02/03/2015
No último sábado (28/2) celebrou-se o Dia Mundial das Doenças Raras. A razão da data é curiosa. É sempre comemorado no último dia de fevereiro. Como você sabe, fevereiro pode ter 28 ou 29 dias (quando é ano bissexto). Assim, um dia raro! Para que lembremos de pessoas raras! Não tão raras assim. Estima-se que existam entre 6 mil e 8 mil doenças raras. O Ministério da Saúde considera que doença rara seja aquela que acomete até 65 pessoas a cada 10 mil habitantes. A União Européia caracteriza doença rara como aquela doença que coloca em risco a vida do paciente ou é cronicamente debilitante e cuja prevalência é tão baixa (menos de cinco casos em cada 10 mil habitantes) que aconselha esforços conjuntos visando prevenir morbidade significativa ou mortalidade precoce ou perinatal ou mesmo redução expressiva da qualidade de vida ou potencial sócio-econômico.
Dentre todas as doenças raras, 80% têm base genética, envolvendo um ou muitos genes ou anormalidades cromossômicas. Tomadas individualmente, tais doenças são, de fato, pouco prevalentes. No entanto, quando consideradas em conjunto, elas passam a ser frequentes, o que as transforma em um verdadeiro problema de Saúde Pública e mais recentemente objeto de políticas globais abrangentes, e não focalizadas em uma ou outra doença. Constatou-se que os portadores de doenças raras experimentam problemas comuns, o que permite o desenho de ações mais racionais na promoção dos direitos desta parcela até então esquecida da população mundial.
Desde o final de 2014, o Brasil dispõe de uma “política nacional de atenção integral às doenças raras”. Quase integral. De fora, ficaram os medicamentos específicos para seu tratamento, na maioria dos casos de alto custo, por razões intrínsecas à lógica implacável dos mercados. Poucos clientes e alto custo de produção igual a preços altos! Não raro, a obtenção de muitos medicamentos necessários à manutenção da sobrevivência destes pacientes será buscada na Justiça, em fenômeno que ficou conhecido como “judicialização da saúde”.
A 11ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) da Organização Mundial de Saúde (OMS), com divulgação prevista para 2017, já deverá apresentar códigos de classificação para uma grande variedade de doenças raras, visando aprimorar sua rastreabilidade nos sistemas de informação em saúde. Atualmente, apenas cerca de 200 delas estão presentes na CID-10, em vigor. Desta forma, a OMS estará sinalizando ao mundo que, apesar do adjetivo “raras” a elas imposto, são estatisticamente significativas em seu conjunto, o que recomenda a formulação de políticas públicas visando seu diagnóstico, prevenção e tratamento. Hoje, infelizmente, para os pacientes, estas doenças que, por incrível que possa parecer, eles precisam lutar para ter (diseases that we fight to get). Só então, a partir daí, eles se tornam visíveis para os sistemas públicos de saúde.
No Brasil, o tema “doenças raras” parece ganhar relevo no ano de 2009 com a realização do I Congresso Brasileiro de Doenças Raras, em São Paulo, com o patrocínio da Fundación Gêiser (Argentina) e apoio do então vereador Ushitaro Kamia (DEM-SP). Esta reunião antecede a participação de delegação brasileira na VI Conferencia Internacional sobre Doenças Raras e Medicamentos Órfãos, realizada em Buenos Aires, em março de 2010. Também em 2010, mais precisamente no dia 28 de fevereiro, foi realizada em São Paulo a Primeira Caminhada de Apoio ao Portador de Doenças Raras, com a chancela da Secretaria Municipal da Pessoa Deficiente e com Mobilidade Reduzida (SMPED).
Como surgem as “doenças raras”?
A categoria “doenças raras”, no plural, surge em meados da década de 70 nos Estados Unidos e tem seu emprego estabilizado em 1983, com a publicação da Lei de Medicamentos Órfãos (Orphan Drug Act). Há que se destacar que, antes da década de 1970, a expressão “doença rara” já era conhecida, mas com sentido diverso. De fato, até o final da década de 1960, a raridade de uma doença era mencionada somente como uma categoria que o clínico deveria ter em mente quando um paciente em seu consultório apresentasse um diagnóstico delicado. Especialmente quando de causa genética, estas enfermidades têm sido tradicionalmente objeto do que se convencionou chamar, em comunicação científica, de “relato de caso”, que, remontando ao século 17, refere-se à documentação científica de uma única observação clínica. Assim, antes da década de 1970, o sentido dado à categoria “doenças raras” é distinto daquele hoje hegemonicamente empregado.
Em sua acepção contemporânea, “doenças raras” (no plural) é expressão ligada a “medicamentos órfãos”. Esta última designação surge como consequência de toda a polêmica envolvendo a publicação, nos Estados Unidos, da Emenda Kefauver-Harris ou Emenda da Eficácia dos Medicamentos. Datada de 1962, esta alterava a Lei Federal de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos (Federal Food, Drug and Cosmetic Act), publicada em 1938. Reação à tragédia da talidomida, substância que provocou defeitos congênitos em milhares de crianças ao redor do mundo, a Emenda Kefauver-Harris, de 1962, obrigou os fabricantes de medicamentos a oferecerem prova de eficácia e segurança de seus produtos através de testes clínicos, retroativamente ao ano de 1938.
Com esta e outras medidas legais, a produção de muitos medicamentos deixou de ser “economicamente interessante” para os fabricantes. Por esta razão, foram chamados de “medicamentos órfãos”, e passaram a ser mantidos ‘sob custódia’ em farmácias hospitalares; proibidos para uso clínico, mas liberados para uso químico.
Segundo estudiosos do setor, existem várias razões pelas quais o desenvolvimento de um medicamento torna-se pouco interessante para a indústria farmacêutica: mercado limitado que não justifica o investimento, número reduzido de pacientes para a realização de testes clínicos consistentes, falta de conhecimento sobre os mecanismos da doença, baixa conscientização da sociedade e consequente falta de massa crítica. Todos estes fatores estão de algum modo presentes no caso das “doenças raras”.
Assim “doenças raras” não é conceito que tenha surgido para definir um problema médico, visto não ter sido criado por provedores de saúde, em relação a seu trabalho, ou por pacientes, em relação à experiência que tinham da doença. Sua determinação é de natureza econômica. Há quem observe que o surgimento da categoria “doenças raras” como problema deve-se a uma transição observada na década de 1970, na qual o modo vigente de funcionamento da medicina, que as tratava como não-problemáticas, é suplantado pelo que irá ser chamado por alguns autores de “medicina industrial” (afeita aos grandes números), especialmente no mundo anglo-saxão, em movimento que posteriormente se espalhou pelo mundo.
Vê-se aqui certo paradoxo da sociedade moderna. O fato de faltarem opções terapêuticas para os portadores de doenças raras pode ser em parte atribuído às crescentes demandas da sociedade por rigorosa vigilância da saúde pública, através da promoção de testes clínicos de eficácia e segurança.
Outro paradoxo apontado por alguns pesquisadores é o fato de as ‘doenças raras’ se tornarem cada vez menos raras, graças à crescente compreensão dos mecanismos fisiopatológicos a elas subjacentes, o que acaba contribuindo para a divisão de categorias mais amplas de doenças em entidades patológicas menores e mais bem definidas. Desta forma, segundo estes autores, a cada ano, aproximadamente 250 novas doenças raras são descritas. Cifra que, ainda de acordo com eles, tende a aumentar, na medida em que avanços em abordagens genômicas e pós-genômicas abram caminho para uma maior compreensão da natureza das doenças humanas.
O panorama da regulação
Dado o pouco interesse usual demonstrado pela indústria farmacêutica na produção de medicamentos para doenças raras (medicamentos órfãos), foram desenvolvidas, em diversas partes do mundo, iniciativas legislativas visando incentivar a pesquisa e o desenvolvimento de fármacos voltados para a prevenção, o diagnóstico e o tratamento de tais condições. Entre estas se destacam aquelas aplicadas nos Estados Unidos, União Européia, Austrália e Japão. Em linhas gerais, tais legislações específicas conferem um status especial a determinados produtos farmacêuticos, justificado pelo fato de possuírem o potencial de diagnosticar, prevenir ou tratar uma doença rara para a qual habitualmente nenhuma outra solução terapêutica existe.
Assim, na maioria dos casos, consistem de incentivos regulatórios e de desenvolvimento (mecanismos push) combinados a incentivos fiscais e direito à exclusividade de mercado (mecanismos pull). Mecanismos push têm como foco a redução de custos industriais. Já os mecanismos pull visam a criação de um mercado favorável. Estes incentivos têm se revelado bem-sucedidos. Nos Estados Unidos, desde o lançamento da Orphan Drug Act, cerca de 2 mil produtos receberam a designação de medicamentos órfãos, enquanto que aproximadamente 340 tiveram autorização para sua comercialização. Na União Européia, desde a implementação da legislação sobre medicamentos órfãos, cerca de 744 produtos receberam tal designação. Além disso, 62 deles tiveram sua comercialização autorizada até 2010.
No entanto, um efeito inesperado de tais medidas legislativas, bem intencionadas, e por elas não contemplado, tem sido o alto custo final de tais produtos para os governos, o que os têm transformado em fonte de alta lucratividade para a indústria farmacêutica e lançado desafios importantes para a formulação de políticas públicas de acesso a tais medicamentos.
Tais problemas ainda não se configuraram de forma importante nos países desenvolvidos porque o impacto total dos tratamentos hoje disponíveis, no orçamento, tem sido pequeno, segundo a literatura internacional. Contudo, diante do rápido aumento do número de produtos licenciados destinados a esta clientela, acredita-se que, no médio prazo, tal impacto será substancial, tornando o atual modelo de desenvolvimento destes produtos insustentável. Por conta disso, já há quem fale na necessidade de criação de um novo paradigma para o desenvolvimento e aquisição destes medicamentos.
Na quarta-feira passada (25/2), a Câmara dos Deputados sediou seminário sobre doenças raras, organizado pelo Senador Romário (PSB-RJ), que tem se revelado muito atuante neste campo. Entre as reivindicações, poucos meses após o lançamento da Política Nacional para o setor, estão a criação de centros de referência de doenças raras, o preparo dos quadros técnicos das unidades de saúde para acolher e encaminhar os pacientes, além de mais recursos para pesquisas e garantia de acesso a medicamentos.
Na avaliação dos participantes, houve avanços (como a criação da referida Política) , mas ainda é necessário que as diretrizes por elas anunciadas sejam praticadas, como “atenção integral à saúde das pessoas com doença rara na rede pública, acesso aos meios diagnósticos e terapêuticos disponíveis conforme suas necessidades e qualificação para a atenção às pessoas com doenças raras”, entre outros pontos.
A secretária de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde, Lumena Furtado, na ocasião se manifestou afirmando que o Ministério da Saúde vem trabalhando na qualificação de pessoas para atender os portadores de doenças raras com ações como o Telessaúde. Além disso, segundo ela, cinco milhões de reais foram garantidos para linhas de pesquisa científica, cujos editais ainda estão abertos.
No dia em que lembramos destes 13 milhões de raros no Brasil (ou mais) , esperemos que eles não precisem continuar a lutar para serem visíveis através da promoção de sua doença, mas sim pelas ações de saúde que porventura os tirem do limbo em que se encontram. A Política Nacional é uma boa notícia. Mas precisa avançar.
*Cláudio Cordovil Oliveira é pesquisador do Departamento de Ciencias Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio (DCS/ENSP/Fiocruz) e estuda o tema das doenças raras desde 2007.