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01/07/2019

Cannabis medicinal: evento debate experiências promissoras

Ricardo Valverde (Agência Fiocruz de Notícias)


A Fiocruz e a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi) promoveram, no último fim de semana de junho (dias 29 e 30), a segunda edição do seminário internacional Cannabis medicinal: um olhar para o futuro, na sede do Instituto Europeu de Design (IED), na Urca (RJ). O evento, que teve o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), contou com palestras, mesas-redondas, oficinas com abordagens sobre experiências clínicas, apresentações médico-científicas e debates sobre a regulamentação jurídica da cannabis medicinal e painéis com foco econômico e até geopolítico, tendo em vista a imbricação das relações internacionais com o tema. O seminário teve a presença de pesquisadores e especialistas nacionais e estrangeiros e mostrou que o uso medicinal da cannabis – que já é uma realidade em diversos países – tem apresentado resultados promissores no combate a uma série de enfermidades, como Alzheimer, Parkinson, epilepsia, depressão, ansiedade, esclerose múltipla, senescência e diversas neuropatias.

Seminário teve a presença de pesquisadores e especialistas nacionais e estrangeiros e mostrou que o uso medicinal da cannabis tem apresentado resultados promissores no combate a uma série de enfermidades (foto: Gabriela Garcez)

 

O evento foi aberto pela diretora-executiva e fundadora da Apepi, Margarete Santos de Brito. Ela lamentou que o tema, que modifica vidas, ainda está envolto em preconceitos. “Há uma questão, que é a dos direitos humanos, que está sendo negligenciada. O acesso às terapias que utilizam medicinalmente a cannabis tem transformado muitas vidas e famílias, fazendo-as superar situações gravíssimas e grandes infelicidades. A Apepi quer ser um agente transformador dessa realidade, contribuindo para que milhões de brasileiros tenham maior qualidade de vida e superem condições adversas de saúde”.

Em seguida falou o neurologista Eduardo Faveret, do Instituto Estadual do Cérebro (IEC), do Rio de Janeiro. Faveret é um dos principais especialistas no tratamento à base de canabidiol, uma das 113 substâncias químicas encontradas na cannabis. Emocionado, ele contou que a ciência vem corroborando, por meio de artigos acadêmicos, o uso da cannabis medicinal. “Até mesmo o autismo poderá ser tratado com remédios feitos da substância, já que há indícios de que a doença poderia ter como uma das causas a insuficiência de canabinoides no organismo. Os resultados terapêuticos são muito bons e nos leva a avançarmos mais, em pesquisa e no atendimento a pacientes. O uso da cannabis terá um impacto grande na saúde, reduzindo internações e os efeitos colaterais do uso de medicamentos tradicionais. “Precisamos combater o obscurantismo nesse tema”, observou o neurologista.

Faveret lembrou da importância da participação popular nas consultas públicas que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abriu recentemente sobre o tema e que aceitarão contribuições até 19 de agosto. Aprovadas por unanimidade na reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa de 11 de junho, as duas consultas públicas foram publicadas no Diário Oficial da União do último dia 14. A primeira delas trata da regulamentação do cultivo controlado de cannabis sativa para uso medicinal e científico. Já a segunda tem como tema o registro de medicamentos produzidos com princípios ativos da planta.

Com a iniciativa a Anvisa quer favorecer a produção nacional de terapias feitas à base de cannabis, com garantia de qualidade e segurança, além de permitir a ampliação do acesso da população a medicamentos. As duas propostas de consulta pública foram produzidas a partir dos estudos e evidências científicas sobre o benefício terapêutico de medicamentos feitos à base da planta.

A diretora de Coordenação e Articulação do Sistema Nacional de Vigilância Sanitária da Anvisa, Alessandra Bastos Soares, interveio em seguida e disse que, como farmacêutica, se sente estimulada em participar desse momento em que se abrem novas oportunidades para o tratamento de doenças e para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes. Ela convocou todos a participarem das consultas públicas feitas pela Agência. “Pressionem e provoquem a Anvisa, que é um órgão público, para que cumpramos a nossa missão”.

Segunda edição do seminário internacional 'Cannabis medicinal: um olhar para o futuro' ocorreu na sede do Instituto Europeu de Design, na Urca (foto: Gabriela Garcez)

 

A presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, se apresentou logo depois e disse que a instituição tem contribuído com estudos sobre o tema e que isso tem sido um grande aprendizado. Ela afirmou que é importante se comunicar com a sociedade para informar dos benefícios, já comprovados, do uso da cannabis medicinal e de outros resultados promissores que as pesquisas apontam. “Assim conseguiremos atender a nossa missão, que é a de atender os pacientes e suas famílias. Os desafios são muitos, sobretudo pela questão do estigma que existe sobre o assunto, mas é fundamental vencermos o preconceito. Para tanto precisamos manter um diálogo com a sociedade, com as demais instituições científicas e profissionais, com os conselhos de medicina, enfim, com toda a população”.

A futura reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Pires de Carvalho, que é médica e professora de farmacologia, disse que três núcleos do Centro de Ciências Médicas da instituição estão realizando estudos sobre a cannabis medicinal. “Estamos juntos com a Fiocruz e com outros parceiros para estabelecermos pontes que nos levem a descobrir todos os benefícios terapêuticos da substância”.

Depois da mesa de abertura, a filósofa e psicanalista Viviane Mosé fez a apresentação Reflexões: cannabis medicinal e sociedade. Viviane fez um histórico da psiquiatria, tendo como base o pensamento do filósofo francês Michel Foucault, o que a levou a criticar o que ela chamou de “medicamentalização da vida” e a corrosão dos esquemas cartesianos, que desembocaram em ideias anticientíficas como as da Terra plana e do movimento anti-vacinal. “Só se muda a realidade por demanda. E uma das demandas atuais é justamente a do uso medicinal da cannabis. A sociedade em redes deste século 21 nos permite a liberdade de pensar esse tema e exigir, com urgência, que se converta em uma questão de saúde pública”.

A intervenção seguinte foi do neurocientista Sidarta Ribeiro, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), fez um histórico do uso terapêutico da cannabis. “Há 1,5 mil anos antes de Cristo já se fazia uso medicinal da substância. O Papiro de Ebers, daquela época, mostra o uso contra inflamação, já que a cannabis contém potentes anti-inflamatórios. E há outras substâncias na cannabis que não produzem efeitos psicoativos e são terapêuticos, estimulando o crescimento de ossos e o uso como antiepilépticos, antiproliferativos e antibacterianos. A cannabis é uma farmacopeia, é uma planta que gera muitos usos diferentes de acordo com a combinação de substâncias”, explicou o pesquisador, que apresentou diversos outros exemplos, ao longo da História, do uso terapêutico da substância.

Ribeiro lembrou que várias doenças já são reconhecidas pela Anvisa como tratáveis com cannabis. “Entre elas autismo infantil, carcinoma, distonia, dor crônica, depressão, encefalopatia, epilepsia, esclerose, esquizofrenia, fibromialgia, paralisia cerebral, Parkinson, retardo mental e transtorno de desenvolvimento”.

Para o neurocientista, tão importante quanto a luta pela legalização é a compreensão dos efeitos positivos e negativos. Por isso ele defende a regulamentação do uso medicinal. “Se eu ler a bula dos efeitos colaterais dos antidepressivos é assustador. A indústria é capaz de vender remédios que têm pouquíssimos efeitos e, no entanto, luta para coibir o cultivo de uma planta medicinal, ancestral, que pode resolver problemas de saúde ou os sintomas de muitas pessoas. É preciso entender o que, nesse debate, é de interesse da população brasileira e o que é interesse de grupos particulares”.

Sidarta Ribeiro lembrou que várias doenças já são reconhecidas pela Anvisa como tratáveis com cannabis (foto: Gabriela Garcez)

 

Ribeiro acrescentou que os benefícios da cannabis medicinal tem atingido um número cada vez maior de pessoas. “E inclusive de pessoas que, por preconceito ou desconhecimento, eram contrários ao uso terapêutico e, ao se depararem com os bons resultados, mudaram de ideia. Há pessoas convertendo parentes e amigos para essa causa. A informação de qualidade contribui para isso”.

Após o neurocientista, três pesquisadores debateram o desenvolvimento de novos produtos, do ponto de vista clínico. A pesquisadora Beatriz Kaippert, da Vice-Presidência de Produção e Inovação em Saúde da Fiocruz, detalhou como é feita uma pesquisa clínica, de acordo com os protocolos científicos usados no Brasil e também internacionalmente, discorrendo ainda sobre a participação de atores relevantes nesse processo, como indústrias, laboratórios, hospitais, comitês de ética, órgãos regulatórios etc.

O chileno Ricardo Mercado, do Laboratório Knop, apresentou os estudos clínicos de produtos farmacêuticos que têm como base a cannabis, com a participação da Fundação Daya. O projeto, de uso compassivo de cannabis para pacientes com câncer, foi o primeiro estudo desse tipo na América Latina e mostrou os benefícios para o manejo da dor em pacientes com tumores no pulmão e na mama.

Por último, houve a intervenção do coordenador de pesquisa do projeto piloto de cultivo da cannabis na província argentina de Jujuy, Agustin Yécora. A maconha foi legalizada na Argentina para fins médicos em março de 2017, por decisão unânime do Senado. A cannabis tem sido usada principalmente em cuidados paliativos, para reduzir a dor em doenças como artrite e reumatismo, mas também tem altas taxas de sucesso com a epilepsia, reduzindo os sintomas da doença, e algumas formas de autismo. “As evidências são amplas e mostram a eficácia da terapia com a cannabis”, afirmou Yécora.

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