenciamento de produtos livre de ônus? distribuição gratuita de produtos em programas de interesse social; etc.
Concluído o preenchimento dos formulários eletrônicos do SisGen, será emitido automaticamente um comprovante de cadastro ou notificação, que constitui documento hábil para demonstrar que o usuário prestou as informações que lhe foram exigidas. Adicionalmente, o usuário poderá solicitar um Atestado de Regularidade de Acesso ao CGen.
A diferença entre remessa e envio é outro ponto que gera dúvidas. A Remessa é considerada mais crítica porque ocorre uma transferência de amostra de PG para instituição localizada fora do país com a finalidade de acesso, para quem é transferida a responsabilidade sobre a amostra. Nesse caso, é necessário firmar um Termo de Transferência de Material (TTM) entre remetente e destinatário da remessa ao exterior. O Envio, por sua vez, consiste apenas no despacho/transporte de amostra oriunda do PG para prestação de serviços no exterior, como parte de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico na qual a responsabilidade sobre a amostra é de quem realiza o acesso no Brasil, sendo necessária destruição ou devolução da amostra enviada após finalização da prestação de serviço. No lugar de TTM, será exigido um instrumento jurídico firmado entre a instituição nacional responsável pelo acesso e a instituição parceira ou contratada, contendo uma série de informações previstas no Decreto regulamentador. O Envio substitui o “transporte de amostra de componente de PG” da MP 2.186, ao prever que a prestação de serviços possa ser feita por instituição parceira, coautora da pesquisa, isentando, nesse caso, a necessidade de retribuição ou contrapartida.
Na Lei, ainda ficou definido que deve ser considerado parte do PG qualquer micro-organismo isolado a partir de substratos do território nacional, mar territorial, zona econômica exclusiva ou plataforma continental. Apesar de a definição ser mais clara, ainda restam algumas dúvidas e polêmicas sobre o tema.
O mesmo pode-se esperar na questão relacionada às espécies vegetais e animais introduzidas no país, ao considerar que estas quando encontradas em condições in situ no território nacional, formando populações espontâneas com características distintivas próprias, passam a compor o PG nacional. De acordo com a Lei, população espontânea é aquela formada por espécies introduzidas no território nacional, ainda que domesticadas, capazes de se autoperpetuarem naturalmente nos ecossistemas e habitats brasileiros.
Tão importante quanto o PG, na presente Lei, é o CTA que representa toda “informação ou prática de população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional sobre as propriedades ou usos diretos ou indiretos associada ao PG”. A abrangência dos detentores do CTA foi ampliada ao reconhecer o valor e o potencial dos agricultores tradicionais.
O CTA foi dividido em 2, sendo um de “Origem Identificável” e outro de “Origem Não Identificável”. No caso do CTA de origem identificável, é necessário obter antes do início da pesquisa o Consentimento Prévio Informado (CPI), no qual o respectivo grupo é devidamente esclarecido sobre a pesquisa ou exploração comercial, manifestando interesse real na participação do processo, ao mesmo tempo em que lhe é assegurado o direito de recusa. É importante mencionar que esses preceitos fazem parte da conduta ética de pesquisas que envolvem seres humanos, agregando ainda quesitos relacionados com a repartição justa e equitativa de benefícios, nos casos em que o acesso resulte em exploração econômica a partir de produto acabado oriundo do acesso ao CTA. Desde que respeitadas às diretrizes para a obtenção do CPI, o provedor poderá optar por diferentes instrumentos, inclusive registro audiovisual do consentimento, parecer do órgão oficial competente ou protocolo comunitário previamente estabelecido.
A Repartição de Benefícios (RB), tratada na Convenção da Diversidade Biológica e aprofundada no Protocolo de Nagoya, é necessária para reconhecer o valor e o esforço de uma nação em proteger e preservar sua biodiversidade e seus recursos genéticos, além de reconhecer o valor dos povos tradicionais para essa conservação e de seus saberes para o desenvolvimento tecnológico e para a exploração econômica de produtos oriundos do acesso a esses conhecimentos. Assim, a RB pode ser considerada uma questão de justiça para a soberania das nações sobre o seu PG e para os povos tradicionais sobre os seus saberes.
Nesse sentido, a Lei traz regras mais claras e prefixadas para a RB, que poderão ser não monetárias e monetárias. A União será indicada como beneficiária da RB, no caso de acesso ao PG e CTA não identificado, devendo ser fixado o valor em 1%, ou até 0,1% por meio de um acordo setorial, da receita líquida anual obtida com a exploração econômica de um produto para o FNRB.
No caso de CTA identificado os beneficiários poderão negociar livremente com o usuário o percentual para a RB. Contudo, independente desse acordo/percentual, o usuário deverá ao FNRB uma parcela de 0,5% da receita líquida anual obtida com a exploração econômica. Considerando que muito do que existe do CTA no Brasil pode ser considerado um “conhecimento tradicional difuso”, pertencente a inúmeros povos tradicionais, espera-se que essa parcela designada para o FNRB possa evitar processos de judicialização envolvendo comunidades diversas que aleguem ser detentoras do mesmo CTA acessado junto a um determinado grupo/comunidade, já que os demais grupos podem ser contemplados por ações e recursos derivados do FNRB.
A RB não monetária poderá ser feita por meio de acordo com os povos tradicionais ou com a união, sendo previstas na Lei várias modalidades, semelhantes às propostas pelo Protocolo de Nagoya, representando um avanço na atual legislação, já que, em muitos casos, determinadas ações podem contribuir mais do que o repasse de recursos.
Quando os recursos monetários depositados no FNRB forem decorrentes da exploração econômica de produto acabado oriundo de acesso a PG proveniente de coleções ex situ credenciadas, os mesmos serão parcialmente destinados em benefício dessas coleções (60 a 80% do valor depositado). Esta é uma conquista para as coleções ex situ, pois a preservação e a conservação da biodiversidade realizada por elas envolvem custos elevados. Outra grande mudança na Lei foi a exclusão da exigência de depósito em coleções ex situ de sub-amostra de PG acessado, o que, no caso de remessa para o exterior, garantiria a rastreabilidade dos recursos genéticos e, portanto, a soberania do Brasil sobre sua biodiversidade. No entanto, o usuário ao fazer o depósito de forma voluntária poderá registrar esta informação no SisGen.
Ainda sobre coleções ex situ, a nova legislação manteve o credenciamento de instituição nacional pública ou privada mantenedoras de coleção ex situ de amostras que contenham PG. Este credenciamento tem como objetivo garantir o acesso à informação estratégica sobre a conservação ex situ do PG no território nacional e permitirá que estas coleções possam receber recursos do FNRB.
As questões relacionadas à procedência do PG, incluindo coordenada georreferenciada, do local de obtenção in situ, ainda que tenham sido obtidas em fontes ex situ ou in silico, são complexas e merecerão discussão aprofundada. Assim como a identificação do banco de dados de origem do PG com as informações constantes no registro de depósito, quando for oriundo de banco de dados in silico.
No que se refere às penalidades, consideram-se infrações administrativas contra o PG ou CTA toda ação ou omissão que viole as normas da Lei. A multa será arbitrada pela autoridade competente e pode variar de R$ 1.000,00 a R$ 100.000,00 para pessoas físicas, e de R$ 10.000,00 a R$ 10.000.000,00 para pessoas jurídicas. Há diversas infrações, dentre elas, exploração econômica sem notificação prévia; remessa de amostra de PG ao exterior sem cadastro prévio ou em desacordo com este; acesso ao CTA de origem identificável sem a obtenção do CPI, ou em desacordo com este; e divulgação de resultados, finais ou parciais, em meios científicos ou de comunicação sem cadastro prévio. Em alguns casos, a sanção de multa poderá ser substituída por advertência. Para evitar ilegalidade por esquecimento, é recomendável que se faça o cadastro logo no início das atividades, pois a simples apresentação de resultados parciais em eventos científicos, ou a remessa de PG ao exterior sem cadastro prévio, será considerada infração à lei, passível de multa.
Danilo Ribeiro de Oliveira é professor adjunto III da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador da Subcâmara de Biodiversidade, vinculada à Câmara Técnica de Ética em Pesquisa (CTEP/PR2/UFRJ). E-mail para contato: oliveiradr@pharma.ufrj.br.
Manuela da Silva é assessora da Vice-Presidência de Pesquisa e Laboratórios de Referência e coordenadora das Coleções Biológicas da Fiocruz. E-mail para contato: manuela.dasilva@fiocruz.br.
*Este artigo foi publicado originalmente no Jornal da Ciência.