Abordar as contradições e complexidades vividas no cotidiano do trabalho em telemarketing e analisar de que forma esse conjunto de variabilidades e transformações modifica a relação do processo saúde-doença dos operadores foram os objetivos da tese de doutorado da pesquisadora da Escola de Governo da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp) da Fiocruz Simone Oliveira. O estudo subsidiou o Projeto de Lei (PL) nº 2.673/2007 - para regulamentação da atividade de telemarketing, na perspectiva de melhorar as condições de trabalho dos operadores - apresentado à Câmara Federal pelos deputados Jorge Bittar e Luiz Sergio, ambos do PT fluminense.
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O mercado brasileiro emprega, principalmente, jovens entre 18 e 24 anos, sendo a grande maioria do sexo feminino em início de carreira (Foto: Campclean) |
A proposta para o trabalho de subsidiar o PL surgiu da Comissão Especial de Fiscalização das Condições de Trabalho em Call Centers, da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, presidida pelo deputado estadual Gilberto Palmares. No dia 25 de março, foi promovida uma audiência pública para debater o projeto de lei que propõe a alteração da CLT no que dispõe sobre as condições de trabalho em telemarketing/teleatendimento.
O trabalho, intitulado Um olhar sobre a saúde a partir da dimensão gestionária do trabalho: contradições e ambigüidades no telemarketing, teve por objetivo revelar a complexidade e a mobilização subjetiva requerida no trabalho de telemarketing, identificar o engajamento dos trabalhadores e trabalhadoras para além da prescrição do trabalho e considerar as relações, as decisões e modos de fazer dos operadores frente às variabilidades e às infidelidades presentes nas situações profissionais. Desenvolvido em cooperação com o Sindicato dos Trabalhadores de Telecomunicações (Sinttel/Rio), o estudo contribui para o melhor conhecimento do perfil desses trabalhadores e dos danos causados à saúde. De acordo com Simone, o telemarketing é, hoje, uma das atividades que mais empregam no país, no setor de serviços. Segundo dados da Associação Brasileira de Telesserviços (ABT), de 2003 a 2006 o setor cresceu 235%, com mais de 800 mil pessoas empregadas na atividade em todo o país, embora a maioria esteja concentrada no eixo Rio–São Paulo.
Simone relata que o estudo buscou abordar as contradições vividas no cotidiano do trabalho. “É uma atividade feita com rigorosos mecanismos de controle, com pressão da supervisão para manter o chamado tempo médio de atendimento, com o script como uma ‘camisa de força’, grande fluxo de ligações, pouco tempo de pausa, incompatibilidade de prescrições, impossibilidade de expressão em situações difíceis, num ambiente em que o lucro é obtido à custa da restrição do tempo disponível. Esse conjunto complexo de variabilidades e transformações modifica a relação do processo saúde-doença, que se expressa no corpo gerando constrangimentos e adoecimentos. Constrangimentos que são fonte de frustração e sofrimento, rompendo, assim, com o sentido positivo do trabalho. Constrangimentos que levam ao adoecimento. Esse adoecimento é uma possível resposta do corpo ao 'invivível' no trabalho”, explicou.
'Quatro anos na atividade'
O mercado brasileiro emprega, principalmente, jovens entre 18 e 24 anos, sendo a grande maioria do sexo feminino em início de carreira. Os operadores trabalham em média de um a um ano e meio numa empresa, ficando, aproximadamente, quatro anos na atividade. O setor é também, segundo a pesquisadora, um dos que registram os mais altos índices de doenças ocupacionais. “As enfermidades mais comuns encontradas entre os operadores são lesões por esforços repetitivos (LER/Dort), transtornos mentais, perdas auditiva e vocal”. Apesar da subnotificação e da dificuldade do reconhecimento das doenças ocupacionais, esses números vêm crescendo significativamente, como o índice de afastamento do trabalho, que acaba por sobrecarregar o sistema de saúde.
Para Simone, que fez seu mestrado e doutorado na subárea saúde, trabalho e ambiente, do Programa de Saúde Pública da Ensp, o telemarketing é visto como um trabalho simples e desqualificado. Porém, o estudo demonstrou a complexidade do trabalho e o engajamento que esse tipo de atividade requer. O que a tese aponta é a necessidade de uma grande mobilização pelos trabalhadores e trabalhadoras para realizar suas tarefas com criatividade e capacidade de gestão. “Essa dimensão gestionária presente na atividade e seu reconhecimento é um importante fator de proteção e promoção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras. Nesse sentido, valorizar a experiência de quem está atuando é possibilitar um trabalho mais vivível. Principalmente no que se refere à participação das pessoas na elaboração das normas e procedimentos, que pode evitar descompassos na execução das tarefas, possibilitando maior eficácia”.
Sobre o projeto de lei, a pesquisadora considera “gratificante ver o seu trabalho subsidiando políticas públicas, fortalecendo a perspectiva da produção de conhecimento articulada com os atores envolvidos e não uma produção sem repercussão na realidade. É importante que a gente consiga fazer uma ciência a serviço da sociedade, pois é para isso que produzimos conhecimento, principalmente dentro da área da saúde do trabalhador, no enfrentamento das suas questões”.