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13/12/2013

Pesquisa propõe tipologia para análise do uso de crack no Rio de Janeiro

Tatiane Vargas


Na entrevista abaixo, o psicólogo Carlos Linhares comenta o estudo Cenas de uso de crack no município do Rio de Janeiro - perfil em 2011/2012, fruto de sua tese de doutorado. Doutor em Epidemiologia em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), ele discorre sobre a pequisa, pautada em análises de parte dos dados gerados pela Pesquisa Nacional sobre Crack. Os resultados apontam que para enfrentar um problema tão complexo como o crack, é necessário pensar ações estratégicas, informadas por múltiplas abordagens, que devem contemplar, além de tratamento de saúde, iniciativas de informação e educação preventiva.

Quais foram os principais objetivos do estudo?
 
Carlos Linhares:
 O estudo teve como objetivo principal propor uma tipologia para análise do uso de crack e similares (pasta base, merla e oxi) em cenas acessíveis de uso de drogas no município do Rio de Janeiro visitadas pela pesquisa em 2011 e 2012. Adicionalmente procuramos também discutir de forma sucinta algumas metodologias de investigação de populações de difícil acesso ou ocultas como usuários de crack e outras drogas ilícitas;  propor uma tipologia para análise descritiva e comparativa entre as cenas de uso de crack e similares em função das suas distribuições por concentração de usuários; e verificar a aplicabilidade dessa tipologia na análise comparativa dos dados, de modo a identificar diferenças relevantes quanto à natureza das cenas de uso (tamanho das cenas, perfil dos usuários, perfil de consumo de drogas lícitas e ilícitas) e as características geográficas dos espaços urbanos onde ocorrem. É importante ressaltar a não representatividade das cenas do Rio de Janeiro na análise que fizemos na pesquisa, e que o estudo em questão não será desagregado para os demais municípios envolvidos.

Como a pesquisa foi desenvolvida?

Linhares: A tese está pautada em análises de parte dos dados gerados pelo estudo Perfil dos usuários de crack nas 26 capitais, Distrito Federal, 9 regiões metropolitanas e Brasil, referentes ao município do Rio de Janeiro. Realizamos uma investigação das cenas de uso de crack e similares (o que inclui pasta base, merla, “oxi”), onde definimos uma cena de uso como qualquer grupo de pessoas constituído que envolva o manuseio, compartilhamento e/ou uso dessas substâncias em local aberto, ou seja, fora de instituições e/ou domicílios privados.

Nossa proposta contemplava três etapas de trabalho: exploração inicial das cenas de uso, utilizando métodos etnográficos, combinando observação participante e mapeamento (etnografia e geoprocessamento). O mapa temático é um instrumento da cartografia cuja função é facilitar a compreensão do objeto de estudo. Uma das funções do mapa é informar; por isso, é preciso ter clareza do que está sendo representado, pois excessivas informações sobrepostas em um mapa dificultam a leitura. Com o objetivo de aperfeiçoar a identificação e visualizar melhor a localização de eventos (cenas de uso de crack), tais mapas foram criados a partir de técnicas de geoprocessamento. Desenvolvemos mapas de Kernel para sumarizar o mapeamento das cenas de crack listadas no primeiro semestre de 2011, além de mapas de pontos para descrever as visitas realizadas/não realizadas no período 2011-12.

Os métodos etnográficos (mapeamento e observação etnográfica) foram utilizados de forma combinada aos achados do Geoprocessamento para fins de identificação das cenas de uso de crack nas localidades selecionadas, a partir da estratégia de amostragem das cenas utilizada no estudo. Essas informações também contribuíram para um melhor planejamento das visitas de campo. Utilizamos também o método de amostragem Time-Location Sampling (TLS), selecionando potenciais cenas de uso de crack e similares, a partir das molduras (frames) amostrais ou conglomerados de cenas definidas pelo trabalho de prospecção em termos de locais, horários e características das cenas de cada localidade.

Definimos um conglomerado de cenas como conjunto de cenas vizinhas que congregam maior número/fluxo mais intenso de indivíduos (usuários de drogas ou não) entre elas, em função da proximidade geográfica e inter-relação estreita das redes sociais dos usuários. O método Time-Location Sampling combina o mapeamento de locais de uso, por meio de etnografia, à obtenção de molduras (frames) amostrais tempo-espaciais. Ou seja, cada unidade amostral corresponde a uma fração de espaço frequentado pelos usuários em determinados períodos de tempo. Procedeu-se a um mapeamento das principais cenas de uso, utilizando inicialmente mapas manuais e Cadernos de Campo com a descrição do modus operandi dessas cenas, afinados com a longa tradição da etnografia, mas que não devem ser extrapolados para estimativas.

Após o término do estudo, as informações foram capturadas e sistematizadas sob a forma de mapas digitais, lançando mão dos recursos de cartografia digital do laboratório de geoprocessamento da Fiocruz. Sobre a análise exploratória das informações do banco de dados, ao longo do período de mapeamento, a equipe de pesquisa procedeu a uma listagem exaustiva das cenas de uso de crack no Rio de Janeiro e conseguiu compilar um banco com 185 cenas informadas pelos mais diversos parceiros das áreas da saúde, segurança, assistência social, educação, ONG´s e também pelos próprios moradores e associações de moradores. De posse dessas informações, foi sorteada uma lista de 193 cenas/turno para realização das etapas subsequentes do estudo.

Na execução das atividades de campo ao longo do período mencionado, a equipe de observadores realizou 99 visitas com sucesso, ou seja, conseguiu acessar as respectivas cenas e realizar observações etnográficas. Entretanto, em relação ao total de cenas/turno selecionadas para as visitas, a equipe de pesquisa não obteve êxito nas visitas de 94 delas. Essa é uma informação relevante para nosso estudo, pois corresponde a quase metade das visitas de campo previstas.

Quais foram os resultados encontrados na pesquisa?

Linhares: Segundo as informações coletadas nos Cadernos de Campo, a limpeza urbana, o serviço de coleta regular de lixo e a limpeza das ruas e logradouros no entorno, foram observadas em apenas em 33,3% das cenas visitadas (excluindo-se aqui, e em todas as demais análises, dados faltantes). Parte considerável dessas cenas encontra-se em áreas de favela ou urbanisticamente degradadas, sem coleta de lixo e manutenção por parte das companhias de limpeza urbana. Lidamos com áreas carentes de serviço público em geral, onde muitas vezes a coleta de lixo é realizada por garis comunitários voluntários. As aglomerações de usuários tendem a concentrar lixo e resíduos oriundos do próprio consumo de drogas, os quais se acumulam e criam um ambiente insalubre onde essas pessoas estão expostas a diversos agravos, que poderiam ser evitados com a melhoria das condições de limpeza e higiene.

Inseridos em um momento peculiar da história do município, com diversos projetos em curso na área da segurança pública, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), observou-se policiamento efetivo em 50% das cenas visitadas. Mesmo assim, muitos relatos davam conta de que não havia policiamento no momento das observações, ou, quando havia, este se limitava a patrulhas que passavam pelas localidades sem interferir nas cenas de consumo. Em cenas localizadas no interior de comunidades dominadas pelo tráfico ou em lugares de difícil acesso, como ao longo das linhas de trem, não foi observada qualquer tipo de ronda policial.

Em 94,3% das cenas visitadas obtivemos informações de localidades (mesmo as mais precárias) com infraestrutura mínima no entorno e proximidades das cenas que pudessem servir de apoio para o desenvolvimento das atividades de campo em curso naquele momento ou em futuros estudos em termos de viabilidade de execução dos mesmos em contextos. Definimos infraestrutura básica como a presença de algum equipamento público ou comunitário: postos de saúde, Unidades Básicas de Saúde, PSF, policlínicas, ONG´s, escolas, igrejas, associações de moradores, agremiações de escolas de samba etc. Nas cenas visitadas evidenciamos o uso de crack em curso em mais de 80% delas.

Em menos de 20%, porém, encontramos vestígios de uso de drogas (parafernália para uso, resíduos e matérias descartados), além de usuários em circulação portando esses apetrechos. Eles se encontravam na chamada correria (termo frequentemente utilizado por eles próprios) para conseguir dinheiro, comida e drogas, mas o consumo de crack não foi visualizado de forma direta nessas visitas. Uma das linhas de investigação da pesquisa era obter informações sobre o uso de crack e similares (pasta base, merla ou “oxi”) no Rio de Janeiro.

Em um número reduzido de cenas visitadas (apenas 5,2%) foram observados os chamados similares. O que conseguimos verificar era a suposta presença do assim denominado “oxi”. Entretanto, os próprios usuários não sabiam determinar com precisão a diferença entre as diversas substâncias e relatavam que [a substância que estavam usando] era o que eles haviam conseguido na “boca” naquele momento, pois não havia pedra do crack disponível para venda. Na falta do crack, os usuários acabavam optando pelo produto oferecido pelo traficante, sem conhecer a natureza da pedra que estavam consumindo, adotando ainda a terminologia que lhes era passada.

O cachimbo para o uso de crack é um dos apetrechos encontrados com frequência nas cenas de uso. No entanto, quando não são adquiridos ou obtidos de programas de Redução de Danos (cachimbos descartáveis), são instrumentos improvisados com partes encontradas no lixo ou retiradas de outros locais (antenas de carro, joelhos de PVC etc.), ou conseguidos entre os próprios usuários e traficantes. Apesar disso, foram observados em apenas 35,7% das cenas visitadas, pois há outros instrumentos de obtenção mais fácil, como copos de plástico, que funcionam como análogos improvisados dos cachimbos.

O uso compartilhado de apetrechos para o consumo de crack foi observado na maioria das cenas visitadas (64,3%). É bastante comum que os usuários façam compras coletivas de pedras e as dividam para consumo em grupo. Neste tipo de consumo é raro que o usuário disponha do seu próprio apetrecho e faça uso exclusivo dele sem compartilhá-lo com outros usuários. O que se observa com mais frequência é que, ao compartilharem a droga, compartilham também os materiais de uso, o que configura uma questão importante em epidemiologia, devido à possível transmissão das hepatites virais.

Estratégias de redução de danos vêm incorporando a distribuição de protetor labial para evitar queimaduras na área da boca, sangramentos e eventual transmissão de patógenos devido ao uso coletivo de apetrechos para consumo do crack. Esta é uma informação relevante para orientar as políticas futuras de redução de danos entre os usuários que compartilham seus apetrechos. O uso de álcool nas cenas de crack apresentou uma distribuição equilibrada nas localidades mapeadas e visitadas (50% / 50%). Por ser uma droga lícita (e socialmente bem aceita), relativamente barata e também um fator de sociabilidade entre os usuários, a presença de álcool nas cenas deve ser considerada relevante e configura um uso associado ao do crack e de outras substâncias de interesse em epidemiologia. O consumo de tabaco também foi bastante frequente (74,7%) nas cenas visitadas durante o período do estudo.
 
Essa informação associada ao uso de álcool nas cenas sugere fortemente que as pessoas que frequentam esses lugares sejam poliusuárias de drogas (lícitas e ilícitas). Nenhum indício de uso de cocaína injetada foi evidenciado nas visitas realizadas. Esta modalidade de uso vem apresentando declínio substancial nos últimos anos no Brasil e em outros países de renda média e elevada. Além disso, os grupos de usuários de drogas injetáveis estão habitualmente inseridos em outros agrupamentos sociais, distintos daqueles dos usuários habituais de crack.  
 
Evidenciamos a presença do tráfico armado e/ou venda de drogas em 59,5% das cenas, o que poderia ser explicado em parte pelo fato de se encontrarem em regiões de favelas dominadas por facções do tráfico. Parece razoável supor também que nas proximidades das aglomerações para uso de crack e outras drogas haja expedientes de venda e distribuição consideráveis das substâncias em função da grande demanda de usuários ali presentes e da velocidade e intensidade do consumo. É importante lembrar que não visitamos cenas mapeadas como “bocas de fumo”, pois se configuram como cenas, a priori, de venda de drogas e não, necessariamente, de uso, sendo estas últimas o objeto do nosso estudo. Apesar disso, sabemos que no entorno das “bocas de fumo” há consumo de drogas.

Entretanto, as cenas de uso de crack parecem ter uma distribuição própria. As cenas de venda exclusiva de drogas (algumas delas com advertências explicitas ou implícitas quanto ao caráter indesejável e mesmo arriscado do consumo nos próprios locais de venda) que figuraram na listagem inicial do mapeamento foram identificadas e descartadas do cadastro amostral. Em praticamente todas as cenas visitadas, inclusive quando foi necessária a colaboração de facilitadores locais, tivemos acesso aos locais exatos onde os usuários se reuniam para consumir drogas. As cenas consideradas inacessíveis provisoriamente (intempéries - chuvas e alagamentos; operações policiais e/ou da saúde e assistência social) eram revisitadas quando as condições assim o permitiam. As cenas consideradas inacessíveis permanentemente eram descartadas da agenda de visitas por questões de segurança da equipe de campo.

De que maneira o estudo está inserida na macro Pesquisa Nacional sobre o Crack?
 
Linhares:
 O estudo foi parte integrante do projeto de pesquisa Perfil dos usuários de crack nas 26 capitais, Distrito Federal, 9 regiões metropolitanas e Brasil, um levantamento encomendado pela Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (anteriormente denominada Secretaria Nacional de Políticas Antidrogas - Senad), por demanda formulada pelo gabinete do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao qual estava subordinada à Senad. A pesquisa é, hoje, elemento estratégico do Plano Integrado para Enfrentamento do Crack e outras drogas, da presidente Dilma Rousseff, e implementado numa parceria estabelecida entre a Senad, a Fiocruz e diversas instituições e colegas, nos 27 sites de gerência do estudo em todo o país.

O projeto foi desenvolvido pela Fiocruz e coordenado pelos pesquisadores Francisco Inácio Bastos e Neilane Bertoni. Todos são vinculados à Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca e ao Laboratório de Informações em Saúde (LIS), do Icict. O projeto foi iniciado em dezembro de 2010, com duração inicial prevista de dois anos, que foram estendidos até março de 2013, para a conclusão de todo o trabalho de campo e tabulação dos resultados.

A pesquisa visou a contribuir para a formulação e avaliação de ações e políticas públicas de prevenção a partir da elaboração e análise integrada de um conjunto de dados, mapeamento da situação atual da droga no país e do perfil dos usuários de crack e similares (pasta base, merla, oxi). Inicialmente, o trabalho refere-se ao período de mapeamento das cenas em todos os estados, realizado ao longo do primeiro semestre de 2011. Esse mapeamento vem sendo utilizado para subsidiar as políticas públicas dirigidas às áreas mais críticas, em termos de venda, circulação e consumo de crack e similares.

Como foi feita a classificação das cenas de uso?

Linhares: O conjunto de dados do presente estudo foi composto a partir da planilha da amostra final de cenas selecionadas pelos estatísticos da equipe de pesquisa com referência às visitas realizadas no período de 2011/12. As informações de interesse que compunham as questões dos Cadernos de Campo foram transformadas em variáveis de natureza quantitativa e integradas ao banco. Assim como estas, as informações de contagem advindas da aplicação destes instrumentos também foram transformadas em variáveis e integradas ao banco. As variáveis quantitativas foram analisadas segundo sua distribuição e frequência.

Como sabemos, o objeto de análise do presente estudo são as cenas/turno de uso de crack sorteadas para a pesquisa em função da sua distribuição por concentração de usuários. Dessa forma, para criar as categorias de análise que permitam estabelecer um recorte dessa informação foi necessário definir um ponto de corte, de modo a poder especificar e descrever as cenas com maior ou menor concentração de usuários. Com base nas informações dos intervalos interquartílicos na distribuição da variável “número de usuários” no banco foram definidas as categorias de análise do estudo.

O estudo revelou peculiaridades que não esperavam ser encontradas?
 
Linhares:
 Verificamos que, no município do Rio de Janeiro, das 99 cenas/turno sorteadas para a pesquisa, a prevalência das cenas/turno de média frequência (49,5%; 49 cenas) foi superior em relação às demais (25,3%, baixa frequência, 25 cenas; e 25,3%, alta frequência, 25 cenas), o que pode indicar que as grandes aglomerações de usuários de crack, habitualmente denominadas “cracolândias”, não estão espalhadas por toda a cidade conforme divulgado por alguns segmentos da mídia. Estão sim concentradas em determinadas localidades do município, que por diversas razões (localização geográfica, acessibilidade, proteção do tráfico, falta de policiamento ostensivo, carência de ações da prefeitura) favorecem uma maior concentração de pessoas em certos dias da semana e turnos específicos.

Essa informação indica que o município do Rio de Janeiro não tem, na maioria das cenas selecionadas para a amostra e visitadas durante a pesquisa, aglomerações superiores a 35 pessoas. Observou-se no período do estudo um número maior de cenas de média frequência, muito embora algumas localidades apresentem cenas com concentrações de usuários expressivas. Mesmo assim, as aglomerações com quantitativos superiores a cem pessoas correspondem a menos de 5% das cenas que constam do banco de dados.

Compreendemos a existência de grandes aglomerações de usuários de drogas como questão articulada a um fenômeno mais amplo, reflexo de políticas públicas que visam a empurrar a população pobre para a periferia, sem a contrapartida de infraestrutura urbana e oferta de empregos. O resultado foi um movimento de reversão, com a formação de um grande contingente de pessoas habitando ou circulando pelas ruas de diferentes áreas da cidade, em busca de alternativas face à precariedade da vida nas periferias e zonas semi-rurais.

Quais os maiores desafios encontrados durante a realização do estudo?

Linhares: Como em toda iniciativa pioneira referente a uma população de difícil acesso, não apenas fortemente estigmatizada, como objeto de incursões policiais quase diárias, além de outras ações repressivas (como realocação e internação compulsórias), nos vimos às voltas com dificuldades substanciais, e o presente trabalho deve ser visto, antes de tudo, como uma análise exploratória e um mapa de trajetória (“road map”) para os estudos que se seguirão.

As cenas de uso de crack no município têm como características comuns aglomerações de diferentes tamanhos, com predominância de cenas de frequência média, muitas delas em áreas de difícil acesso geográfico (tanto para moradores desses locais, como para instituições ou parceiros que realização ações específicas para essa população, tais como saúde e assistência social), eventualmente localizadas dentro de favelas e comunidades. Essas cenas descrevem usuários que se reúnem para consumir drogas em condições precárias de higiene e infraestrutura urbana. Mesmo as cenas em regiões mais urbanizadas e centrais contemplam pessoas vivendo em condições degradantes, às voltas com a luta pela sobrevivência.

Algumas cenas tendem a se configurar em áreas de tráfico ou em locais próximos a bocas de fumos, o que favorece o fluxo entre o mercado atacadista (fornecedor) e varejista (distribuidor), em função da fácil oferta de drogas nessas localidades. A presença de tráfico armado também foi observada nesses locais. Em se tratando das concentrações de usuários de crack e outras drogas, usuários estes que se reúnem e dispersam em movimentos de intenso fluxo, é razoável supor que exista um mercado pulverizado e extremamente dinâmico de drogas, que alimenta as cenas de crack em fluxo contínuo.

Foram observadas nas cenas a circulação e o consumo de diversos tipos de drogas (lícitas e ilícitas), o que indica serem os usuários abordados basicamente poliusuários (com grande frequência de uso conjunto de crack e diversas substâncias ilícitas, além de álcool e tabaco, estes últimos drogas lícitas e de consumo mais disseminado). As combinações de diferentes drogas podem demarcar subgrupos, com características específicas. Por exemplo, usuários de zirrê (crack polvilhado sobre cigarros de maconha) que consumiam o produto à parte nas cenas, sem se misturar com os “cracudos”, ou usuários pesados da pedra.

Entre os grupos observados, tivemos registros de mulheres grávidas nas cenas, assim como a presença de adolescentes e crianças nessas localidades, eventualmente consumindo drogas. Está em discussão nesse momento a polêmica internação compulsória de adultos usuários de crack no Rio de Janeiro. A medida já vale para menores de idade desde maio do ano passado, o que levanta debates ainda mais intensos, uma vez que se contrapõe frontalmente à legislação vigente (Estatuto da Criança e do Adolescente).
Ações recentes dos governos estaduais e municipais, como a implantação de novas UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) e intervenções da saúde e assistência social, contribuíram drasticamente para a dispersão das aglomerações de usuários encontradas nas localidades do estudo, algumas delas situadas exatamente em áreas hoje ocupadas por UPPs.

O cenário atual do crack no Rio de Janeiro é marcadamente distinto daquele observado à época do mapeamento inicial (primeiro semestre de 2011), o que explicita uma intensa dinâmica das cenas de uso de crack. Atualmente, o que se percebe é que há uma dispersão dos usuários em cenas menores pela cidade, muito embora grupos maiores possam ser encontrados hoje em alguns lugares, geralmente vagando de um lado para o outro, ainda que mantendo as mesmas características encontradas nesse estudo. Estudos mais aprofundados se fazem necessários para melhor compreensão da complexa dinâmica dessa população no contexto de uma politização e judicialização crescentes da questão.

Por outro lado, equipamentos e instituições como postos de saúde, ONG´s, escolas, igrejas, associações de moradores foram encontrados no entorno da maioria das cenas, o que representa um capital, em termos de recursos, pouquíssimo utilizado, mas que devem ser mais bem explorados por estudos e intervenções futuras, pois são essenciais ao desenvolvimento de atividades de campo, assim como de ações de saúde e serviço social.

De que maneira o senhor acredita que as políticas públicas devem atuar para mudar o cenário do consumo de crack em nosso país?

Linhares: Para enfrentar um problema tão complexo como o crack, é necessário pensar ações estratégicas, informadas por múltiplas abordagens. Estas devem contemplar, além de tratamento de saúde, iniciativas de informação e educação preventiva. A melhor maneira de enfrentar o crack é conhecê-lo e evitá-lo.

A questão do crack e outras drogas no município do Rio de Janeiro é candente e as soluções implementadas até o momento não parecem ter sido capazes de controlar ou diminuir o problema. Politiza-se um debate que deveria se pautar pelas evidências empíricas que vêm sendo produzidas recentemente (ainda que caiba sempre lamentar a real escassez de dados em momentos anteriores). Esta pesquisa representa uma modesta contribuição para trazer à tona o problema sob uma perspectiva vista com base em informações objetivas, que podem vir a subsidiar futuras estratégias para o enfrentamento do crack e minimização dos riscos e danos para os seus consumidores e a sociedade. 

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