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03/04/2007

Sanitarista Giovanni Berlinguer abre ano acadêmico e recebe título de doutor 'honoris causa'

Fernanda Marques


Com o auditório da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) lotado por mais de 300 pessoas, entre elas o ministro da Saúde, José Temporão, o médico italiano Giovanni Berlinguer, membro do Comitê Internacional de Bioética da Unesco, fez nesta terça-feira (03/04) a conferência de abertura do ano acadêmico da Fiocruz. Um dos maiores sanitaristas e bioeticistas do mundo, Berlinguer discorreu (em espanhol) sobre o tema Causas sociais e implicação moral das doenças. Antes da palestra ele recebeu o diploma de doutor honoris causa da Fiocruz – conferido pela segunda vez, já que até então apenas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia recebido a honraria. Bastante emocionado com a homenagem, que incluiu um vídeo com passagens marcantes de sua trajetória, Berlinguer disse ser este "um dos dias mais felizes" de sua vida, logo após a data de seu casamento com Giuliana Ruggerini, há quase 50 anos. A conferência de Berlinguer e o discurso do presidente da Fiocruz, Paulo Buss, ao saudar o médico, estão ao final da entrevista abaixo.


 Berlinguer recebe o título de doutor <EM>honoris causa</EM> das mãos de Temporão (Foto: Ana Limp)

Berlinguer recebe o título de doutor honoris causa das mãos de Temporão (Foto: Ana Limp)


Hoje congressista no Parlamento Europeu, eleito com expressiva votação, Berlinguer tem uma larga experiência política: foi deputado de 1972 a 1983 e senador de 1983 a 1992, no Parlamento italiano. Nascido em 1924, em Sassari, na Sardenha, filho de um advogado defensor dos direitos humanos, Berlinguer também tem sólida carreira acadêmica, com produção que ultrapassa 45 livros. Foi professor de medicina social na Università di Sassari e, depois, de higiene do trabalho na Università La Sapienza di Roma, onde recebeu o título de professor emérito em 2001. Tem, ainda, títulos de universidades como Montreal e Brasília. Desde 2005, ele participa da Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde da OMS.


 José Temporão abraça Berlinguer, observado por Paulo Buss (Foto: Ana Limp)

José Temporão abraça Berlinguer, observado por Paulo Buss (Foto: Ana Limp)


Em sua primeira visita ao Brasil, em 1951, quando participou de manifestações junto à União Nacional dos Estudantes (UNE), foi ameaçado de expulsão por direitistas. Mas isso não impediu que Berlinguer construísse fortes laços de solidariedade com o país, tendo contribuído para a reforma sanitária brasileira. Em entrevista à Agência Fiocruz de Notícias (AFN), ele comenta sua relação com o Brasil e sua atuação nas áreas de saúde pública e bioética.


 Temporão mostra o livro autografado por Berlinguer em 1978 (Foto: Ana Limp)

Temporão mostra o livro autografado por Berlinguer em 1978 (Foto: Ana Limp)


Nas palavras de Sergio Arouca, ex-presidente da Fiocruz, o senhor foi um dos principais mentores intelectuais da reforma sanitária no Brasil e, conseqüentemente, da implantação do SUS. Como o senhor avalia a sua participação nesse processo?


Gionvanni Berlinguer: Sergio no Brasil e eu na Itália, 30 anos atrás, trabalhamos no mesmo projeto: a criação de um sistema universal para cuidado e cura. Os “mentores intelectuais” foram parte de uma extraordinária mobilização de milhões de trabalhadores e cidadãos, que impuseram a reforma sanitária, baseada no princípio da OMS de saúde para todos e na ênfase sobre o cuidado primário de saúde. Eu comecei a me envolver no processo brasileiro quando meu livro Medicina e política foi traduzido. Fui convidado para o lançamento e o Brasil gradualmente se tornou minha segunda pátria.


 Vídeo em homenagem a Berlinguer exibido na cerimônia (Foto: Ana Limp)

Vídeo em homenagem a Berlinguer exibido na cerimônia (Foto: Ana Limp)


Como vê o SUS no Brasil, desde a sua criação e normatização na Constituição até hoje? Falta muito para chegarmos ao modelo que sonhamos? Qual o caminho?


Berlinguer: Considero o SUS uma das melhores realizações deste período. O novo modelo resistiu e foi até melhorado no Brasil, enquanto na maioria dos países, particularmente na América Latina, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional conseguiram impor a ideologia de mercado da regulação econômica e da privatização dos serviços de saúde. As sérias conseqüências em termos de acesso ao cuidado e eqüidade na saúde são agora evidentes, mas eu já posso notar o começo de um novo período.


Nas palavras de Volnei Garrafa, professor da UnB, o senhor tem forte vínculo acadêmico, político e afetivo com o Brasil. Haveria uma explicação para essa ligação?


Berlinguer: Minhas relações com o Brasil, realmente, têm sido múltiplas, mas leio a lista ao contrário: relações afetivas, políticas e acadêmicas. Eu comecei com afeição e segui com muitas experiências diretas, que variaram desde a cooperação com operários metalúrgicos de São Paulo, quando Lula era o líder deles, até o trabalho em muitas universidades latino-americanas.


 Berlinguer conhece a estátua de Sergio Arouca, no campus da Fiocruz (Foto: Ana Limp)

Berlinguer conhece a estátua de Sergio Arouca, no campus da Fiocruz (Foto: Ana Limp)


Nos anos 90, o senhor mudou-se do campo da saúde pública para o da bioética. O que motivou essa mudança?


Berlinguer: Fui influenciado pelas múltiplas relações entre ciência e ética e pelo impacto da ciência no futuro dos seres humanos e da natureza. Muitos bioeticistas se envolveram na fronteira de casos extremos, que eram impraticáveis e até inconcebíveis antes dos recentes desenvolvimentos da biologia e das tecnologias. Eu tentei destacar a existência de um outro campo da bioética, o da vida cotidiana: nascimento, doença, cuidado, prioridades de pesquisa, acesso a novos medicamentos, expectativa de vida, relações de gênero e discriminações, interferências entre as leis do mercado e os direitos do corpo humano.


 Berlinguer ao receber o título de doutor<EM> honoris causa</EM> da Universidade de Montreal

Berlinguer ao receber o título de doutor honoris causa da Universidade de Montreal


É possível traçar uma ponte entre a ética e as questões de saúde pública?


Berlinguer: Posso responder a partir de duas experiências pessoais recentes. No extraordinário Congresso de Saúde Pública no Rio, com milhares de participantes, em setembro de 2006, eu notei que temas de bioética estavam na maioria dos discursos. O apelo mais freqüente era no sentido da eqüidade em saúde, porque a saúde é a primeira necessidade de qualquer cidadão, ela é um interesse da coletividade e uma pré-condição para a liberdade individual. Ficou claro que a saúde pública é um dos instrumentos para se atingir esses objetivos. A segunda experiência pessoal ocorreu no Comitê Internacional de Bioética da Unesco, que elaborou a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. O documentou reconheceu que a “a conquista do mais alto padrão de saúde alcançável é um dos direitos fundamentais do homem, sem distinção de raça, religião, convicção política e condições socioeconômicas”, e incluiu caminhos concretos para atingir essa meta. A decisão não foi fácil, e uma contribuição determinante veio dos representantes da América Latina.


O senhor acredita que, no século 21, com a globalização, as sociedades democráticas precisam tomar novos rumos éticos? Por quê? Quais seriam os novos rumos?


Berlinguer: Sociedades democráticas podem estar na vanguarda dos direitos humanos, desde que elas não façam guerras como pretexto para impor a democracia. Acredito que a principal regra ética da nossa era deve ser baseada no princípio da solidariedade, em termos de espaço e tempo. O espaço da solidariedade diz respeito ao esforço contra as desigualdades existentes no mundo: gênero, educação, trabalho, saúde, poder. O tempo da solidariedade diz respeito aos direitos das futuras gerações, que estão sendo expropriadas da possibilidade de desfrutarem, no mínimo, dos mesmos recursos que nós recebemos dos nossos antecessores.


 Berlinguer em campanha na cidade italiana de Bologna (Foto: Democratas de Esquerda)

Berlinguer em campanha na cidade italiana de Bologna (Foto: Democratas de Esquerda)


O senhor acredita no socialismo do século 21? Em que bases?


Berlinguer: O movimento socialista do século 20 produziu o milagre de associar a liberdade à justiça, obrigou que se controlasse e limitasse o espírito selvagem do capitalismo, promoveu uma ampla participação na vida política e contribuiu para a criação de sociedades com menos diferenças entre classes, gêneros, grupos étnicos. Onde o movimento socialista não existiu, a sociedade tem sido quase sempre mais injusta e menos participativa.


Esse é o passado, ainda influenciando nossa vida, que corre o risco de ser corroído pela falsa idéia de que a conjunção entre livre mercado e tecnologias pode resolver todos os problemas do mundo. Ao mesmo tempo, uma nova onde de princípios socialistas está sendo proposta. O primeiro é o reconhecimento de uma economia de mercado regulada e a rejeição de uma sociedade de mercado. O segundo é a aproximação estratégica da existência de bens comuns fundamentais, como água, natureza, clima, conhecimento, educação, participação. Essa é uma perspectiva muito promissora, que, associada a outras forças, pode se tornar um dos pilares do movimento socialista no século 21. Muitos povos latino-americanos já estão abrindo caminho para trabalharem nessa direção.


Leia mais:


Causas sociales y implicancias morales de las enfermedades (conferência de Berlinguer)


Discurso de Paulo Buss em homenagem a Berlinguer

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