06/10/2020
No continente americano, as leishmanioses são causadas por várias espécies de parasitos do gênero Leishmania. Quando infectados, os seres humanos apresentam um conjunto de manifestações clínicas que podem comprometer a pele, mucosas e vísceras. As diferentes apresentações da leishmaniose são confundidas clinicamente com diversas doenças, o que torna o diagnóstico um desafio para profissionais de saúde. O espectro clínico variado da doença depende ainda da interação de vários fatores relacionados ao parasito, ao vetor e ao hospedeiro.
Considerando a complexidade desse cenário, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) publicou um material inédito voltado para gestores e profissionais dos serviços de saúde. O Atlas Interativo de Leishmaniose nas Américas: aspectos clínicos e diagnósticos diferenciais aborda de forma prática questões como situação epidemiológica, manifestações clínicas, diagnóstico diferencial, parasitos, vetores e animais reservatórios. Com fotografias e ilustrações que refletem o cotidiano de trabalho nos serviços de saúde, a publicação oferece aos profissionais a possibilidade de pesquisar, conhecer e analisar o conteúdo de forma interativa. A obra considera, ainda, as diferenças clínicas encontradas com frequência entre os países endêmicos. O documento, elaborado pela Opas em parceria com os Ministérios da Saúde dos países da região e especialistas, conta com a participação de pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz).
“O atlas é de extrema relevância para o manejo dos casos de leishmanioses. É uma obra inovadora que discute conceitos e conhecimentos acerca da doença nos países do continente americano, reunindo especificidades das suas distintas formas clínicas e de mais de 50 outras enfermidades que fazem diagnóstico diferencial com as leishmanioses”, afirma Elizabeth Ferreira Rangel, vice-diretora de de Laboratórios de Referência e Coleções Biológicas do IOC, pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Vigilância Entomológica em Díptera e Hemíptera e coordenadora do Laboratório de Referência Nacional para o Ministério da Saúde e Regional para a Organização Pan-Americana da Saúde em Vigilância Entomológica: Taxonomia e Ecologia de Vetores das Leishmanioses. A especialista também é coordenadora da Rede Fiocruz de Laboratórios de Leishmanioses.
Conhecendo os parasitos
"O documento faz parte de uma demanda dos profissionais que atuam na linha de frente do serviço em leishmanioses. É uma importante atualização para todos os países onde a Opas atua, que se torna uma referência principalmente por trazer informações de grande qualidade e de uma forma bastante objetiva", aponta Elisa Cupolillo, curadora da Coleção de Leishmania do IOC, chefe do Laboratório de Pesquisa em Leishmaniose e coordenadora do Laboratório de Referência em Identificação e Genotipagem de Leishmania para o Ministério da Saúde e a Opas.
Autora do capítulo sobre os parasitos causadores das leishmanioses humanas nas Américas, a pesquisadora do IOC ressalta que o conhecimento dos diferentes aspectos relacionados às espécies é fundamental para o enfrentamento do agravo. "Os parasitos podem trazer impactos variados que vão desde a resposta terapêutica até a questão do desenvolvimento clínico. Algumas espécies estão relacionadas a quadros mais brandos da doença, outras provocam formas mais agressivas, como a Leishmania braziliensis. Ou seja, a identificação permite direcionar de forma mais adequada a atenção ao paciente, por exemplo", explica.
Entre os destaques do capítulo estão a descrição de novas espécies, revisões taxonômicas e atualizações sobre a situação epidemiológica e a presença dos parasitos em diferentes países do continente. Para a pesquisadora, o atlas estabelece uma aproximação entre a pesquisa científica e uma ampla gama de profissionais de saúde pública envolvidos com as leishmanioses, incluindo os responsáveis pelos cuidados com os pacientes, pela realização do diagnóstico e pela coleta dos flebotomíneos, insetos vetores, no campo. "A associação entre a pesquisa e o serviço é importante, pois dessa integração surgem questões e demandas que podem contribuir para um melhor diagnóstico ou para a definição de esquemas terapêuticos mais eficazes", acrescenta.
Reservatórios e a manutenção dos parasitos na natureza
Grupos de espécies responsáveis pela manutenção de um parasito na natureza são chamados de reservatórios. No Atlas, os pesquisadores Ana Maria Jansen e André Roque, do Laboratório de Biologia de Tripanossomatídeos do IOC/Fiocruz, descreveram os principais aspectos sobre os reservatórios das leishmanioses.
Roque destaca que as espécies de Leishmania estão dispersas por diferentes habitats e biomas americanos e infectam uma grande diversidade de espécies de mamíferos silvestres, além do homem e do cão. Segundo o pesquisador, à exceção da espécie Leishmania infantum, os parasitos circulam há milhões de anos na fauna silvestre, antes mesmo da chegada do homem às Américas.
O capítulo destaca espécies apontadas como potenciais reservatórios, como os gambás (Didelphis sp.), os cachorros-do-mato (Cerdocyon thous), tatus (Dasypus novemcinctus), cães, preguiças e roedores com diferentes espécies de Leishmania. "As peculiaridades da interação parasito-hospedeiro, em especial no que diz respeito à potencialidade desse hospedeiro em ser fonte de infecção ao vetor, é que definirão seu papel como reservatório. Esse papel não é um atributo fixo de um dado hospedeiro e, uma vez que depende da interação parasito-hospedeiro, ele também varia no tempo e no espaço", explica Roque.
Para os autores, além de contribuir para a conduta clínica e diagnóstico diferencial dos pacientes, o conteúdo do altas mostra a complexidade da parasitose e a importância da avaliação das variáveis relacionadas à doença de forma conjunta. "As leishmanioses são zoonoses dispersas no ambiente selvagem. O homem é apenas mais um hospedeiro de seu ciclo de transmissão e normalmente é o que chamamos de hospedeiro fim de linha no ciclo de transmissão. Para propor medidas de controle e prevenção de uma parasitose tão complexa, é essencial que avancemos no conhecimento de todos os atores envolvidos na transmissão: parasitos, vetores, reservatórios e o ambiente onde estão incluídos", concluiu Jansen.