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04/07/2023

Projeto da COC/Fiocruz dá visibilidade aos acervos de mulheres

Karine Rodrigues (COC/Fiocruz)


Dois dias após o Daily Herald noticiar a première do filme A hard day’s night, realizada com a presença dos Beatles e de 20 mil fãs, no The London Pavilion, o diário britânico deu meia página para falar sobre outro evento na cidade, mas de natureza científica. Segundo a reportagem, 2 mil especialistas de 65 países, “com propósito elevado”, estavam reunidos no 12º Congresso Internacional de Entomologia, interessados, principalmente, no combate a doenças transmitidos por insetos. A única fotografia da matéria mostrava, em primeiro plano, a pesquisadora brasileira Dyrce Lacombe de Almeida, que apresentaria um trabalho sobre sistema traqueal de insetos. À época, ela estava às voltas com estudo de “barbeiros”, transmissores da doença de Chagas.  

Projeto visa ampliar a visibilidade de acervos de mulheres e também estimular a doação (arte: Elias Sousa) 

 

A edição do Daily Herald de 9 de julho de 1964 é um dos 4.209 objetos digitais que agora estão disponíveis para consulta pública na Base Arch, repositório de informações sobre o acervo arquivístico permanente da Fiocruz, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). Eles integram o projeto Mulheres na ciência e na saúde: digitalização e difusão dos arquivos pessoais de mulheres do acervo da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, selecionado no ano passado para receber financiamento do Programa Iberarquivos, criado em 1998 no âmbito das Conferências Ibero-americanas de Chefes de Estado e de Governo e que reúne 16 países. É uma iniciativa de cooperação e integração para o fomento ao acesso, organização, descrição, conservação e difusão do patrimônio documental. 

“Pretendemos com isso ampliar a visibilidade desses acervos pessoais, cujas produtoras são mulheres, e também estimular a doação”, observa Felipe Almeida Vieira, chefe do Serviço de Arquivo Histórico do Departamento de Arquivo e Documentação (DAD) da Casa de Oswaldo Cruz e supervisor do projeto, iniciado em setembro do ano passado. Apenas 10 dos 97 fundos e coleções pessoais sob a guarda da instituição são de mulheres. O baixo percentual expressa a histórica baixa representatividade feminina no campo das ciências e revela que os arquivos doados a instituições de memória documentam, em maioria, de trajetórias masculinas. Além de Felipe, o projeto, elaborado por Aline Lacerda e Luciana Heymann, pesquisadoras da Casa, e coordenado pela chefe do DAD, Ana Roberta Tartaglia, contou com a equipe do Laboratório de Fotografia e do Serviço de Conservação e Restauração de Documentos do departamento e bolsistas contratados com recursos do Iberarquivos. 

Dyrce Lacombe no Congresso Internacional de Entomologia, em 1964 (fonte: Acervo Fiocruz)
 
 

Com foco na digitalização e na difusão de acervos, a iniciativa ganhou destaque no repositório, com a produção de uma página específica, onde o usuário vai encontrar o resumo do projeto, a foto, a minibiografia de cada uma das dez mulheres que atualmente integram os acervos pessoais sob a guarda da Casa e a quantidade e o gênero documento digitalizado que consta em cada um dos referidos fundos ou coleções. No total, há 2.868 documentos iconográficos, 1.338 documentos textuais e 3 documentos cartográficos. “As existências dessas dez mulheres têm relação com temas importantes para a pesquisa em história das ciências biomédicas e das ciências sociais, além de iluminar aspectos da educação sanitária e da atuação de enfermeiras em cenários de guerra”, diz o texto. 

Além do acervo de Dyrce, estão disponíveis no repositório fundos e coleções de Alda Lima Falcão (1925-2019), Alina Perlowagora-Szumlewicz (1911-1997), Dely Noronha de Bragança Magalhães Pinto, Elizabeth Leeds, Hortênsia Hurpia de Hollanda (1917-2011), Maria Cristina Fernandes de Mello, Maria José von Paumgartten Deane (1916-1995), Sarah Hawker Costa e Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero (1917-2023). Nem todos o material de cada acervo foi digitalizado na íntegra, pois há documentos sensíveis e com restrição de acesso. 

O projeto, destaca Ana Roberta, promoveu uma integração maior entre os serviços de conservação e digitalização, sistematizando um processo no qual todo documento passa pela conservação antes de ser transformado em objeto digital. Da pandemia para cá, o número total de objetos digitais na página dos acervos arquivísticos saltou de 12 mil para 18 mil mas ainda há muito a ser feito, segundo ela, chamando atenção para o fato de que esse processo exige tempo.  

“Ao digitalizar um acervo estamos, de certa forma, criando um novo acervo a partir de um acervo físico já existente. E esse novo acervo também precisa ser preservado, também tem suas características técnicas e de organização, também precisa de equipamentos e de recursos humanos especializados na preservação e na captura de objetos digitais. Portanto, não é uma tarefa simples. Não se resume a colocar os itens no scanner. É necessário garantir a disponbilidade desses materiais digitalizados para o público e também realizar manutenções adequadas para preservá-los ao longo do tempo", detalha.  

Hortênsia de Hollanda é a primeira mulher, do lado esquerdo (fonte: Acervo Fiocruz)
 
 

Estudo realizado no acervo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), no período entre 1930 e 1970, localizaram à época 130 mulheres exercendo diversas atividades na instituição cientifica. “Do ponto de vista metodológico, o artigo demonstrou o potencial do acervo arquivístico da Fiocruz, mostrando como é possível dar visibilidade à presença de mulheres, tal como verificamos no IOC”, diz o artigo dos pesquisadores da Casa Nara Azevedo, Luiz Otávio Ferreira e Daiane Rossi, publicado em 2020, na Acervo, revista do Arquivo Nacional. 

Por dentro dos acervos  

Referência nacional e internacional no estudo das cracas e na área de entomologia, o Fundo Dyrce Lacombe reúne o maior número de objetos digitais do projeto. Zoóloga, especialista na histologia de invertebrados, ela possui uma vasta documentação, com fotografias, cartas, desenhos científicos, trabalhos de laboratório e de expedições científicas, além de registros da vida pessoal. A troca com pesquisadores internacionais também está expressa no material da pesquisadora carioca. 

Desenhos científicos também fazem parte do Fundo Dely Noronha, que ingressou como estagiária no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), em 1963. A parasitologista carioca construiu sua trajetória na instituição atuando, por exemplo, no Seção de Bacteriologia, na Coleção de Diptera, e no Laboratório de Helmintos Parasitos de Vertebrados.  

Leônidas e Maria Deane nas andanças pelo país (fonte: Acervo Fiocruz)
 
 

Na coleção de Maria Deane, que desenvolveu pesquisas juntamente com o marido, Leônidas Deane (1914-1993), nas áreas de parasitologia e entomologia, há exclusivamente documentos iconográficos de traz registros valiosos de expedições científicas realizadas pelo país. Com mais de 150 artigos publicados, a paraense, formada em Medicina e Cirurgia, realizou estudos sobre leishmaniose visceral, atuou no Serviço de Estudos de Grandes Endemias e no Serviço de Malária do Nordeste. No IOC, exerceu as funções de chefe do Departamento de Protozoologia, vice-diretora e chefe do Laboratório de Biologia de Tripanossomas (1992-1995). 

Assim como Maria Deane, a cientista polítca norte-americana Elizabeth Leeds foi parceria de trabalho do marido, o antropólogo Anthony Leeds (1925-1989). Eles se conheceram no Rio de Janeiro, na década de 1960, e foram os primeiros a fazer, empiricamente e nas favelas, um contraponto às teorias da cultura da pobreza e da marginalidade. Os documentos digitalizados tratam, principalmente, sobre segurança pública e direitos humanos. Por telefone, de Boston (EUA), onde mora, Elizabeth elogiou a iniciativa e lembrou da confiança que tem no trabalho da Casa de Oswaldo Cruz. “Eu doei parte do acervo do meu marido para a instituição”, destacou ela, que é cofundadora e presidente honorária do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, criado em 2005, e pesquisadora Associada no Centro de Estudos Internacionais do Massachusetss Institute of Technology (MIT). 

No período em que trabalhou no programa da Fundação Ford para governança e sociedade civil no Brasil, Elizabeth conheceu a britânica Sarah Hawke Costa. Doutora em saúde pública, com tese sobre os determinantes e consequências do aborto induzido no Rio, ela foi professora e pesquisadora titular do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos da Escola Nacional de Saúde Pública. “Acho fantástica a iniciativa, mas estou chocada que tenham arquivos de apenas 10 mulheres”, observou em entrevista por telefone, de Nova York, onde mora. Ela segue atuando na área de gênero, como diretora-executiva da Womens Refugee Comission. O acervo dela reúne documentos textuais que tratam, principalmente, de direitos reprodutivos e epidemiologia.  

No Fundo da cearense Alda Lima Falcão, há fotografias, desenhos científicos e documentos sobre a atuação da cientista, como os estudos relativos ao inseto transmissor da leishmaniose. Ela trabalhou no Serviço de Malária do Nordeste (1939-1942), no Serviço Nacional de Malária (1942-1956) e no Instituto Nacional de Endemias Rurais (1956-1975), que a partir de 1976 passou a fazer parte da Fiocruz.  

Na coleção de Alina Perlowagora-Szumlewicz, polonesa que chegou ao país em 1943, após perseguição nazista aos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, há muitos documentos iconográficos relacionados a pesquisas sobre febre amarela, malária e esquistossomose e doença de Chagas. Também rico no gênero iconográfico é o Fundo Hortênsia de Hollanda, da mato-grossense, especialista em saúde pública e em educação em saúde, que atuou no Departamento de Endemias Rurais, consultora da Organização Mundial da Saúde (OMS) para programas de erradicação e controle de doenças em vários países e foi diretora da Divisão Nacional de Educação Sanitária do Ministério da Saúde. 

O Fundo Virgínia Portocarrero traz grande número de registros da experiência dela como enfermeira voluntária da Força Expedicionária Brasileira (FEB) durante a Segunda Guerra Mundial, como cartas, fotografias e um diário. A coleção de Maria Cristina Fernandes de Mello, primeira chefe do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Casa de Oswaldo Cruz, traz registros da obra de restauração do Castelo de Manguinhos, que ela coordenou. Entre eles, cartografias de grandes dimensões, de mais de um metro e meio de altura. 

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