Um surrealista entre os cientistas

Publicado em
Wagner Oliveira
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Relógios distorcidos e derretidos remetendo às peculiariedades do tempo, um Cristo crucificado que flutua no espaço diante de uma cruz formada por oito cubos, a beleza matemática da natureza expressa num corpo de mulher. Imagens que revelam um lado menos iluminado da biografia do surrealista Salvador Dalí e indicam a forte ligação do artista espanhol com o mundo da ciência. Este aspecto do surrealista que flertou com a ciência é um dos destaques do novo número da revista História Ciências Saúde - Manguinhos, que traz uma coletânea de reflexões sobre os diálogos entre ciência e arte.


Dalí, o gênio surrealista, sempre nutriu um encantamento especial pela ciência, sustenta a pesquisadora espanhola Mônica López Ferrado, autora do estudo publicado na revista científica da Casa de Oswaldo Cruz. Sempre atento às novidades que saiam dos laboratórios e da produção científica, Dali manteve durante a vida vínculos de amizade com cientistas de diferentes campos do conhecimento, alguns dos quais ganhadores do Nobel.


Um interesse, por sinal, bem diversificado. A chegada da bomba atômica, as fronteiras abertas pela genética – em especial depois do descobrimento da estrutura do DNA – a física quântica e as nuances da geometria, as fronteiras abertas pela psicanálise, foram alguns dos temas acompanhados de perto pelo pintor. “O interesse de Dali pela ciência acabou escondido pela figura excêntrica do artista”, sustenta Mônica López.


De acordo com ela, Dalí incorporou a ciência em sua obra e deixou rastros dessa influência nos seus arquivos pessoais. Na biblioteca particular do pintor foram encontrados mais de cem títulos envolvendo temas de ciência, alguns com anotações e comentários nas margens, além de correspondências trocadas com cientistas.


“A ciência foi uma constante na vida de Dalí e essa ligação foi incluída na sua assinatura, que esconde uma figura científica: a coroa dalianiana, que usou pela primeira vez em 1938, é a imagem estroboscópica da gota de leite caindo que o cientista Harold Edgerton conseguiu captar”, conta.


O próprio artista deu pistas sobre esse traço de sua obra quando declarou, nos anos 50, que “todo pintor pinta a cosmogonia de si mesmo: Rafael pinta a cosmogonia do Renascimento e Dalí pinta a era atômica e a era freudiana”. Posteriormente, o pintor confessaria ainda que “os pensadores e literatos não me trazem absolutamente nada. Os cientistas, tudo, inclusive a imortalidade da alma”. 


As novidades trazidas pela física, em especial a nova realidade proposta pela Teoria da Relatividade, despertaram uma inquietação entre os surrealistas. “Dalí estava fascinado pela Relatividade porque esta oferecia a idéia de que a realidade não podia reduzir-se a um único fluxo”, conta o pesquisador Gavin Parkinson no artigo de Mônica.


O quadro A persistência da memória, de 1931, não por acaso, virou ícone da teoria de Albert Einstein. Dali também misturaria mística religiosa e conhecimento matemático no quadro Corpus hypercúbicus, um Cristo com uma peculiar cruz de cubos com quatro dimensões.


Mônica lembra que, embora guardasse conceitos difíceis de se entender, a física quântica, igualmente abriu caminho para a imaginação do pintor.  Da mesma forma, a bomba atômica e os avanços da física nuclear o influenciaram. “Em seus quadros aparecem objetos em suspensão, que se decompõem em partículas que flutuam no espaço”, conta. Para ela, é certo que duas obsessões marcaram a vida de Dalí: a mulher Gala e a ciência.