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15/08/2005

Oswaldo Cruz, um louco genial

Adriana Melo


Fraque, gravata à príncipe de Gales e cartola. Os trajes chamavam a atenção e, aliados a uma pasta semelhante à utilizada por lambe-lambes, renderam-lhe o apelido de "doutor fotógrafo". O bigode, que costumava acariciar enquanto meditava, tinha as pontas erguidas às custas de muita pomada Hongroise. Passava horas fumando ópio na sala de estudo em sua casa, iluminada por duas lâmpadas de bronze - uma em forma de coruja outra de morcego. Figura controversa no seu tempo, tornou-se unanimidade nacional. Oswaldo Cruz está no imaginário coletivo brasileiro, nem que seja pelas placas de ruas batizadas com seu nome. O Instituto que foi a menina de seus olhos, seu maior legado, também leva seu nome - homenagem que recebeu ainda em vida.

Nascido em 5 de agosto de 1872, na cidade de São Luís do Paraitinga (SP), Oswaldo foi criado na Gávea, bairro da zona sul do Rio de Janeiro, na época um subúrbio distante. Tímido, teve educação rígida. Conta-se que certa vez seu pai mandou chamá-lo na escola, no meio da aula, porque não tinha arrumado a cama antes de sair. Ainda adolescente, decidiu seguir a profissão do pai. Na faculdade de medicina, em que ingressou aos 15 anos, não foi um aluno brilhante. Mas desde que olhou pela primeira vez através das lentes de um microscópio, apaixonou-se pelos microrganismos. Era a época de grandes descobertas nesse campo: a revolução pasteuriana havia criado um novo caminho para a compreensão e a prevenção das doenças infecciosas.


Aos 21 anos, casou-se com Emília da Fonseca, sua namorada de adolescência, com quem teve seis filhos. Chamava a família de "minha tribo", e Emília de "minha querida Miloquinha". O sogro, um rico comendador, financiou sua viagem a Paris, em 1896, para estagiar no prestigiado Instituto Pasteur. Para sustentar a família na capital francesa, Oswaldo empregou-se em uma clínica de urologia, campo da medicina lucrativo na época, devido às doenças venéreas tão comuns na Paris da Belle Époque. Esse ramo não agradava Oswaldo, que arranjou, então, um estágio no laboratório de toxicologia da cidade: a investigação criminal, ao melhor estilo Sherlock Holmes, era seu novo trabalho.


Entretanto, essas atividades não afastaram Oswaldo de seu objeto de interesse, a "tão ingrata quanto adorada bacteriologia". No Instituto Pasteur foi muito bem recebido e até dispensado de pagar pelo material usado nas pesquisas. Era o primeiro conterrâneo de Dom Pedro II a estudar lá, e o Instituto queria demonstrar gratidão pela ajuda dada pelo ex-imperador. Também fez estágio numa fábrica de vidraria para laboratório - seria o primeiro a fabricar ampolas no Brasil. Além de estudar, Oswaldo ainda tinha tempo de ir ao teatro - era fã da atriz Sarah Bernhardt, em cartaz com Hamlet.


De volta ao Brasil, tudo indicava que faria carreira como clínico, até receber uma designação da Diretoria-geral de Saúde Pública para, junto com Adolpho Lutz e Vital Brazil, investigar casos suspeitos de peste bubônica em Santos. O diagnóstico foi confirmado. O único tratamento para a doença, o soro antipestoso, não era produzido no País. Foram então criados dois institutos soroterápicos, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro - este, localizado na fazenda Manguinhos, seria dirigido pelo barão de Pedro Afonso.


O barão precisava de um diretor técnico e foi ao Instituto Pasteur pedir indicação de um nome para o cargo. Foi informado de que não precisava de um cientista estrangeiro - o brasileiro Oswaldo Cruz preenchia todos os requisitos para a função. Era o início de uma relação tumultuada entre o autocrata e o cientista. A rixa entre os dois acabaria sendo resolvida a favor de Oswaldo, que em 1902 assumiu a direção geral do Instituto, de que só sairia 14 anos depois.


O Rio de Janeiro era assolado por doenças como varíola, peste, cólera e febre amarela. Os cortiços eram muitos e as primeiras favelas já surgiam. Nesse cenário, Oswaldo Cruz foi nomeado diretor-geral de Saúde Pública, cargo equivalente ao de ministro da Saúde. Para debelar as doenças, Oswaldo tomou providências polêmicas. Convicto da eficácia de suas ações - combate a ratos e mosquitos e vacinação obrigatória da população -, talvez tenha lhe faltado um pouco de tato.


A imunização obrigatória aliada à reforma urbana que derrubou cortiços e favelas revoltou a cidade. As manifestações contra a vacina evoluíram para uma rebelião. Mesmo achando que seria morto pela turba amotinada, Oswaldo não deixou de ir trabalhar. Um bilhete de despedida com a sua caligrafia foi encontrado escondido na cartola, caída no chão no meio do tumulto: "Morreu pelo bem do povo, a 10 de novembro de 1904".


Maciçamente criticado pela imprensa, tornou-se o alvo preferido de cronistas, cartunistas e humoristas. Guardou as caricaturas, quadrinhas e notícias publicadas a seu respeito. Tinha certeza de que o valor das medidas que tomara seria reconhecido, mas queria se lembrar de como tinha sido injustiçado. Tinha razão: em 1908, outro surto de varíola levou a população a formar filas nos postos de vacinação.


Em 1907 ganhou o primeiro prêmio no Congresso de Higiene e Demografia de Berlim. Na volta ao Brasil foi recebido como herói nacional. A imprensa agora o chamava de "saneador do Rio de Janeiro". Em 1912 foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, apesar de só ter escrito livros científicos.


Em 1916 Oswaldo deixou o Instituto devido a problemas de saúde que já havia previsto. Nove anos antes, já com os primeiros sintomas da nefrite, examinara a própria urina e achara albumina, o que não era um bom sinal. Fizera então um projeto de seu próprio túmulo. Como não poderia deixar de ser, deu ênfase ao isolamento do cadáver: o caixão deveria ser hermeticamente fechado, revestido de bronze e asfalto. O projeto acabou não sendo usado - o túmulo de Oswaldo, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro, seria desenhado por Luís Moraes Júnior, o arquiteto de Manguinhos.


Por sugestão do filho Bento, Oswaldo mudou-se para Petrópolis. Assumiu a prefeitura do município fluminense, mas sua gestão foi muito curta: um descolamento de retina deixou-o praticamente cego e ele pediu demissão do cargo. Em 11 de fevereiro de 1917, numa manifestação em frente à casa do sanitarista, os adversários políticos comemoraram a derrota do opositor que mal chegaram a enfrentar. Enquanto isso, cercado de amigos, morria Oswaldo Cruz. Não sem antes deixar a última recomendação aos seus: "Não usem roupas negras, que além de tudo são anti-higiênicas em nosso clima".

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