11/01/2008
A febre amarela foi o maior problema de saúde pública do país desde meados do século 19 até quase meados do século 20. O vírus responsável pela doença ainda circula por seus hospedeiros animais e humanos no interior e bate às portas das grandes e populosas cidades do litoral, ainda infestadas por seu vetor/ hospedeiro intermediário urbano, o Aedes aegypti. Mas a doença não irrompe nesses cenários hoje dominados pela dengue, que compartilha com a febre amarela o mesmo vetor. Trata-se de um enigma que a ciência não consegue desvendar.
Testemunhas relacionaram a eclosão da epidemia que irrompeu em meados do século 19 na capital do Império brasileiro à chegada de um navio negreiro procedente de Nova Orleans, tendo feito escalas em Havana e Salvador antes de atracar no Rio de Janeiro, a 3 de dezembro de 1849. Em fevereiro de 1850 a febre amarela se apossara da cidade e já havia se disseminado pelas praias dos Mineiros e do Peixe, Prainha, Saúde e além. Segundo estimativas, atingiu 90.658 dos 266 mil habitantes do Rio de Janeiro, causando 4.160 mortes, de acordo com os dados oficiais, ou até 15 mil vítimas, segundo a contabilidade oficiosa. Foi então constituída a Junta de Higiene Pública, que em 1886 transformou-se em Inspetoria Geral de Higiene e Inspetoria Geral de Saúde dos Portos.
Nesse intervalo, as epidemias de febre amarela aconteciam com a regularidade na "estação calmosa", aquela longa temporada de calor e chuvas que começava em novembro e terminava em março ou abril. Os higienistas iniciaram então o seu programa, que contemplava amplo repertório de ações destinadas a reformar tanto a paisagem natural da cidade como práticas, hábitos e criações de seus moradores. Puseram em evidência a maior parte dos nós górdios que os engenheiros tentariam desatar. A cidade edificada sem método e sem gosto deveria ser submetida a um plano racional que assegurasse a remoção dos pobres da área central, a expansão para bairros mais salubres, a imposição de normas para tornar mais higiênicas as casas, mais largas e retilíneas as ruas etc.
Os debates sobre a urgência de sanear o Rio de Janeiro aumentaram entre duas epidemias de febre amarela muito violentas, as de 1873 e 1876, que causaram, respectivamente, 3.659 e 3.476 óbitos numa população estimada em cerca de 270 mil habitantes. Foi elaborado, então, o primeiro plano urbanístico para o Rio de Janeiro, por uma Comissão de Melhoramentos da qual fazia parte Francisco Pereira Passos, recém-nomeado engenheiro do Ministério do Império.
O saneamento do solo e a drenagem do subsolo do Rio de Janeiro foram, assim, as medidas consideradas mais urgentes dentre aquelas votadas no Segundo Congresso Nacional de Medicina e Cirurgia, em 1889, para sanear a capital brasileira. Mas as controvérsias sobre a etiologia e profilaxia da febre amarela apenas tiveram fim a partir de um deslocamento radical na abordagem da doença que levou a nova geração de bacteriologistas para o proscênio da saúde pública, sob a liderança de Oswaldo Cruz.
As narrativas sobre a derrota da febre amarela pela medicina "científica" privilegiam ora os Estados Unidos ora Cuba, conforme o valor atribuído a dois episódios: a formulação da hipótese da transmissão pelo mosquito, por Carlos Juan Finlay, em 1880-81, ou sua demonstração pela equipe chefiada por Walter Reed, em 1900. Quando dois outros pesquisadores, Ronald Ross e Giovanni Battista Grassi, demonstraram, em 1897-8, que o mosquito era o hospedeiro intermediário do parasito da malária, tornou-se inevitável a suposição de que cumprisse idêntico papel na febre amarela, cujo diagnóstico clínico confundia-se com o daquela doença.
A transmissão "exclusiva" pelo Aedes aegypti fora o divisor de águas entre as épocas de Domingos Freire e Oswaldo Cruz, que se converteu no mito da ciência brasileira em grande parte graças ao "experimento" bem-sucedido que conduziu no Rio de Janeiro para provar a validade da teoria de Finlay. As certezas que seu grupo sustentara inflexivelmente no Congresso Médico de 1903, e a teoria dos focos-chave que embasara a campanha da Rockefeller no Nordeste brasileiro desabaram em 1932 no vale do Canaã, no interior do Espírito Santo.
As viscerotomias e os testes de imunidade feitos em diversas regiões do país confirmaram as evidências de que a doença constituía problema mais complexo do que se imaginava. Massas humanas deslocadas pelas migrações internas estavam transportando o vírus para o litoral e multiplicando a infecção de pessoas não imunes nas grandes cidades, o que fatalmente redundaria na recriação de quadro epidêmico tão grave quanto o do século 19. A Revolução de 1930 alterou as bases institucionais da campanha, que passou a ser direcionada contra as duas modalidades de febre amarela, a urbana e a silvestre. Ela adquiriu abrangência nacional sob a direção da Fundação Rockefeller.
Número crescente de elementos foram incorporados ao imbróglio da febre amarela. Ele, que havia começado com uns poucos centros litorâneos, um único vetor, uma correlação límpida de litigantes, passou a incorporar numerosas cidades interioranas, mais vetores, novos cenários ecológicos, um número ainda indeterminado de potenciais hospedeiros e uma sucessão de vacinas, que culminaria, em 1937, naquela em uso até hoje, feita a partir do vírus 17D.
Em 2 de outubro de 1958, a 15ª Conferência Sanitária Pan-Americana, realizada em Porto Rico, aprovou resolução declarando livres do Aedes aegypti não apenas o Brasil, mas também Belize, Bolívia, Equador, Guiana Francesa, Peru, Uruguai e outros países Sul-americanos. Nos anos seguintes foi drasticamente reduzido o pessoal engajado na campanha contra a febre amarela. O eficiente sistema estruturado pela Fundação Rockefeller e mantido pelo Serviço Nacional de Febre Amarela foi, aos poucos, se desfazendo. Em 1967, o Aedes aegypti ressurgiu no Pará. No ano seguinte, foi reencontrado também no Maranhão; em 1976, na Bahia. O país estava desaparelhado para enfrentar o problema, e o mosquito foi reconquistando seu território primitivo: chegou às cidades do Rio de Janeiro e Natal em 1977; a Santos em fevereiro de 1980; estaria presente em 226 municípios seis anos depois, ao irromper nas manchetes dos jornais como protagonista de um "novo" tipo de epidemia urbana, o dengue.