03/01/2023
Apesar da disponibilidade de vacina, os rotavírus ainda são responsáveis pela maior parte dos casos graves de diarreia em crianças menores de cinco anos em países de baixa e média renda, provocando mais de 200 mil óbitos por ano. É o que aponta um amplo estudo realizado pela Rede Global de Vigilância da Diarreia Pediátrica, coordenada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e com participação do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
Publicada na revista científica BMJ Global Health, a pesquisa apresenta dados do monitoramento realizado entre 2017 e 2019 em hospitais sentinelas de 28 países, abrangendo as regiões das Américas, África, Europa, Ásia e Oceania. Os resultados do trabalho reforçam a importância da imunização. Considerando o conjunto dos países, o rotavírus foi responsável por 33% das internações. Porém, o impacto do patógeno caiu pela metade nos locais com oferta da imunização.
“Esse resultado deixa claro o impacto positivo da vacina contra os rotavírus e a necessidade de fortalecer e expandir essa imunização. A OMS recomenda que todos os países ofereçam o imunizante, no entanto, menos da metade das crianças nascidas em 2018 foram vacinadas”, ressalta o virologista José Paulo Gagliardi Leite, pesquisador do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC/Fiocruz e um dos autores do estudo.
Além dos rotavírus, a pesquisa identificou outros patógenos causadores de parcela expressiva das hospitalizações infantis: a bactéria Shigella (responsável por 10% dos casos), os norovírus (detectado em 6,5% dos casos) e os adenovírus (confirmado em 5,5% dos casos).
A partir dos dados coletados, os pesquisadores estimaram o número de mortes de crianças menores de 5 anos provocadas anualmente por cada um dos microrganismos em países de baixa e média renda: 208 mil pelos rotavírus; 63 mil pela Shigella; 37 mil pelos adenovírus; e 36 mil pelos norovírus.
“A diarreia é uma das cinco principais causas de morte de crianças menores de cinco anos no mundo. São mais de mil óbitos por dia. Conhecer os microrganismos que provocam a doença é importante para traçar estratégias de prevenção e controle mais efetivas”, afirma o virologista Tulio Fumian, também pesquisador do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC/Fiocruz e um dos autores do trabalho.
“Pensando em novas vacinas, já existem estudos em andamento para desenvolver imunizantes contra Shigella e norovírus. A partir dos dados, vemos que os adenovírus também podem ser considerados nessas iniciativas”, acrescenta José Paulo.
Situação nas Américas
O continente americano foi a única região pesquisada onde o rotavírus não foi a principal causa das internações. Na América do Sul, a maior parte das hospitalizações foi devida ao norovírus. Já na América Central, a bactéria Shigella foi mais prevalente.
O estudo destaca que os seis países da região com hospitais sentinela incluídos na pesquisa (Honduras, Nicarágua, Bolívia, Equador, Peru e Paraguai) oferecem a vacina para os rotavírus em seus programas nacionais de imunização desde 2010.
Segundo os pesquisadores, os dados observados na pesquisa são compatíveis com as análises realizadas no Brasil pelo Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC/Fiocruz, que atua como centro de referência regional para rotaviroses para o Ministério da Saúde e para a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas/OMS), recebendo cerca de mil amostras por ano de 11 estados do Sul, Sudeste e Nordeste do país, além de amostras de países da América Latina (Bolívia, Equador, Paraguai e Peru).
“Como referência, analisamos não apenas os casos graves, que demandam internação, mas também ocorrências ambulatoriais, principalmente em situações de surto. No Brasil, em nossos últimos trabalhos, detectamos aproximadamente o dobro de infecções por norovírus em comparação com os rotavírus”, esclarece Tulio.
Conferência dos resultados das análises genéticas: Laboratório do IOC/Fiocruz recebe amostras de diversas partes do país e da América Latina (foto: Gutemberg Brito)O pesquisador faz uma alerta: é preciso elevar a cobertura vacinal no país. “Nas análises de 2022, observamos aumento de infecções por rotavírus. Além disso, como o país apresentou baixa cobertura vacinal em 2020 e 2021, é primordial reverter essa queda”, aponta o pesquisador.
Introduzida no Programa Nacional de Imunização (PNI) em março de 2006, a vacina para rotavírus é administrada por via oral, aos 2 e 4 meses de vida, para proteger contra gastroenterite aguda causada pelo patógeno. Em 2015, o índice vacinal alcançou 95% das crianças com menos de um ano. No entanto, começou a declinar a partir de 2016 e a situação se agravou durante a pandemia de Covid-19. Em 2021, apenas 71% dos pequenos foram imunizados. “Em geral, as coberturas são mais baixas nas regiões Norte e Nordeste”, salienta José Paulo.
Além da vacinação, os pesquisadores destacam outras medidas importantes para prevenir os casos de diarreia. “O saneamento é fundamental e tem grande impacto nos casos de diarreia bacteriana. Em relação aos rotavirus, norovirus e adenovirus, devido as suas características biológicas, podem permanecer infecciosos durante longos períodos no ambiente. A higiene das mãos, a limpeza e desinfecção dos locais onde pode haver contaminação por fezes e vômito é muito importante. As crianças com diarreia também devem ser afastadas da creche, para prevenir a ocorrência de surtos”, enumera Leite.
Perspectiva de monitoramento em tempo real
Com financiamento da Fundação Bill & Melinda Gates e da Aliança Global de Vacinas (Gavi, na sigla em inglês), a Rede Global de Vigilância da Diarreia Pediátrica vem realizando desde 2017 o monitoramento permanente das internações de crianças menores de cinco anos por diarreia nos 33 hospitais sentinelas estabelecidos.
Amostras selecionadas para análise são enviadas para um dos oito Laboratórios Regionais de Referência para Rotavírus da OMS, dentre eles, o Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental do IOC/Fiocruz. A identificação dos patógenos é realizada através de análise genética, pela metodologia de PCR em tempo real.
“O teste permite identificar 16 patógenos simultaneamente, entre bactérias, parasitas e vírus, que são causadores de diarreia aguda. Também detecta subtipos dos microrganismos, como diferentes espécies de bactérias ou genótipos virais, com um total de 73 variações”, explica a bióloga Irene Araújo Maciel, tecnologista responsável pelas análises do projeto no Laboratório do IOC/Fiocruz. Os resultados obtidos são enviados para a Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, onde o teste (chamado de ‘Tac Array Card’) foi desenvolvido e onde os cientistas realizam as análises estatísticas do estudo.
A publicação dos primeiros resultados da pesquisa foi atrasada pela pandemia de Covid-19, uma vez que os centros de saúde e laboratórios precisaram dedicar esforços ao enfrentamento do Sars-CoV-2. Atualmente, os cientistas analisam as amostras referentes a 2020, mas o objetivo é realizar análises em tempo real nos próximos anos. “Nesse momento, ainda temos o reflexo da pandemia. Mas, num futuro próximo, esperamos fazer um diagnóstico em tempo real. Isso vai permitir uma visão panorâmica e geográfica da disseminação dos microrganismos nos cinco continentes, para acompanhar surtos e comparar o que ocorrer nas diferentes regiões”, afirma José Paulo.
Rotavirose
De acordo com o Ministério da Saúde, a forma clássica da rotavirose, principalmente na faixa de seis meses a dois anos, é caracterizada por uma forma abrupta de vômito, na maioria das vezes há diarreia e a presença de febre alta. Podem ocorrer formas leves nos adultos e formas que não apresentam sintomas em recém-nascidos e durante os quatro primeiros meses de vida.
Os rotavírus são transmitidos pelo contato fecal-oral (fezes-boca), por contato pessoa a pessoa, através de água, alimentos e objetos contaminados. Há presença de alta concentração do vírus causador da doença nas fezes de crianças infectadas. Os vômitos também são responsáveis pela disseminação dos rotavírus e norovírus.
Integrante do calendário nacional de vacinação, a vacina contra rotavírus (VORH) é disponibilizada gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). É fundamental ser administrada aos 2 e 4 meses de vida dos bebês.
Também é preciso seguir cuidados básicos com higiene pessoal e doméstica, como lavar sempre as mãos antes e depois de utilizar o banheiro, trocar fraldas, manipular/preparar os alimentos, amamentar, manusear materiais/objetos sujos, tocar em animais, além de lavar e desinfetar as superfícies, utensílios e equipamentos usados na preparação de alimentos.
O Ministério da Saúde reforça que manter o aleitamento materno aumenta a resistência das crianças contra várias doenças, incluindo as diarreias, e por isso reforça a recomendação de evitar o desmame precoce.