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17/10/2008

Primeira vacina veterinária desenvolvida e fabricada no Brasil completa 100 anos

Oswaldo Godoy


Em 2008 comemora-se o centenário da primeira patente registrada pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC): a da vacina contra o carbúnculo sintomático ou peste da Manqueira, desenvolvida por técnica original pelo cientista Alcides Godoy. Foi a primeira vacina veterinária desenvolvida no Brasil e o primeiro produto comercializado pelo IOC. Seu sucesso comercial rendeu ao Instituto, durante cerca de 30 anos, uma expressiva renda própria, crucial para o projeto de Oswaldo Cruz de transformar o instituto por ele dirigido num prestigioso centro de produção, pesquisa e ensino em medicina experimental.


 Alcides Godoy na biblioteca de Manguinhos (Fotos do Arquivo Pessoal de Oswaldo Godoy) 

Alcides Godoy na biblioteca de Manguinhos (Fotos do Arquivo Pessoal de Oswaldo Godoy) 


Alcides Godoy nasceu em Campinas, em 7 de janeiro de 1880, filho de Francisco Xavier de Morais Godoy e Anna Pureza de Campos Godoy, fazendeiros de café. Na mesma cidade, cursou o preparatório, no Colégio Culto À Ciência. Temendo a febre amarela, que assolava a cidade do Rio de Janeiro ao final do século 19, iniciou seus estudos na Faculdade de Medicina da Bahia; na expectativa de que uma estadia em Salvador produzisse imunidade para aquela doença. Depois de uma breve interrupção no curso, devido a dificuldades financeiras produzidas pela crise na produção cafeeira, Godoy seguiu para a capital federal, ingressando na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde se formaria em 1903, obtendo o grau de doutor, em dezembro de 1904, com a tese Electrodiagnostico.


Assim que chegou ao Rio, residiu em uma república de estudantes na Rua do Riachuelo, no Centro da cidade. A fim de prover meios para sua subsistência, incorporou-se, como flautista, à Companhia Lírica Emílio Billoro e com ela percorreu o Brasil. Em 1903, ainda estudante, ingressou, como auxiliar acadêmico, no Serviço de Profilaxia da Febre Amarela, criado em abril daquele ano no âmbito da Diretoria Geral de Saúde Pública, dirigida por Oswaldo Cruz (que também era diretor técnico do Instituto Soroterápico Federal, futuro IOC). Neste mesmo ano, Godoy foi recrutado, por Oswaldo Cruz, para ir trabalhar no IOC e pouco tempo depois foi nomeado auxiliar técnico deste instituto, para trabalhar na produção de soros e vacinas.


Em 1905, começou a estudar a produção de uma vacina contra a manqueira, também conhecida como doença do gado ou mal do ano. Pecuaristas de Minas Gerais haviam solicitado um imunizante contra essa epizootia, que dizimava cerca de 40% de seu gado jovem, e que grassava também em outros estados do país e em vários países da América do Sul.


Na década de 1880, a manqueira havia sido definida como carbúnculo sintomático, causada por um  microorganismo anaeróbio, o Clostridium chauvei. Ainda nessa década, Arloing, Cornevin e Thomas buscaram atenuar o germe para produzir uma vacina, mas os resultados não foram satisfatórios. No Brasil, J. Batista Lacerda também tentou, sem sucesso, a fabricação do produto. Pelos menos desde a década de 1890, Oswaldo Cruz interessou-se pelo carbúnculo sintomático, adquirindo o livro de Arloing, Cornevin e Thomas, Le Charbon symptomatique du boeuf (editado em 1887). Esta obra seria, mais tarde, ofertada por Oswaldo Cruz a Alcides Godoy. Conforme Alcides Godoy, o objetivo de Oswaldo Cruz era não somente preparar uma vacina, mas “fazer o estudo científico da moléstia, estando a parte bacteriológica apenas iniciada e limitada a seu diagnóstico microscópico (apud Taveira)".


Os primeiros ensaios feitos em Manguinhos não permitiram o isolamento do germe anaeróbio causador da epizootia. Carlos Chagas estabeleceu contato com fazendeiros mineiros e um novo material para estudo foi fornecido pelo médico Hernenegildo Villaça (fazendeiro da região de Juiz de Fora), que  sempre  interessou  muito  pelas pesquisas  a  propósito da  peste  da  manqueira. O material veio para Manguinhos por intermédio de Ezequiel Dias, que também fazia parte do grupo de auxiliares técnicos do Instituto.


 Alcides Godoy em documento italiano. O cientista fez três viagens de estudos à Europa

Alcides Godoy em documento italiano. O cientista fez três viagens de estudos à Europa


Henrique da Rocha Lima, pesquisador e “braço-direito” de Oswaldo Cruz, usando técnica aprendida durante sua estadia na Alemanha, realizou a cultura do material e obteve colônias anaeróbicas. Nas palavras de Godoy, “os tubos de cultura me foram entregues e constituíram o início dos estudos por mim continuados até a descoberta da vacina”.


A originalidade do processo desenvolvido por ele residia na utilização de um meio de cultura especial para bactérias anaeróbicas, na qual a glicose tinha papel preponderante. Dessa forma, Godoy obteve uma “raça” diferenciada de bactérias de virulência atenuada, o que permitiu o uso da vacina com o germe vivo. Logo que foram confirmadas, em laboratório, as propriedades vacinantes de suas culturas, Godoy viajou, em 1906, para Juiz de Fora, em companhia de Rocha Lima e Carlos Chagas, para executar os testes finais. A primeira demonstração pública da vacina, entretanto, não obteve o resultado esperado, e alguns animais faleceram. Retornando a Manguinhos, os pesquisadores determinaram a causa do insucesso: uma maior virulência do lote da vacina preparada para o teste. Corrigida a falha, novas inoculações foram, então, “coroadas do mais satisfatório resultado, desde então jamais desmentido...”.


A vacina contra a manqueira começou a ser distribuída e vendida já em 1906. Ela imunizava o gado com uma só aplicação. Na exposição de demografia e higiene realizada de Berlim, em junho de 1907, na qual o Instituto obteve a medalha de ouro, a vacina da manqueira foi um dos destaques selecionados, dentre os produtos fabricados para representar as atividades do IOC.


A premiação em Berlim foi determinante para que o Ministério da Justiça e Negócios Interiores aprovasse um novo regulamento, proposto por Oswaldo Cruz, visando expandir de modo expressivo as atribuições do Instituto, que passaria a gozar de considerável autonomia administrativa e financeira, sendo esta última garantida, principalmente, pela renda advinda da venda da vacina na manqueira. Tais recursos, que permitiam ao Instituto não depender apenas do orçamento governamental, foram fundamentais para contratar novos pesquisadores e, assim, ampliar o quadro de pessoal da instituição.


O próprio Oswaldo Cruz, em função da repercussão e da originalidade do processo desenvolvido por Godoy, aconselhou-o a patentear em seu nome a invenção. A carta patente nº 5.566 foi obtida em 24 de novembro de 1908. A publicação no Diário Oficial se deu em 6 de dezembro daquele ano. Ainda em 1908, cedeu, por escritura pública, ao Instituto Oswaldo Cruz, representado por seu diretor Oswaldo Cruz, os direitos de exploração comercial do seu privilégio de invenção (a vacina contra a manqueira).


No mesmo ano de 1908, Godoy publicou, com a colaboração de Gomes de Faria (que havia sido recentemente contratado pelo IOC), um trabalho analisando as variáveis no meio de cultura que poderiam ter causado a maior virulência da vacina responsável pelos problemas em Juiz de Fora, confirmando-se que a concentração da glicose havia sido a responsável pela redução da virulência da vacina (aspecto que havia sido identificado e solucionado por Godoy naquela ocasião, em 1906).


Além de dedicar-se ao tema da manqueira, como sua atividade principal, Godoy desenvolvia outras atividades – como era de praxe entre todos os pesquisadores de Manguinhos –, como a produção dos soros antidiftérico e antitetânico, e na dosagem do soro antipestoso. Com Astrogildo Machado, desenvolveu, em 1918, outra importante vacina produzida e comercializada pelo IOC, contra o carbúnculo hemático.


Outra frente importante de trabalho de Godoy em Manguinhos foi a criação de diversos dispositivos e aparelhos para facilitar e aperfeiçoar os procedimentos de produção, como o “frasco Dr. Godoy”, desenvolvido por ele para facilitar a coleta de mosquitos pelos “mata-mosquitos” que atuavam nas campanhas sanitárias.


Numa época em que as atividades de produção, ensino e pesquisa eram realizadas de modo bastante conjugado pelos pesquisadores, Godoy foi também professor do curso de aplicação do Instituto, criado em 1908 para oferecer treinamento experimental nas áreas de microbiologia e zoologia médica.


Godoy fez três viagens de estudo à Europa. Em 1912, foi enviado aos Laboratórios de Leipzig, na Alemanha, a fim de acompanhar pesquisas concernentes a questões de físico-química aplicada à ciência médica. Em 1919, permaneceu quatro meses na Europa; foi designado para esta viagem a partir da solicitação, feita a Manguinhos pela representação diplomática inglesa, para que algum médico embarcasse num navio inglês aportado no Rio cujo médico de bordo havia adoecido. Esta foi, conforme relatou certa ocasião, a única vez que exerceu a clínica médica. Finalmente, em 1925, esteve na Itália acompanhando Carlos Chagas no 1º Congresso de Malariologia, realizado em Roma, e para estudar os modernos processos de profilaxia da malária empregados naquele país.


Integrante do chamado “jardim da infância da ciência”, como Oswaldo Cruz carinhosamente chamava o grupo inicial de pesquisadores de Manguinhos, Godoy sempre gozou da confiança e apreço tanto de Cruz quanto de seu sucessor, Carlos Chagas, substituindo-os, várias vezes, em suas ausências, na direção do instituto.


Em 1923, Carlos Chagas solicitou ao Ministério da Justiça a renovação da patente da vacina da manqueira por mais 15 anos. Foi o segundo produto que obteve no Brasil a renovação da Patente, fato só obtido anteriormente pela Fornicída Matarazzo. Em 1937, como conseqüência da reforma implementada por Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde (criado em 1930, no âmbito da Revolução de 1930), foi vedada ao IOC a fabricação e comercialização desse e outros produtos veterinários.


Em 26 de junho de 1938, Godoy e Machado pediram o registro da marca genérica para produtos veterinários Manguinhos. Suas famílias fundaram em 25 de janeiro de 1939, uma firma que se chamou Produtos Veterinários Manguinhos Ltda, para fabricar e comercializar a vacina da manqueira, do carbúnculo hemático, e posteriomente a vacina contra a pneumoenterite dos porcos. O primeiro lugar em que estabeleceram o laboratório foi em prédio nos fundos do Hospital Gaffrée Guinle, na Rua Silva Ramos 20. Tiveram por muitos anos escritório na Rua Uruguaiana 33. Na década de 40 construíram um laboratório na Rua Licinio Cardoso 91 (hoje Rua Francisco Manuel), em Benfica.


Godoy casou-se com Dulce Leite de Castro em 5 setembro de 1923 e tiveram dois  filhos: Oswaldo Tarcisio, que veio a se formar em Química Industrial e Engenharia Química e Margarida Maria, que estudou musica, tocava piano e estudou na Europa. Faleceu em 30 de janeiro de 1950, aos 70 anos. Na década de 60 a família Godoy saiu da sociedade, que ficou com a família de Machado. A firma, que continua a fabricar a vacina da manqueira, foi vendida recentemente pelos seus descendentes e pertence hoje à empresa Bravet.


Fontes


Taveira, A. A. Resumo histórico da vacina contra o carbúnculo sintomático (peste da  Manqueira), 26/10/1944. Fundo Instituto Oswaldo Cruz, seção Serviço de Administração, série Administração Geral, caixa 13, maço 2. O documento está arquivado na Casa de Oswaldo Cruz.


Aragão, Henrique de B.  Notícia histórica sobre a fundação do Instituto Oswaldo Cruz. Separata das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, vol. 48, março de 1950, (citadas as  páginas 14, 25, 26. Nas Memórias é o 1º artigo, o de abertura).


Magalhães, Octavio de. Alcides Godoy. Memórias  do Instituto Oswaldo Cruz, v. 49, março de 1951, páginas 1 a 4.


Microfilme do 3º Ofício de Títulos e Documentos do Rio e Janeiro - cartório do tabelião Evaristo do Valle de Barros. Escritura de cessão de direitos lavrada no dia 11 de dezembro de 1908, no livro 805, fl 21v e 22 - Arquivo Nacional.


Publicado em 15/10/2008.

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