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03/06/2022

75ª Assembleia Mundial da Saúde: sindemia e desafios políticos para uma agenda multilateral

Paula Reges, Luana Bermudez, Luiz Augusto Galvão, Paulo Buss e Nísia Trindade Lima*


Aconteceu em Genebra de 22 a 28 de maio de 2022, a 75ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), tendo como tema Saúde pela paz, paz pela saúde. Por dezenas de anos as AMSs passaram despercebidas aos olhos do mundo. Entretanto, desde a emergência da pandemia de Covid-19, cada vez mais despertam a atenção de políticos, diplomatas e da sociedade civil. A saúde tornou-se parte importante da big policy. Não apenas pelo imenso impacto da pandemia sobre todas as dimensões da vida e da economia global, como pelo peso cada vez maior do complexo médico-industrial na composição de PIBs, nos orçamentos públicos e no bolso das pessoas.

75ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS) teve como tema 'Saúde pela paz, paz pela saúde' (foto: OMS)

 

Neste ano, além desses fatos que, por si só, já atrairiam as atenções do mundo, a 75ª Assembleia renovou o mandato do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, por mais cinco anos e foi cenário para demonstrações sobre a guerra (da Ucrânia e, menos, sobre todas as demais).

O exame da Agenda da 75ª AMS, por si só, já demonstra que o secretariado da OMS e os ministros da Saúde de seus Estados-membros compreenderam que não estamos vivendo um tempo de pandemia de Covid-19, mas, sim, de uma sindemia – provocada pela pandemia. De fato, o elenco de temas debatidos, além de abordar fartamente a pandemia, englobou uma série de outros assuntos de interesse da saúde global, na qualidade de espaço maior e inquestionável da diplomacia da saúde global.

A capacidade do mundo de lidar com complexidades múltiplas ampliou-se durante a pandemia atual. Isso significa que o ritmo em que as decisões são tomadas se acelerou para acompanhar as realidades em constante mudança. Já na abertura, o doutor Tedros Adhanom, destacou o momento singular em que nos encontramos, que apresenta uma “convergência de doenças, seca, fome e guerra, alimentada por mudanças climáticas, desigualdade e rivalidade geopolítica”.

Durante o evento, percebeu-se a importância da retomada dos encontros presenciais, visto o convívio social ser propício para o aprofundamento de conversas, encontros bilaterais e troca de experiências e aprendizado. Notou-se ainda que, mesmo o ritmo austero das decisões diplomáticas multilaterais, tornou-se um pouco mais rápido, o que inevitavelmente trouxe também mais confusão. Viu-se o lado técnico colidindo com o político, com alguns danos colaterais, incluindo o fato de que nem todas as vozes foram ouvidas, com a menor participação de organizações da sociedade civil. Mesmo assim, as decisões foram tomadas.

Foram vários os momentos ímpares desta AMS, com a histórica retomada dos trabalhos in loco do principal corpo de governança da saúde global. Depois de um longo período de recesso não faltaram temas prioritários para discutir e decisões prementes a tomar. Os Estados-membros, naturalmente, priorizaram as discussões sobre as propostas de mudanças nos instrumentos de governança global, principalmente, o processo de negociação de um novo tratado sobre pandemia e a reforma do regulamento sanitário internacional. As atividades de vigilância e controle de doenças emergentes e re-emergentes com potencial pandêmico, incluindo o suprimento de insumos como testes, vacinas e equipamentos e a criação de plataformas de vigilância integral de saúde, também tiveram espaço. E houve ainda terreno para argumentações sobre a contribuição da saúde global na recuperação mundial e no enfrentamento dos grandes desafios mundiais como a paz e a crise climática.

Os Estados-membros não só reelegeram Tedros Adhanom Ghebreyesus como diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, como houve o comprometimento por parte das nações com o programa de sustentabilidade financeira da OMS.  Tomaram, ainda, uma posição dura contra a Rússia, adotaram nova resolução sobre ensaios clínicos, discutiram o papel da OMS na arquitetura global da saúde, entre muitas outras áreas da política global de saúde.

A OMS assumiu posição política decisiva em relação à Ucrânia. E agora recai sobre a Organização uma responsabilidade maior por todos os pontos de conflito políticos atuais e futuros, como os críticos apontam infalivelmente, citando exemplos da Palestina, Iraque e Síria, entre outros. Raramente a OMS foi forçada a tomar uma posição política tão decisiva, durante sua existência por três quartos de século. Pode ter agora estabelecido um precedente que será difícil de abandonar no futuro.

A 75ª AMS tornou-se um caldeirão de geopolítica, segurança sanitária global, guerras e emergências de saúde. Alianças e desavenças entre os posicionamentos dos Estados-membros ocorreram. Os diplomatas entraram em conflito em muitas discussões, como a que ocorreu para adoção da Estratégia Global em HIV, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis 2022-2030. 

A aprovação da estratégia veio após fortes objeções de países socialmente conservadores, liderados por Arábia Saudita e Egito, aos termos usados ​​na estratégia e em seu glossário anexo sobre saúde sexual e populações-alvo para tratamento do HIV – linguagem considerada por muitos especialistas como padrão para esse fim. Falando em nome dos 22 Estados-membros da OMS, a Região do Mediterrâneo Oriental (EMRO), com o apoio de alguns países da região africana, o delegado saudita e outras nações da EMRO catalogaram os termos que consideraram censuráveis, incluindo referências a: sexualidade, orientação sexual, direitos sexuais. Também houve objeções à referência da estratégia a “homens que fazem sexo com homens”, como população-alvo para o tratamento do HIV. 

Apesar de ter sido aprovada a resolução mantendo esses termos, a estratégia liderada pelos delegados da EMRO teve sucesso no enfraquecimento do importante documento e abriu precedente para possíveis questionamentos futuros, já que somente sessenta países membros (um terço do total) votaram a favor.

Uma das decisões politicamente mais significativas da Assembleia foi a adoção de recomendações, com base no Relatório final do grupo de trabalho de financiamento sustentável. Houve muito alarde no processo, marcando a decisão como um momento que fortalece o financiamento da OMS até certo ponto. Expressou-se apoio às recomendações, incluindo a proposta de aumentar incrementalmente as contribuições fixas, com a aspiração de que elas cubram um valor igual a 50% do orçamento base aprovado para o biênio 2022–2023, até o biênio 2030–2031. Entretanto, questões semânticas pelo uso da palavra 'aspirar' indicam que os Estados-membros não são mandatados a realizar tal proposta.

O acompanhamento da Declaração Política da Terceira Reunião de Alto Nível da Assembleia Geral sobre Prevenção e Controle de Doenças Não Transmissíveis resultou em 13 anexos ao documento principal, com apresentação das estratégias globais a serem implementadas quanto a diversas dimensões desse conjunto de enfermidades: roteiro 2023-2030 para a implementação do plano de ação global para a prevenção e controle de doenças não transmissíveis (DNT); políticas para construir resiliência dos sistemas de saúde e para tratar pessoas com DNT e prevenir e controlar seus fatores de risco em emergências humanitárias; plano de ação global intersetorial sobre epilepsia e outros distúrbios neurológicos 2022-2031; plano sobre prevenção e gestão da obesidade ao longo da vida; estratégia global para a eliminação do câncer de colo de útero como problema de saúde pública; plano de ação global intersetorial sobre saúde bucal; e, finalmente, o processo de preparação para a realização, em 2025, da quarta reunião de alto nível da Assembleia Geral sobre prevenção e controle de doenças não transmissíveis.

O tema Recursos humanos para a saúde foi objeto de diversas discussões, que incluíram o plano de ação 2022-2030 Trabalhar pela saúde; o Pacto Global para Profissionais de Saúde e Cuidados; o Código Global de Práticas da OMS para o Recrutamento Internacional de Pessoal de Saúde; e a Estratégia Global de Recursos Humanos para a Saúde: Força de Trabalho em Saúde 2030.

Como mencionado, o desenvolvimento por detrás dos planos de preparação, fortalecimento e resposta a emergências de saúde entoou diversas das discussões. O preparo para a próxima pandemia exigirá mais do que um compromisso dos delegados na Assembleia. Vai requerer uma mudança estrutural em direção a uma configuração mais justa de saúde global, onde o poder seja distribuído de forma mais equitativa, por meio de um modelo de negócios sociais de produção de vacinas e medicamentos. Na MAS, houve a adoção do report do Comitê Independente de Supervisão e Assessoramento do Programa de Emergências de Saúde da OMS, endereçado ao diretor-geral, tratando da pauta de emergências de saúde pública, incluindo o binômio de preparo e resposta.

A participação da Fiocruz na AMS trouxe mensagens fundamentais da Fundação, como a ênfase na importância da ciência e tecnologia e inovação, com necessidade de investimentos permanentes, não só em momentos de emergências em saúde. É através de uma base mais bem estruturada e de sustentação que surge a capacidade de respostas rápidas para o enfrentamento de crises, incidindo na possibilidade de salvar vidas. 

O reforço na produção local de insumos e desenvolvimento de tecnologias é peça chave para a autonomia tecnológica, aspecto crucial que deve ser visto como parte dos sistemas de saúde e das estratégias para o fortalecimento. Na perspectiva brasileira, robustece quão primordial é a fortificação do Sistema Único de Saúde (SUS). A participação da Fiocruz no programa da Opas/OMS de centros (Hubs) de transferência de tecnologia de vacinas de mRNA para o desenvolvimento, produção, fornecimento e transferência tecnológica na América Latina reitera o nosso compromisso em busca de um arranjo produtivo local e na preparação para futuras emergências.

A grande mensagem é que a autonomia tecnológica deve ser sempre direcionada para a promoção da equidade no acesso às inovações de saúde, implicando em tempo de resposta e número de vidas salvas. A desigualdade no acesso é a expressão mais profunda do impacto negativo da restrição de itens básicos ao enfrentamento de condições críticas. 

Assim, a Fiocruz é reconhecida como instituição de alçadas múltiplas, importante ator global com capacidade colaborativa e estratégica para o fortalecimento dos sistemas de saúde e apoio na redução de iniquidades ao redor do mundo. 

* Paula Reges e Luana Bermudez são pesquisadoras do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz); 
Luiz Augusto Galvão é pesquisador sênior do Cris/Fiocruz; 
Paulo Buss é coordenador do Cris/Fiocruz; 
Nísia Trindade Lima é presidente da Fiocruz.

Texto originalmente publicado (3/6) no site do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.

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