21/10/2015
Flávia Lobato / Portal de Periódicos
Na Semana Internacional do Acesso Aberto, a vice-presidente de Ensino, Informação e Comunicação da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, avalia avanços e comenta os desafios para consolidar a Política de Acesso Aberto ao Conhecimento. Nesta entrevista concedida ao Portal de Periódicos, além de tratar de diversas ações que envolvem a agenda interna, Nísia aborda o papel da Fiocruz na valorização da ciência como bem público nos cenários nacional e internacional.
Portal de Periódicos: Um ano e meio depois de implantar a Política de Acesso Aberto ao Conhecimento da Fiocruz, como avalia os avanços institucionais neste sentido?
Nísia Lima: É importante lembrar que ao longo de sua trajetória, a Fiocruz tratou a informação como bem público e determinante social da saúde. Criou a Biblioteca, o Museu, o Arquivo; integra redes que promovem o acesso aberto à informação, como a Biblioteca Virtual em Saúde, entre outras. Quanto à implantação da Política, mais especificamente, nos dedicamos a promover um processo de ampla discussão junto à comunidade. Assim, a Política consolida ações institucionais de longo prazo, ao mesmo tempo em que cria novos mecanismos de promoção do acesso aberto (leia o artigo).
Também vale dizer que duas estratégias do movimento de acesso aberto (AA) - a via verde e a via dourada - foram contempladas. A via verde se caracteriza pelo compromisso da comunidade científica com o arquivamento dos artigos científicos em repositórios institucionais. Nossa grande meta é fortalecer o Repositório Institucional Arca, coordenado pelo Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnologia em Saúde (Icict/Fiocruz) e já observamos um expressivo crescimento do número de depósitos, após a implantação da Política: a taxa é de 79,83%. Montou-se, ainda, um importante sistema de governança, criando condições para descentralização do trabalho, que, ao mesmo tempo, é coordenado e acompanhado pelo Conselho Deliberativo da Fiocruz – com o desafio de aperfeiçoamento e aprendizado contínuo. Recentemente, na 6ª Conferência Luso-Brasileira sobre Acesso Aberto (Confoa) compartilhamos experiências, valorizando o trabalho em rede e a Política que orienta as ações. Apresentamos iniciativas inovadoras, como o jogo desenvolvido pelo ICICT/Fiocruz e apontamos desafios para o futuro.
A via dourada, por sua vez, se refere à criação ou conversão de periódicos científicos ao acesso aberto. Todos os nossos periódicos científicos já a adotavam. Isso revela a força deste movimento no Brasil e em outros países da América Latina, o que foi favorecido pelo desenvolvimento de novas tecnologias da informação. O programa SciELO foi um elemento-chave neste processo, e, ao lado da Redalyc, contribuiu para que a América Latina seja a região em que a via dourada mais se desenvolveu. Resumindo: ao adotar o acesso aberto, nossas revistas reforçaram o valor do conhecimento científico como bem público. Manter este patrimônio nas atuais condições de dificuldades de financiamento em ciência, tecnologia e inovação em saúde é um grande desafio.
Neste período, foi criado o Portal de Periódicos, esta plataforma de conhecimento que, pela primeira vez, reúne todas as revistas científicas da instituição. Ao mesmo tempo, constitui-se o Fórum de Editores Científicos da Fiocruz, que debate tanto questões específicas sobre periodismo científico quanto temas transversais, como o próprio posicionamento junto ao movimento AA. Como tem sido esta experiência?
Nísia Lima: A criação do Fórum dos Editores Científicos e do Portal dos Periódicos evidencia a força da associação e da política de integração, respeitada a autonomia de editores e unidades. Acredito nisto e, mesmo consciente das imperfeições de todo processo, vejo o Fórum e o Portal como grandes realizações coletivas, sob a coordenação da Vice-presidência de Ensino, Informação e Comunicação (VPEIC/Fiocruz). A experiência tem sido muito gratificante, pois temos uma prática coletiva e um espaço virtual com discussões densas sobre a comunicação e a avaliação da ciência. É interessante porque, ao compartilhar experiências, os editores têm conseguido resolver questões práticas. Ou seja, há um resultado um tanto intangível, que é não ficar isolado com o seu problema e poder vê-lo de outro ângulo, o que o espaço coletivo favorece.
O Portal de Periódicos, além de prover acesso no mesmo ambiente aos conteúdos de cada revista, estimula a criação de novos conteúdos sobre temas de interesse comum à comunidade científica, como esta série de entrevistas sobre acesso aberto. É uma nova possibilidade de abordar temas relevantes e de interesse tanto dos editores quanto dos leitores das revistas. Esta lógica de integração de iniciativas e conteúdos marca o próprio lançamento do Portal, que aconteceu junto com a aula inaugural da Fiocruz, cuja conferencista foi a antropóloga Hebe Vessuri, que abordou o tema avaliação da ciência e o papel das políticas de publicação.
Crescem as críticas da comunidade científica ao modelo vigente de publicação e prioridades de financiamento das agências de fomento, com base numa "lógica produtivista". De que forma a Política de Acesso Aberto contribui para articular as políticas de pesquisa, pós-graduação e informação?
Nísia Lima: O movimento AA e as políticas de avaliação de pesquisa e pós-graduação seguem dinâmicas próprias, mas com importantes relações. O principal problema é que a qualidade científica tem sido associada a rankings de periódicos. Esse processo deixa a avaliação nas mãos de uma oligarquia de editoras, já que as ferramentas utilizadas nos rankings pertencem a companhias privadas. Além disso, há tentativas frequentes para desvalorizar as revistas publicadas em acesso aberto, como se não apresentassem qualidade científica (leia mais).
Falo em dinâmicas próprias para fugir a uma visão maniqueísta e simplificadora do processo. O sistema de avaliação da pós-graduação, por exemplo, foi erigido tendo como valor a busca de qualidade e, até a década de 1990, foi pautado por avaliação predominantemente qualitativa, em vez de direcionado ao número de artigos, ranqueamento de periódicos ou indicadores de citação. O tema é complexo, não caberia me estender, mas assinalo que a Fiocruz tem participado ativamente dos esforços para mudar o atual modelo de avaliação, de modo a respeitar a diversidade das áreas e a não ter o número e o impacto de publicações como variável determinante (leia o artigo). O Fórum de Periódicos da Fiocruz tem sido um espaço crucial para esta discussão, e nossas revistas têm sistematicamente publicado artigos e editoriais com críticas e propostas para esta necessária mudança. No Seminário Educação, Saúde e Sociedade do Futuro o tema foi amplamente discutido. E entre os esforços da Fiocruz, destaco a construção do Observatório Fiocruz de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, uma experiência em conjunto com a Vice-presidência de Pesquisa e Laboratórios de Referência. O objetivo é pensar o modelo de ciência e de avaliação da ciência, através de análises, informações e proposição de indicadores.
O fortalecimento do acesso aberto nas instituições de pesquisa e ensino, por meio de repositórios institucionais, está criando uma nova infraestrutura de informação, que a longo prazo, pode trazer novas possibilidades de gestão da informação científica, com mais autonomia por parte das próprias instituições. Ao menos como perspectiva, o acesso aberto e a criação de modelos alternativos para monitoramento e avaliação da ciência estão relacionados e podem se fortalecer mutuamente.
Quais as perspectivas e principais desafios da Fundação para consolidar a Política de Acesso Aberto ao Conhecimento nos próximos anos, tendo em vista práticas relacionadas a dados abertos, como pesquisa aberta, recursos educacionais abertos e transparência pública?
Nísia Lima: Dados abertos e pesquisa aberta são, sem dúvida, temas desafiadores e que precisam estar na agenda. Para estabelecer uma política ou políticas consistentes e orientadas pelo valor da ciência como bem público, é preciso, por exemplo, distinguir dados provenientes de bases governamentais, que são fontes para a pesquisa, e dados gerados pelo trabalho de pesquisa. O Brasil e a Fiocruz, em particular, vêm acumulando experiência nessas áreas e no debate sobre integridade da pesquisa e gestão tecnológica.
Estamos dando passos importantes no que se refere aos Recursos Educacionais Abertos (REA)*, uma alternativa importante para ampliar o conhecimento e a inovação tecnológico-educacional. A Fiocruz e o Sistema UNASUS buscam implantar, nas duas instituições, de forma independente, um sistema de produção e publicação de REA para promoção da saúde, em acesso aberto. Foi importante promover o Seminário de REA com a Secretaria da Executiva da UNASUS, que se prepara para colocar sua Política de Acesso Aberto em consulta pública, enquanto a Fundação busca adequar o processo de produção e publicação destes recursos.
Além dessa agenda interna, um dos principais objetivos na condução da Política de Acesso Aberto ao Conhecimento é que as iniciativas da Fiocruz, da SciELO, do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, das universidades, entre outras instituições, sejam encampadas pelas agências de fomento. E que haja uma legislação nacional que trate da disponibilização dos resultados de pesquisas financiadas com recursos públicos em acesso aberto.
* Nota: a Unesco, em evento conhecido como The Forum on the Impact of Open Courseware for Higher Education Institutions in Developing Countries, cunhou o termo Open Educational Resources com o seguinte entendimento: “provisão de recursos educacionais abertos, ativada por tecnologias de informação e comunicação, para consulta, utilização e adaptação por uma comunidade de usuários para fins não comerciais.” (Unesco, 2002)