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21/12/2007

Pesquisador lembra os 20 anos do isolamento do HIV no Brasil

Antonio Brotas


A década de 80 ainda não tinha terminado. Em meio à euforia que tomava conta do país, da efervescência em função do final de um longo período de ditadura militar, a Aids aparecia como um desafio para todos. Políticos, cientistas e a sociedade ainda não sabiam muito bem como lidar com a doença, até então caracterizada como típica de grupos considerados “de risco”. Uma equipe de pesquisadores do Instituto Oswaldo cruz (IOC) da Fiocruz percebeu a dimensão do problema e aceitou o desafio de isolar o vírus HIV no país, pondo o Brasil definitivamente no circuito mundial de pesquisa em Aids. Liderando o grupo estava o pesquisador Bernardo Galvão, que conta, em entrevista, como foi aquele episódio, que completou agora 20 anos. Atualmente na Fiocruz Bahia, Galvão também esteve à frente do processo de construção de uma rede de laboratórios responsáveis pela caracterização do HIV em diversas regiões do país. Para ele, na memória fica o exemplo de como uma instituição como a Fiocruz, por estar preparada, soube responder a uma demanda de saúde.


 Galvão dá palestra no evento que lembrou os 20 anos do isolamento do HIV no Brasil (Foto: Peter Ilicciev)

Galvão dá palestra no evento que lembrou os 20 anos do isolamento do HIV no Brasil (Foto: Peter Ilicciev)


Passados 20 anos, o que representou o fato de a equipe liderada pelo senhor ser a primeira a isolar o HIV no Brasil?

Bernardo Galvão:
Bem, eu acho que representou o envolvimento da Fiocruz na luta de combate e controle da epidemia causada pelo HIV/Aids. Eu acho que a coisa mais importante que ocorreu naquele momento foi a implantação, nos bancos de sangue, da triagem sorológica do HIV. A Fiocruz proporcionou, pelo menos, essa implantação nos bancos de sangue. Isso sim corresponde a uma importante contribuição para a saúde pública, para a saúde de uma forma geral. Naquele momento foi possível dar essa reposta porque se instalou imediatamente a triagem sorológica nos bancos de sangue, evitando a contaminação, o que seria, caso não fosse evitado, uma catástrofe.


Aquele momento teve impacto efetivo na realidade social em relação a Aids. Mas o que significou o isolamento do vírus para a ciência?

Galvão:
O isolamento do vírus não foi uma realização científica importante. Para isolar aquele vírus, qualquer laboratório de imunologia que contasse com técnica de isolamento de linfócitos poderia fazer, mesmo no Brasil. Mas foi um marco simbólico da pesquisa no Brasil. Por que faltavam alguns insumos, não para cultivar o vírus, mas para identificá-lo. E aí nós conseguimos esses insumos por meio de cooperação internacional ou por pesquisadores da própria Fundação que trouxeram esses insumos.


Isso significa que a cooperação internacional foi decisiva?

Galvão:
Em 1984-85 os países do Primeiro Mundo já estavam com o vírus isolado. Tínhamos propostas de colaboração, que naquela época denominávamos de “pesquisa safári”, ou seja, nossa participação seria colher o sangue e enviar para o exterior e depois ter os resultados. Seria ótimo para os nossos currículos, do ponto de vista pessoal, mas preferimos demonstrar que éramos capazes de isolar o vírus sem recorrer a esse tipo de colaboração. Afinal, a colaboração é importante quando traz benefícios mútuos. A equipe era capaz de isolar o HIV, faltava apenas o insumo. Preferimos criar essa condição.


Que contexto era aquele, que dificultava a aquisição dos insumos?

Galvão:
Não tínhamos antígenos. Foi graças a essas colaborações internacionais que conseguimos. Destaque para os virologistas Peggy e Hélio Pereira, ambos de nacionalidade inglesa, sendo que ele era brasileiro de nascimento.


Então eram ações individuais, sem interferência (ou apoio) do governo?

Galvão:
Algumas passaram pelo Estado porque os pesquisadores representavam o Estado. Na verdade existem vários programas de governo, mas o Programa Nacional de Aids foi implantado devido à ação da sociedade civil organizada, que pressionou o governo, visto que o que existia no exterior repercutia no país. A Aids, no início, atingia pessoas de classe média alta nos Estados Unidos e na Europa. Mas na África descobriu-se que havia transmissão heterossexual. Nos países do Ocidente a Aids tinha um perfil que atingia, principalmente, indivíduos com determinados comportamentos de risco, como os homossexuais/bissexuais masculinos, os usuários de drogas injetáveis e indivíduos que eram forçados a tomar sangue, como os hemofílicos. Além disso, a Aids atingia pessoas de grande prestígio no mundo artístico, intelectuais e formadores de opinião.


Houve, de certa forma, uma parceria forte entre a comunidade científica e a sociedade civil organizada?

Galvão:
Isso tudo ocorreu. Pesquisadores e formadores de opinião fizeram com que o governo criasse um programa para combater a epidemia. O que é um exemplo fantástico de como a sociedade civil pode pressionar o governo. A Aids tem características que permitem isso. Está relacionada com o sexo, com a morte. As pessoas sabiam que se a contraíssem poderiam morrer. Milhares morreram e isso trouxe uma comoção social muito grande.


O isolamento foi, na verdade, um grande triunfo simbólico?

Galvão:
Sim. Mas com isolamento do vírus o Brasil obteve reconhecimento no cenário intencional e foi, então, convidado a participar de comitês internacionais. Participamos de uma experiência bem interessante de redes de pesquisas, já naquela época. E tivemos a oportunidade de participar de uma rede internacional de laboratórios, coordenada pela OMS e do Programa Mundial de Aids, que foi uma grande experiência. Os pesquisadores do mundo todo reunidos para combater um mal maior. Com isso foi possível conhecer, rapidamente, os diferentes subtipos do HIV que circulavam em diversos países.


Esse fator, apesar de não ter sido um grande feito em termos científicos, foi capaz de acelerar os processo de descobertas?

Galvão:
Com certeza foi capaz. Verificamos que a rede internacional de laboratórios, implantada em 1991, não contemplaria a caracterização do vírus em todos os estados do Brasil, mas apenas em determinados lugares, como Rio, São Paulo e Belo Horizonte. Então,  imediatamente propusemos a criação de uma rede nacional e contamos com apoio do Ministério da Saúde e da Organização Mundial de Saúde. Era uma rede inspirada na sua similar internacional. A rede foi implantada em março de 1993. Trabalhos dessse grupo possibilitaram a caracterização de uma maior quantidade de vírus que circulavam em diferentes regiões do país. Este é um exemplo de rápida transferência de tecnologia e conhecimento que só ocorreu devido à excelente qualificação dos pesquisadores brasileiros.


Como essa experiência ocorrida há 20 anos serve de modelo para pensar o hoje? Que exemplos ela nos dá para enfrentar outras epidemias/doenças emergentes?

Galvão:
Acredito que devemos reforçar continuadamente a infra-estrutura institucional. Por exemplo, no final da década de 70, início dos anos 80, a Fiocruz obteve recursos da ordem de US$ 1 milhão, resultante de um projeto aprovado pelo programa TDR (sigla em inglês de Tropical Disease Research) da OMS. Este projeto possibilitou a implantação de um centro de imunologia parasitaria na Fiocruz. Investimos também num plano de formação de pessoal, de curto e longo prazos, e dotamos esse centro de toda a infra-estrutura, igualando-o aos melhores laboratórios do mundo, tornando-se um pólo de atração para pesquisadores, principalmente recém-doutores que estavam retornando ao Brasil. Para a elaboração deste projeto contamos com a colaboração do professor Paul Henri Lambert, meu orientador de doutorado.


Houve então um acúmulo de experiência...

Galvão:
Sim. O que a gente propõe para que um país como o nosso possa se preparar para enfrentar doenças emergentes é equipar seus laboratórios, ter uma boa infra-estrutura e projetos bem planejados. É preciso também fazer “animação”, ou seja, estimular, e possibilitar a atualização continuadamente da equipe de trabalho.


A partir daí foi mais fácil montar a rede de laboratórios?

Galvão:
Isso tudo se desdobrou em uma rede, que transcendeu a Fiocruz, envolvendo pesquisadores de todo o Brasil. Vários laboratórios participaram desse esforço nacional de isolamento e caracterização do HIV, trazendo uma visibilidade muito grande da pesquisa feita em Aids no Brasil. Porque, com a formação da rede, pôde-se rapidamente dar resposta e fazer pesquisa de boa qualidade e comprometida com a saúde pública. O que possibilitou a publicação de diversos trabalhos. Os pesquisadores que participaram do programa foram os mais citados, trabalhando ou vivendo na América Latina ou Caribe, entre 1999 e 2005.


Quais são os desafios para a pesquisa com Aids no Brasil e no mundo?

Galvão:
A vacina é sempre um desafio porque a infecção causada pelo HIV apresenta uma fase crônica assintomática e de transmissão sexual. A infecção é de difícil controle. Por isso uma vacina eficaz seria a solução. Infelizmente varias tentativas de obtenção de vacinas foram infrutíferas. O outro desafio é a busca de drogas que possam realmente erradicar a infecção. Eu acho que o terceiro ponto mais importante é reforçar os programas de prevenção. Você tem que sensibilizar as pessoas. Embora a disseminação do HIV no Brasil tenha diminuído, os índices de contaminação entre os jovens aumentaram. Que isso significa? Uma das razões para justificar isso é que os jovens não viveram o momento trágico da Aids. Antes as pessoas conheciam alguém que tinha sido vítima da Aids. Isso causava um certo temor. Vejo que o grande desafio é descobrir como sensibilizar essas pessoas sobre a doença.


Como o senhor avalia a atuação dos pesquisadores que participaram do trabalho naquele momento do isolamento do vírus?

Galvão:
 O entusiasmo dos pesquisadores foi muito grande. Porque em um determinado momento você tinha preconceitos das pessoas lá fora e de outras do próprio laboratório. Tinham medo de trabalhar com algo desconhecido. Na realidade, não precisávamos ser visionários para perceber que o HIV/Aids se tornaria uma pandemia, envolvendo todos os paises. Sabíamos que o HIV se disseminaria rapidamente. A rápida resposta do Brasil em relação ao controle do HIV/Aids deveu-se ao comprometimento institucional dos servidores da Fiocruz. A instituição está acima dos indivíduos, o que possibilita enfrentar essas terríveis epidemias. Isso é espetacular, contribui para a perenização de uma instituição centenária, que é vanguarda na luta para a melhoria da saúde da população nacional.

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