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23/10/2024

Vice-presidente da Fiocruz destaca pioneirismo da Política de Acesso Aberto ao Conhecimento

Liseane Morosini e Simone Intrator (Vpeic/Fiocruz)


A ciência aberta é muito mais do que o compartilhamento de informações. É uma política centrada em três pilares: o de que o conhecimento é um bem público, que gera benefícios para o avanço das pesquisas e qualifica a produção científica. Essa é a visão da vice-presidente de Educação, Informação e Comunicação (Vpeic/Fiocruz) Cristiani Vieira Machado, que destaca o pioneirismo da Política de Acesso Aberto ao Conhecimento da Fiocruz, que completa este ano uma década de existência formal, mas, na prática, vem sendo aplicada na Fundação muito antes disso.  

Cristiani comemora, e muito, os 10 anos da Política de Acesso Aberto ao Conhecimento, e o fortalecimento, ao longo dos anos, da perspectiva mais abrangente de Ciência Aberta na Fiocruz. Ela lembra que a trajetória de democratização da informação na instituição se materializa por meio de repositórios como Arca e Arca Dados, por nove revistas científicas, todas disponíveis em acesso aberto no Portal de Periódicos, por livros, vídeos e materiais educacionais sem qualquer barreira de acesso. Educação em Saúde, outra área forte da Fundação, é parte desse pilar que faz da Fiocruz uma referência no tema.

Nesta entrevista, a pesquisadora observa que fazer ciência aberta é não só uma obrigação moral, mas também uma responsabilidade da Fundação e conclama a comunidade Fiocruz a abraçar o movimento pela ciência cidadã. “Temos de sair dos nichos especializados e fazer desse um assunto transversal, que alcance todos os grupos sociais. A ciência é fundamental para melhorar a vida das pessoas e dos povos. O conhecimento científico não pode ser visto como mercadoria, deve ser compreendido como direito de todas as pessoas”, garante. 

Vpeic/Fiocruz: O que você destaca nesses 10 anos da Política de Acesso Aberto ao Conhecimento da Fiocruz? 

Cristiani Machado: A atuação da Fiocruz tem relevância no cenário nacional por ser uma instituição de ciência e tecnologia dedicada à saúde. Na saúde, as questões do acesso aberto são cruciais por suas implicações sociais e pelo dinamismo da produção de informações nessa área. A Fiocruz é um exemplo também por sua diversidade de iniciativas e de frentes de atuação, o que traz muita responsabilidade. Aqui se faz pesquisa básica e laboratorial, desenvolvimento tecnológico, pesquisa em saúde coletiva e nas ciências sociais, e a instituição também tem uma reflexão científica sobre informação e comunicação. Além de ser uma das pioneiras ao trabalhar com acesso aberto e de ter tantas iniciativas, a Fiocruz participou de várias ações nacionais pioneiras neste âmbito. Somos uma referência nesse campo

Vpeic/Fiocruz: Que iniciativas a Fundação tinha antes de lançar a sua Política de Acesso Aberto? 

Cristiani Machado: A Política de Acesso Aberto completa 10 anos, mas a Fiocruz já atuava com essa perspectiva antes de sua publicação. A política é fruto de amadurecimento de iniciativas anteriores. As revistas científicas da Fundação são antigas e trabalham com acesso aberto há muito tempo, sem qualquer taxa para autor ou leitor. A revista Memórias do Instituto Oswaldo Cruz é centenária; o Cadernos de Saúde Pública (CSP) faz 40 anos. Há mais de 25 anos participamos da plataforma SciELO, uma das iniciativas mais importantes na América Latina de acesso aberto ao conhecimento, no que diz respeito ao mundo das revistas. A Editora Fiocruz, uma editora científica universitária, participou da construção do SciELO Livros. Hoje ela tem mais de 230 títulos disponíveis para download gratuito nessa biblioteca virtual criada há 12 anos, e que é outra iniciativa pioneira. Na educação aberta, a instituição também é precursora na oferta de cursos online gratuitos. O pioneirismo é importante porque a instituição atua como referência, mas essa não é a única questão que é relevante.  

Vpeic/Fiocruz: Que suportes foram criados para garantir o acesso livre e sem pagamento de taxas? 

Cristiani Machado: Criamos o repositório Arca, uma vitrine que aumentou a quantidade e ampliou o escopo de produtos depositados, com outros tipos de documentos. O Arca é um exemplo. Muitas instituições visitam a Fiocruz para conhecer o Arca e várias delas se inspiraram na nossa Política de Acesso Aberto e nesse repositório. Há o Portal de Periódicos, que reúne e dá visibilidade às nossas nove revistas científicas, garantindo o acesso aberto sem qualquer cobrança de taxas para autor ou leitor. O Portal permite a divulgação científica e isso também ajuda a democratizar o conhecimento para o público leigo. Além disso, o Portal também fomentou a articulação dos editores das revistas científicas com troca de experiências e com o debate do acesso aberto no campo editorial.  

Vpeic/Fiocruz: Qual é a relevância de institucionalizar a política?  

Cristiani Machado: Há vários motivos. Um deles é aumentar o reconhecimento e a apropriação interna e externa da política. Porque se poucas pessoas fazem aquilo, não vai aumentar o engajamento de toda comunidade. Precisa institucionalizar, ter uma política construída coletivamente e publicada, divulgar, para que as pessoas se apropriem da política e comecem a fazer parte dela, mesmo que eventualmente. Tem a questão de assegurar a continuidade e sua expansão. Então, a institucionalização é importante para disseminar e democratizar a política e envolver mais gente, para assegurar que novas ideias surjam a partir dali, para dar mais estabilidade à política, e para favorecer o avanço mesmo dessas práticas. Sem a institucionalização, há o risco elevado de descontinuidade, ou o risco de a política ficar insulada nos nichos. A institucionalização não se dá só pela publicação do documento. Ela se dá pela existência de fóruns permanentes participativos, que estão construindo coletivamente, atualizando, debatendo, avançando, se dá pela disseminação das informações de diferentes formas...  

Vpeic/Fiocruz: O que foi construído nesses 10 anos? 

Cristiani Machado: Houve expansão do acesso aberto e um avanço progressivo na adoção da perspectiva mais ampla da ciência aberta. Há um guarda-chuva enorme nesse debate da ciência aberta, que vai além do acesso aberto. São vários tipos de iniciativas diferentes. Uma delas é a governança participativa que, seguindo a tradição do Fiocruz, sinaliza que esse não é só um debate especializado, das pessoas do campo da informação ou da biblioteconomia, mas que diz respeito a todos nós. Ele tem que ser transversal na Fiocruz. E isso é um grande desafio. Esse processo vem acontecendo com desafios e dificuldades, e os mecanismos de governança são importantes para isso. Inicialmente, havia um Comitê de Ciência Aberta, que depois passou a ser um Fórum de Ciência Aberta, que hoje em dia tem profissionais de várias áreas científicas, representantes das unidades e de diversos campos do conhecimento. A ideia é que todos se apropriem do debate e se corresponsabilizem pela ciência aberta. Depois que a Política de Acesso Aberto foi lançada 2014, foi desencadeado um processo gradual de construção dos Núcleos de Acesso ao Aberto (NAAC) em cada unidade da Fiocruz. Agora, os NAACs estão sendo convertidos em Núcleos de Ciência Aberta, com a expansão de sua composição e das suas responsabilidades. Esse processo tem que ser gradual e cuidadoso pela complexidade envolvida. 

 

Vpeic/Fiocruz: Que iniciativas aconteceram no plano da Educação? 

Cristiani Machado: A Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) já tinha sido pioneira em cursos de educação a distância gratuitos desde os anos 90. Em 2016, criamos o Campus Virtual Fiocruz (CVF), o que permitiu maior suporte às unidades da Fiocruz, e ampliou a quantidade de cursos autoinstrucionais gratuitos de qualificação profissional. Esses cursos ficam disponíveis online e em formato aberto. Essa lógica da educação aberta tem a ver não só com dar o acesso, mas com a possibilidade de reaproveitar o conhecimento para democratizar a educação e reduzir desigualdades. O CVF trabalha com esses de qualificação profissional online. Há ainda a Educare, uma plataforma de Recursos Educacionais Abertos, que reúne recursos de diversos tipos – vídeos, podcasts, textos - com finalidade educacional. Para dar conta de todas essas frentes, desenvolvemos um programa de Formação Modular em Ciência Aberta, on-line, em que já se inscreveram mais de 20 mil pessoas, de todo o país. A Fiocruz passou a ter um papel na formação em ciência aberta por meio da oferta desse curso para o público externo e interno.  

Vpeic/Fiocruz: Como se dá a proteção de dados disponibilizados pelas plataformas? 

Cristiani Machado: Em 2020, foi aprovada a Política de Gestão e Compartilhamento e Abertura de Dados para a Pesquisa, uma iniciativa com maior complexidade, por causa das assimetrias globais na produção de conhecimento. A construção dessas diretrizes envolveu um longo debate e nós enfatizamos a dimensão da gestão dos dados, das decisões de compartilhamento, das decisões informadas, e a possibilidade de abertura dos dados nos casos em que for pertinente. O Arca Dados operacionaliza e viabiliza a divulgação das coleções de dados de pesquisa, mas tem uma dimensão que é mais intangível que é a de provocar o debate internamente e disseminar essa visão mais compartilhada do conhecimento. Provoca, também, os pesquisadores para que eles façam uma gestão mais cuidadosa dos dados da pesquisa, tanto para permitir o reúso desses dados, até pelo próprio grupo quanto para ter condições de eventualmente compartilhá-los com outros grupos.  

Vpeic/Fiocruz: O Arca Dados é um instrumento para democratizar esse acesso?  

Cristiani Machado: A ciência aberta aposta na colaboração, em uma outra forma de fazer ciência, que vai além do acesso aberto ao conhecimento. Então, o debate sobre gestão, compartilhamento e abertura de dados não se traduz só no repositório de dados. Ele é um instrumento muito importante dessa iniciativa, mas tem toda uma dimensão de mudança de cultura e de fomentar essa reflexão sobre a construção mais compartilhada da ciência. A utilização do Arca Dados implica cuidados com segurança, gestão das informações, é muita coisa. E não é só depósito aberto, tem restrito também, tem uma classificação. Mas a questão do repositório não é só colocar os dados lá. Há uma questão legal e ética, há uma série de documentos necessários para permitir o depósito. Perceba também que mesmo o depósito restrito tem a sua função. Disponibilizar os metadados na plataforma dá muita visibilidade às coleções de informação que existem na e isso fomenta a colaboração entre grupos de pesquisa. Isso, às vezes, é até mais importante do que a mera abertura.  

Vpeic/Fiocruz: Qual a importância do acesso aberto e de que maneira esse formato beneficia a sociedade? 

Cristiani Machado: Destaco três pontos. O primeiro é que o acesso aberto parte da ideia do conhecimento como um bem público, compreendendo que a ciência é fundamental para melhorar a vida das pessoas, a vida dos povos. Esse entendimento se opõe à ideia de que o conhecimento científico pode ser comercializado. Nas sociedades capitalistas há essa tendência de mercantilização, de transformar tudo em mercadoria. O conhecimento científico está nesse bojo. Nós recebemos financiamento público e o conhecimento que nós produzimos precisa ser disseminado para chegar à sociedade de forma acessível e ser apropriado pelos diferentes grupos sociais. Essa é uma obrigação moral e uma responsabilidade. O segundo ponto é que o acesso aberto pode favorecer o avanço mais rápido da ciência. Compartilhar é importante pois permite que a ciência avance e dê resposta aos problemas complexos da sociedade. Se o conhecimento é compartilhado, ele também evita que outros grupos façam o mesmo do que já está sendo produzido.  

Vpeic/Fiocruz: Esse processo gera mais qualidade à produção científica?  

Cristiani Machado: Sim, esse é o terceiro ponto da relevância. Ele faz com que a ciência seja melhor e mais próxima às necessidades da sociedade. Aumentar o acesso significa democratizar e expor mais a pesquisa e o conhecimento a novas questões, de diferentes grupos sociais. É assegurar a permeabilidade ao diálogo, para ter uma ciência mais participativa. Com isso, podem surgir questões pertinentes que podem contribuir para aproximar a ciência da sociedade, ao mesmo e  melhorar a qualidade do que a ciência produz. Esse debate também envolve dimensões em que a gente ainda precisa avançar, como os diálogos entre saberes, o engajamento público na ciência, ciência cidadã, entre tantos outros. 

Vpeic/Fiocruz: Que benefícios os diferentes grupos sociais podem ter quando a ciência é compartilhada? 

Cristiani Machado: Por mais importante que seja a produção de um determinado pesquisador ou de um grupo de pesquisa de uma instituição científica, ela é sempre uma contribuição parcial e limitada para o avanço da ciência. Compartilhar um estudo feito na comunidade de Manguinhos, no Rio, por exemplo, em uma publicação em acesso aberto, pode fazer com que ele chegue ao outro lado do mundo, e uma comunidade da Índia, pode eventualmente ter problemas semelhantes. Os pesquisadores da Índia podem partir de outro patamar para avançar em suas pesquisas e buscar dar respostas para as necessidades locais, consideradas as especificidades dos diferentes contextos.  

Vpeic/Fiocruz: A ciência aberta praticada em situações de emergências sanitárias é um exemplo bem-sucedido de colaboração? 

Cristiani Machado: As emergências sanitárias impulsionaram a adoção de práticas de acesso aberto. Mesmo editoras comerciais que trabalham com mecanismos de cobrança para acesso às publicações adotaram estratégicas de acesso livre às revistas ou a artigos, inicialmente durante a emergência relacionada à zika e depois durante a pandemia de Covid-19. Então, as emergências sanitárias podem acelerar as práticas de acesso aberto, inclusive aquelas no sentido mais amplo de ciência aberta, por meio da intensificação do compartilhamento de dados. Nesses momentos, fica muito evidente que as consequências de não compartilhar o conhecimento são drásticas. Só que esse conhecimento não é importante apenas no caso da emergência sanitária, mas também para as doenças crônicas, para a oncologia, para todas os problemas de saúde, para a promoção da saúde, porque são questões que dizem respeito à vida, ao bem-estar, aos direitos. Na saúde, esse debate é crucial, já que a mercantilização das práticas nessa área é muito deletéria. O que as emergências sanitárias fazem é explicitar isso. Porém, isso não quer dizer que a mudança nas práticas seja permanente. É necessário um debate contínuo e a adoção de políticas que reforcem o conhecimento científico como bem público, elemento fundamental para a concretização do direito à ciência e à saúde. 

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