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14/04/2020

A pandemia de novo coronavírus e o Antropoceno

André Felipe Cândido da Silva e Gabriel Lopes*


Entre a vasta produção midiática sobre a Covid-19, que cresce exponencialmente na proporção de horas, têm ganhado vulto os discursos que advertem para a dimensão ecológica da pandemia. Circularam amplamente na internet imagens de golfinhos e cisnes em Veneza, de elefantes embriagados em cultivos de morango, de população numerosa de cervos repousando em avenida de uma metrópole, de javalis flanando por ruas desertas de uma cidade italiana.

Embora a veracidade das informações sobre os registros tenha sido revogada, principalmente a de que tais ocorrências seriam consequência do isolamento social acarretado pela pandemia, o tráfego intenso das imagens de animais repovoando paisagens altamente humanizadas revela muito da ansiedade atual acerca das mudanças ecológicas que estão na base do Antropoceno. Ansiedade esta intensificada pelo reconhecimento das fragilidades dos sistemas econômicos, políticos e sociais globais, considerados mais ou menos estáveis, mas que já vinham apresentando sinais de fragilidade.

Tais figuras acenariam para o papel destrutivo da espécie humana no planeta, sendo a mesma, comparada ao próprio “vírus” que o afetaria, ao passo que a Covid-19 corresponderia ao sistema imunológico que se defende da devastação provocada pelo homem. Esta ideia difusa mas amplamente persistente da atual crise sanitária como consequência da devastação ambiental pelo homem revela o tecido cultural no qual está imersa a formulação do Antropoceno enquanto período geológico conformado por modificações de natureza antrópica e não por processos biogeofísicos intrínsecos ao desenvolvimento do planeta.

Se na arena científica, basicamente entre os geólogos, o Antropoceno permanece litigioso, em outras áreas do conhecimento e na esfera cultural ele tem conquistado vasto terreno, reafirmando a distinção entre as dimensões científica e cultural do conceito, como propõe Helmut Trischler (2016). Menos do que esferas estanques e trajetórias paralelas, ambas dimensões se interpenetram e retroalimentam. As imagens de animais em paisagens humanizadas conjugam-se às imagens de desertos urbanos, estes sim, provocados pela Covid-19, que colocou pelo menos um terço do mundo sob isolamento. Independente das circunstâncias de produção desses registros, a circulação que eles têm ganhado insinuam outra angústia contemporânea ligada ao tecido cultural do Antropoceno: elas certificam a ideia de um “mundo sem nós”, para retomar o experimento de pensamento de Alan Weisman, ou seja, referem-se aos imaginários extincionistas reavivados com o aquecimento global.

Nesse sentido, as pandemias representam um dos principais fenômenos que abastecem a ansiedade de extinção da espécie humana da Terra. Diferentemente de catástrofes que extinguiriam indistintamente todas as formas de vida, como uma guerra nuclear ou a queda de um asteróide, a Covid-19, como outras pandemias virais, atinge especificamente os humanos. Na medida em que o vírus Sars-CoV-2 se reproduz em nossos corpos e se espalha rapidamente por uma malha humana globalizada, respondemos com a única tática cabível no momento, o recuo.

Enquanto as imagens antes mencionadas insinuam um caráter intrinsecamente devastador do homem, desta forma colocado quase no quadrante oposto aos demais animais e à “natureza” ou ao “ambiente”, a Covid-19 expressa os profundos entrelaçamentos entre humanos, animais não-humanos, dinâmicas biogeoquímicas e processos socioambientais complexos, que provocaram esta como as outras pandemias zoonóticas da história. Reafirma a integração do homem à “rede da vida” do qual faz parte e cuja perturbação afeta as sinergias e influências mútuas entre os elos dessas cadeias, desencadeando efeitos imprevistos. Como elementos desta rede, ao qual pertencem como espécie e se situam em sua condicionalidade sócio-história, os humanos deflagram e sofrem processos dos quais as doenças infecciosas são uma das expressões.

No caso da Covid-19 e de outras pandemias recentes, como Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio), gripe aviária, gripe suína e Sars, tais processos estão ligados a maiores proximidade e contato de populações humanas e não-humanas em decorrência de crescimento urbano desordenado com avanço sobre áreas silvestres; agricultura e pecuária industrializadas, comércio ilegal de animais selvagens, perda da biodiversidade, mudanças climáticas. Menos do que um elemento da natureza que irrompe sobre a sociedade humana, tais pandemias decorrem desses entrelaçamentos entre humanos e não-humanos ocasionados por atividades antrópicas. Os mercados úmidos são o epítome de convivências interespecíficas que desafiam os padrões dos habitats dos animais expostos nos corredores, tendo função crucial no abastecimento alimentar da China e de regiões.

A frequência das pandemias de origem zoonótica a partir dos anos 1990 detonou o que o antropólogo e historiador Christos Lynteris (2019) denomina em seu livro publicado no último ano de “imaginário pandêmico”. Robustecido por ampla produção cultural, que inclui o blockbuster hollywoodiano Epidemia (original Outbreak), baseado no best-seller de Richard Preston, The Hot Zone (com leitmotiv reforçado anos depois no filme Contágio, de Steven Soderbergh), além do best-seller internacional de Laurie Garret, A próxima peste, tal imaginário consiste basicamente na antecipação do fim da espécie humana por pandemias de origem animal, nunca atingido, mas sempre reatualizado, fomentando a ideia de que a crise pandêmica do presente contém em si desafio similar do futuro, ao qual a sociedade deve se preparar com “prontidão” cada vez mais ágil, sinérgica e eficiente. O avanço científico-tecnológico é a base desta “prontidão” sempre aperfeiçoada, à semelhança de correntes que apostam em soluções da mesma natureza para a crise ecológica do Antropoceno, como por exemplo os próceres da geoengenharia (Hamilton, 2013).

Menos do que contestar o papel que as ciências desempenham e devem ainda desempenhar na solução de desafios globais contemporâneos, cabe articulá-las à dimensão sociocultural, política e econômica da qual são parte, e determinar que abordagens e saberes se revelam mais aptos a equacionar tais desafios levando em conta sua complexidade, inter-relação e integralidade, forte desafio do Antropoceno. No tocante ao campo da saúde, os surtos enquadrados a partir dos anos 1990 como “doenças emergentes” - Ebola, Sars, gripe aviária, gripe suína, febre do Nilo, febre de Nipah, Mers - reativaram mais do que inauguraram percepções das complexidades ecológicas envolvidas não só nas epidemias, como nas doenças infecciosas de uma forma geral. Nesse sentido, representaram um desafio à hegemonia do paradigma biomédico que em geral não favoreceu a visibilização dessas interdependências ecológicas.

Tal paradigma concentrou-se desde a emergência e consolidação da teoria microbiana nos dispositivos destinados a encontrar os agentes causadores, as ferramentas diagnósticas e recursos terapêuticos, inicialmente integrados por vacinas, soros e quimioterápicos específicos. Ele estabeleceu a retórica da guerra do homem contra as doenças e os patógenos, em consonância com a linguagem e imaginário militaristas marcantes nos países colonialistas europeus que empunharam essas “armas” na consolidação da conquista de seus domínios além-mar no final do século 19 e início do 20.

No início nos anos 1980, a pandemia de Aids pôs por terra o “otimismo sanitário” baseado na vitória sobre as doenças com o “arsenal” dos quimioterápicos, dos antibióticos, das vacinas e dos inseticidas residuais contra os vetores. As pandemias zoonóticas intensificadas a partir da década seguinte perturbaram o modelo restritivo do paradigma biomédico hegemônico de causalidade e tratamento, e estabeleceram a ideia da ameaça permanente da “próxima peste”. O caráter mítico deste “imaginário pandêmico” reelabora a relação humano/ animal à medida em que, como defende Lynteris (2019), abala a pretensão de domínio do homem sobre a relação com os não-humanos, a qual fundamenta a ilusão de sua separação do que seria um domínio da “natureza”.

A Covid-19, como as outras pandemias recentes, confronta a utopia sanitária de fronteiras rígidas entre espécies, tanto no domínio espacial, quanto epistemológico e cultural. Os persistentes chamados trazidos pela pandemia por ações coordenadas, de abrangência global, preveem também a conjugação de campos do saber radicados no estabelecimento dessas fronteiras. Além disso, reforça a importância de se abordar a existência humana no Antropoceno como coexistência; que a humanidade, tanto como condição quanto como espécie, está em constante "co-tornar-se". As "espécies companheiras" (Haraway, 2008) não são apenas os animais domésticos e os ameaçados de desaparecimento, mas incluem os fungos, as bactérias e, neste caso, os vírus, “criaturas” que estão na fronteira do que se entende por ser vivo.

Cumpre sublinhar que a reconfiguração da relação dos humanos com os “não-humanos” figura como uma das principais apostas dos pensadores que veem no Antropoceno uma ruptura com os paradigmas canônicos fundamentados na separação entre a natureza e a cultura e, por extensão, entre a história natural e a história humana (Chakrabarty, 2009). Nesse aspecto, propostas analíticas de diferentes matizes, fortemente radicadas na etnografia, enunciam a relevância de paradigmas relacionais, construídos a partir de epistemologias alternativas às tradições hegemônicas da cultura ocidental que referendaram esta dualidade.

A Covid-19 acena para outras possibilidades de "imaginário pandêmico" no Antropoceno, que não sejam apenas a espera resignada da "próxima peste", com aparatos médicos, sanitários e tecnológicos cada vez mais "preparados" e eficientes para enfrentar uma ameaça de extinção humana sempre reiterada, mas não cumprida, como um fim sempre adiado. Essas outras possibilidades contemplam o reconhecimento do humano como capaz de construir relações de coexistência com as demais espécies com quem compartilha a biosfera, de se identificar como resultante dessas redes de interdependências mútuas e de construir padrões por meio dos quais a manutenção não só da espécie humana mas da vida como um todo seja assegurada para as gerações futuras, o dilema crucial do Antropoceno.

*André Felipe Cândido da Silva  é pesquisador do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)

Gabriel Lopes é bolsista de pós-doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz)

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