24/05/2019
Haendel Gomes (COC/Fiocruz), Maíra Menezes (IOC/Fiocruz) e Matheus Cruz (CCS/Fiocruz)
Às vésperas do aniversário dos 119 anos da Fiocruz, dia 25 de maio, a instituição tem mais um motivo para comemorar. Foi aprovada, nesta sexta-feira (24/5), resolução que institui 14 de abril como o Dia Mundial da Doença de Chagas. O anúncio aconteceu durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde (AMS), encontro anual que reúne ministros da saúde dos 194 estados-membros da Organização Mundial da Saúde (OMS) e representantes de instituições de destaque da saúde global para discutir temas como emergências de saúde e mudanças climáticas. A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, está na comitiva representando o Brasil. A decisão será formalizada na próxima terça-feira (28/5) durante a plenária final da Assembleia.
“Precisamos romper o silêncio sobre os pacientes e assumir o compromisso na prevenção e no tratamento. Carlos Chagas chamou a doença que leva seu nome de ‘doença do Brasil’, um país que esquecia os seus sertões. Hoje, mais que uma doença negligenciada, ela se torna um problema de populações negligenciadas. Ao reconhecer a importância de sua prevenção e tratamento a OMS dá um exemplo de afirmação do grande lema da Agenda 2030: ‘ninguém deixado para trás’”, destacou Nísia, durante sua fala na Assembleia.
Descrito no Brasil, há 110 anos, pelo médico Carlos Chagas, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), o agravo é classificado pela OMS como doença tropical negligenciada. Desde a descoberta pioneira, a investigação científica sobre a doença vem sendo desenvolvida de forma ininterrupta na Fiocruz.
Com estimativa de mais de oito milhões de pessoas afetadas no mundo, a mobilização pela visibilidade do agravo e pelo reconhecimento de um dia mundial de conscientização partiu dos pacientes e teve intenso apoio da comunidade científica e da saúde, incluindo a Fiocruz.
A história dessa mobilização teve início ainda em 2009, durante a Reunião Anual de Pesquisa Aplicada em Doença de Chagas de Uberaba (MG), quando foi realizada a primeira Reunião de Associações de Pessoas Afetadas pela Doença de Chagas das Américas, Europa e Pacífico. No encontro, a pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Simone Kropf, apresentou e discutiu suas pesquisas sobre a história da doença junto aos representantes das associações, em uma reflexão coletiva sobre como articular os conhecimentos da história aos desafios do presente e do futuro. O encontro foi um marco para a criação, em 2010, da Federação Internacional das Pessoas com Doença de Chagas, que passou a buscar junto à OMS o reconhecimento mundial deste dia tão importante.
Escolhido como Dia Mundial, o 14 de abril lembra a data de 1909 em que Carlos Chagas identificou, pela primeira vez, o parasito Trypanosoma cruzi, causador da infecção, em uma paciente: Berenice, uma menina de 2 anos, moradora da cidade de Lassance, em Minas Gerais. Publicada na revista científica Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, a descrição do ciclo da doença de Chagas foi um dos feitos mais emblemáticos da ciência brasileira. Além de caracterizar o agente causador da infecção e o conjunto de sintomas, Carlos Chagas identificou o inseto transmissor: o triatomíneo, popularmente conhecido como barbeiro. (foto: Berenice e seu bisneto / Cortesia para o acervo do DAD/COC/Fiocruz: Bernardino Vaz de Melo)
Passados 110 anos da descoberta, estatísticas estimam que menos de 10% das pessoas com Chagas são diagnosticadas oportunamente e apenas 1% recebem o tratamento adequado. De acordo com a OMS, 65 milhões vivem com risco de contrair a infecção. Assim como outras doenças tropicais negligenciadas, o agravo está associado com a pobreza. Condições precárias de moradia favorecem a infestação de barbeiros, que transmitem o T. cruzi. Uma vez que a doença pode ser silenciosa na fase aguda, o baixo acesso a serviços de diagnóstico, faz com que muitos pacientes não recebem a medicação adequada logo após o contágio, quando o tratamento pode eliminar o parasito. Na fase crônica, após décadas de infecção, cerca de 30% dos indivíduos desenvolvem problemas cardíacos ou digestivos. As condições podem levar à morte, mas o diagnóstico e o tratamento adequados são capazes de prolongar e aumentar significativamente a qualidade de vida dos pacientes.
Em 2006, o Brasil recebeu o certificado internacional de eliminação do 'Triatoma infestans', principal espécie de barbeiro responsável pela transmissão domiciliar da infecção (foto: Divulgação)
No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, estudos recentes indicam que há entre 1,9 milhões e 4,6 milhões de pessoas infectadas pelo T. cruzi – sendo a grande maioria portadores crônicos – e a doença de Chagas é uma das quatro maiores causas de morte por agravos infecciosos e parasitários. Em 2006, o país recebeu o certificado internacional de eliminação do Triatoma infestans, principal espécie de barbeiro responsável pela transmissão domiciliar da infecção. No entanto, ainda existem focos residuais do vetor e outras espécies de triatomíneos apresentam potencial para colonização de domicílios, reforçando a importância de ações de vigilância e controle. Além disso, a transmissão oral do agravo é uma preocupação no país. De 2008 a 2017, casos desse tipo foram registrados em 21 estados do país. Associada a surtos, a infecção oral ocorre pelo consumo de alimentos infectados pelo T. cruzi, como, por exemplo, açaí ou caldo de cana, nos quais barbeiros são acidentalmente triturados durante o preparo dos sucos.
Por muito tempo, a doença de Chagas foi uma infecção restrita às Américas, em especial à América Latina. No entanto, nas últimas duas décadas, o agravo se espalhou para outros continentes, com casos registrados nos Estados Unidos, Canadá e diversos da Europa, além de Austrália e Japão. Associada principalmente as migrações humanas, a disseminação da doença também foi registrada em casos de transfusão de sangue e doação de órgãos, uma vez que a triagem para a infecção não era realizada em alguns países.
Carlos Chagas: o pesquisador dos sertões
Chagas se formou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1903, quando teve início o combate à febre amarela pelo médico Oswaldo Cruz, então diretor geral de saúde pública e responsável pelo Instituto Manguinhos (que em 1908 passou a se chamar Instituto Oswaldo Cruz). A doença era um grave problema de saúde pública na capital federal, assolada por epidemias recorrentes que comprometiam a movimentação econômica no porto da então capital federal.
Em 1908, Chagas tornou-se pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, que, além de fabricar vacinas e produtos para atender as demandas sanitárias, se constituía como centro de pesquisa e ensino no campo da microbiologia e da medicina tropical.
Especialista em malária, o cientista foi enviado a Lassance, na zona rural de Minas Gerais, para combater uma epidemia da doença que interrompera obras de ampliação da ferrovia da Central do Brasil. Ao examinar um inseto hematófago popularmente chamado de barbeiro, comum nas casas de pau-a-pique da população pobre no Brasil rural, Carlos Chagas identificou uma nova espécie de tripanossoma, que denominou Trypanosoma cruzi em homenagem a Oswaldo Cruz.
Em 14 de abril de 1909, ao identificar o parasita no sangue de uma criança de Lassance, anunciou a descoberta da nova doença, causada por este protozoário e transmitida pelo barbeiro. Este episódio, marco da história da doença de Chagas, acaba de completar 110 anos.
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